segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

RELIGIÕES NA ÍNDIA E NA CHINA

RELIGIÕES NA ÍNDIA E NA CHINA Entre as religiões que se professam, hoje em dia, têm destaque o cristianismo, o islamismo e o budismo. O conjunto de seus seguidores, pelo menos nominais, forma um grupo que reúne aproximadamente a metade da população mundial. Mas há outras religiões de que pouco se fala, embora numericamente congreguem um grande número de fiéis. Lembramos, aqui, o hinduísmo, um termo genérico que engloba as correntes religiosas tradicionais da Índia com vários componentes que se inspiram em elementos próprios das antigas religiões nativas e nas que os invasores arianos impuseram a partir do segundo milênio antes de Cristo. A sua origem se perde na Antigüidade, foi continuamente enriquecido com aprofundamentos e visões novas, manifesta-se numa riquíssima simbologia, numa arte genial e em livros sagrados - os Vedas - estudados e interpretados ao longo dos séculos. Corresponde às exigências múltiplas e aos dons religiosos da espiritualidade dos indianos, um povo que se expressou especialmente por meio da religião. Mais de 700 milhões de pessoas na Índia, Bangladesh e Nepal seguem esta religião. A suprema aspiração do fiel hindu é a união com Brahman, a Unidade, o Absoluto, a Totalidade, ‘O que é’. “Todas as coisas, todas as pessoas são transformações - por emanação do Absoluto. Quanto mais elas se afastam de sua origem, tanto menos são ‘o que (a Totalidade) é’.” A fusão do espírito da pessoa (Atman) com o Brahman se realiza, porém, somente depois da morte, se a alma estiver totalmente purificada. O caminho da purificação é longo e difícil e só se alcança a fusão com o Brahman depois de uma série de reencarnações (ou transformações samsâra), durante as quais, pela lei do karman, cada um deve espiar as suas culpas e receber o prêmio pelas boas obras, reencarnando-se em condições de vida diferentes. Pouco se fala no hinduísmo no mundo ocidental. Não é uma religião barulhenta, não inspira nacionalismo ou reivindicações. É vista, superficialmente, como ignorância, porque levam os indianos a não matar as vacas e comer sua carne e impõe a divisão social em castas (o que, na verdade, é fruto das invasões e das vicissitudes históricas da Índia, embora justificada, a posteriori, pela religião). Há, porém, uma certa influência do hinduísmo em nossa cultura. Há sempre mais pessoas que acreditam no karma - aqui e agora - e o invocam sempre que se sentem injustiçadas ou injuriadas, como uma ‘rogação de praga’ automática. Outros sentem-se atraídos por esse Brahman, o Absoluto, no qual se perdem e vislumbram na Nova Era do Aquário os novos tempos em que isso se torna realizável. A reencarnação é crença comum entre bom número de brasileiros espíritas ou que declaram pertencer a outras denominações. A Índia, enfim, atrai por sua cultura milenar e por sua incessante procura do Infinito. É o que reconhecia também o papa Paulo VI, em Bombain, em 1964, ao afirmar que a Índia é uma terra sagrada, na qual está a origem das mais antigas culturas e a fonte de grandes religiões. É a casa de um povo que viu Deus com seu incansável desejo de descobri-lo através de profundas meditações e silêncios. Poucas vezes o desejo de Deus tem sido expresso com palavras tão repletas do espírito do Advento como em seus livros sagrados, escritos muitos anos antes da vida de Jesus Cristo: ‘do irreal leve-me à luz; da morte leve-me à imortalidade’. Na China, entre as religiões que têm um grande número de adeptos (embora, depois da experiência comunista e suas investidas contra a religião, não se conheça com clareza a situação) há o confucionismo e o taoísmo. Calculam-se em cerca de trezentos milhões os taoístas. As duas religiões nasceram quase contemporaneamente no século V a.C. Para os chineses antigos, é por intermédio da natureza que o homem descobre também o conceito de Deus. Os fenômenos naturais, dos quais dependem a boa ou a má sorte da existência, levam à idéia de um ‘dominador superior’, que os chineses chamam de ‘céu’ (tien). Para seguir o Tao (o ‘caminho’, ou a lei, a verdade) e chegar à felicidade, nesta vida, Kung Fu-Tse (nome chinês de Confúcio, que é uma forma ocidentalizada) propõe uma ética individual e uma ética das relações sociais. Confúcio não se importava com o ‘Tao-caminho do céu’, queria ser um intérprete e continuador dos antigos sábios, firmando princípios ético-políticos que estão na vida familiar, social e política chinesa. O tempo e os seguidores se encarregaram de dar ao confucionismo características religiosas. Ao contrário de Kunf Fu-Tse, Lao-Tse foi um anárquico, que abandonou o ofício de bibliotecário-arquivista da corte, cansado da corrupção, para iniciar uma longa viagem para o Oeste. No sistema filosófico que foi elaborado valendo-se dele, o taoísmo, o Tao está fora da natureza, absoluto e transcendente. Enquanto o confucionismo aceita os valores da sociedade e procura educar as pessoas, o taoísmo considera negativas as manifestações da natureza e da sociedade e propõe a fuga do mundo como caminho que conduz o homem ao Tao absoluto. Ao longo dos séculos, as duas filosofias sofreram profundas influências até serem transformadas em religiões institucionais. É o que aconteceu com os grandes líderes religiosos. Apresentam um ideal (ou uma utopia) e geram um movimento espiritual que sobrevive a sua morte. Os seguidores formam um grupo - geralmente com as características de uma seita - que, primeiro, por uma organização embrionária e, depois, formalizado, retransmite a mensagem em conexão com as necessidades diárias, os embates e as situações concretas pelas quais passam. Chega-se, enfim, à institucionalização do grupo, à igreja organizada com hierarquia, rituais, dogmas. A instituição oferece segurança - e controle - de conduta aos seus membros nas relações sociais e dá estabilidade à cultura do grupo. Ao se enrijecer e querendo preservar a todo custo certas prerrogativas e elementos considerados essenciais, pode dificultar mudanças necessárias, frustar personalidades e diminuir a responsabilidade social. Disso tudo, nasce a necessidade, em todas as instituições, especialmente as religiosas, do aparecimento de novos líderes - no judaísmo e no cristianismo considerados ‘profetas’- que, mantendo o ideal da mensagem inicial, levam às mudanças necessárias para que a utopia original não fique enterrada debaixo de montes de lixo ‘institucional’. É por isso que os profetas não são benquistos pelos hierarcas detentores e ciumentos de seu poder. Mas, lembramos, também, a utopia estéril de querermos construir uma vida social sem instituições: a natureza social do homem exige instituições - (in)felizmente. É a dialética constante de nossa vida social.

POR QUE SOU AGNÓSTICO - 1896 -ENSAIOS DE ROBERT G. INGERSOLL

ENSAIOS DE ROBERT G. INGERSOLL POR QUE SOU AGNÓSTICO - 1896 Tradução: Afonso M. C. Amorim Fonte: http://www.no-god.org/words/essays/ingersoll/why_i_am_agnostic.ixi ----------------------------------------- I Na maior parte das vezes nós herdamos nossas opiniões. Nós somos herdeiros de hábitos e atividades mentais. Nossas crenças, como os costumes nas nossas roupas, dependem de onde nós nascemos. Fomos moldados e formados pelo nosso ambiente. O ambiente é um escultor -- um pintor. Se tivéssemos nascido em Constantinopla, a maioria de nós iria dizer: "Não há nenhum Deus além de Alá, e Maomé é seu profeta." Se nossos pais tivessem nascido nas margens do Ganges, nós poderíamos ser adoradores de Shiva, esperando pela chegada ao céu de Nirvana. Em geral, crianças amam seus pais. Acreditam no que eles ensinam. E têm grande orgulho em dizer que a religião da mãe é adequada para elas. A maioria das pessoas amam a paz. Eles não gostam de ser diferentes dos vizinhos. Pessoas gostam de companhia. Elas são sociais. Elas gostam de viajar na estrada com a multidão. Elas odeiam caminhar sozinhas. Os escoceses são calvinistas porque seus pais eram. Os irlandeses, católicos porque seus pais eram. Os ingleses, episcopais, porque seus pais eram. E os americanos são divididos em centenas de seitas porque seus pais eram. Esta é a regra geral, para a qual, existem numerosas exceções. Filhos às vezes são superiores aos seus pais, modificam suas regras, alteram seus costumes, chegam a diferentes conclusões. Mas isto é tão gradual que as mudanças são fracamente percebidas, e aqueles que mudam usualmente continuam a insistir que permanecem seguindo os passos dos pais. É dito pelos historiadores cristãos que a religião de uma nação foi, repentinamente vítima de um processo de mudança, e que milhões de pagãos teriam se transformado em cristão sob o comando de um rei. Filósofos não concordam com esses historiadores. Nomes foram mudados, altares foram substituídos, mas as crenças continuaram as mesmas. Um pagão, diante da espada ameaçadora de um cristão iria provavelmente mudar sua visão religiosa.. Um cristão, com uma cimitarra em sua cabeça, tornar-se-ia um maometano. Mas em essência, ambos continuariam exatamente o que eram antes, mudando apenas o discurso. Crença não é sujeita à vontade. Homens pensam como podem. Crianças não, elas acreditam exatamente no que lhes é ensinado. Elas não são exatamente como seus pais. Elas diferem em temperamento, em experiência, em capacidade, nas circunstâncias. Então há uma contínua e quase imperceptível mudança. Há desenvolvimento, consciente e inconsciente crescem, e comparando grandes intervalos de tempo, nós percebemos que o velho foi abandonado, quase substituído pelo novo. O homem não pode permanecer estacionado. A mente não pode ser ancorada num local seguro. Se não avançarmos, andaremos para trás. Se não crescermos, decairemos. Se não nos desenvolvermos, atrofiaremos e morreremos. Como a maioria de vocês, eu cresci no meio de pessoas que sabiam -- os que tinham certeza. Eles não usavam a razão ou a investigação. Eles não duvidavam. Eles sabiam que tinham a verdade. Em sua crenças não havia nenhum "eu acho", nenhum "talvez". Eles tinham tido a revelação de Deus. Eles conheciam o início das coisas. Eles sabiam que Deus havia começado a criação numa segunda-feira pela manhã, quatro mil e quatro anos antes de Cristo. Eles sabiam que na eternidade -- antes daquela manhã Ele não tinha feito nada. Eles sabiam que Ele tinha passado seis dias para fazer o mundo -- todas as plantas, todos os animais, toda a vida, e todos os globos que giram no espaço. Eles sabiam exatamente o que Deus havia feito em que dia, e quando Ele descansou. Eles sabiam a origem, as causas do mal, de todos os crimes, de todas as doenças, da morte. Eles sabiam não só o início, mas também o fim. Eles sabiam que a vida tinha ou um caminho ou uma estrada. Eles sabiam que o caminho, estreito, coberto por pedras e espinhos, infestado de víboras, molhado de lágrimas, manchado de pés sangrantes, levava ao céu. A estrada, larga, lisa, ladeada por frutas e flores, cheia de risadas, música, e de toda a felicidade do amor humano, levava direto ao inferno. Eles sabiam que Deus estava fazendo todo o esforço para que nós seguíssemos pelo caminho, e que o diabo fazia todo tipo de truques e artimanhas para que percorrêssemos a estrada. Eles sabiam que se travava uma terrível batalha entre as forças do mal e as do bem pela posse das almas humanas. Eles sabiam que há muitos séculos atrás Deus desceu do seu trono e nasceu criança neste pobre mundo -- que Ele sofreu e morreu pelo bem dos humanos -- sofreu para salvar alguns. Eles sabiam também que os corações humanos eram depravados, que os homens estavam apaixonados pelo mal e odiavam Deus com todas as suas forças. Ao mesmo tempo eles sabiam que Deus criara o homem à sua imagem e semelhança e estava plenamente satisfeito com seu trabalho. Eles sabiam também que o homem havia sido tentado pelo demônio, que com suas mentiras e sutilezas enganara o primeiro ser humano. Sabiam que em conseqüência disto, Deus castigou todos nós: o homem, com o trabalho e a mulher com a escravidão e a dor, e ambos com a morte. E que Ele castigou a própria terra com espinhos, venenos e urtigas. Todas essas coisas abençoadas eles sabiam. Eles sabiam também de tudo o que Deus fazia para purificar e elevar a espécie humana. Eles sabiam tudo sobre o dilúvio; que Deus, com exceção de oito, afogou todos os seus filhos, os jovens e os velhos, desde o velho patriarca até os bebês. O jovem, a donzela, a mãe amorosa, a criança sorridente -- porque Sua misericórdia dura para sempre. Eles sabiam também que Deus afogou as bestas e os pássaros, tudo o que anda, rasteja e voa, porque seu infinito amor atinge toda a criatura. Sabiam que Deus, para civilizar seus filhos, matou vários com terremotos, destruiu muitos com tempestades de fogo, matou inúmeros com raios, milhões de fome, com epidemias, sacrificou muitos milhões nos campos da guerra. Eles sabiam que era necessário acreditar nestas coisas para amar Deus. Eles sabiam que não haveria salvação outra além da fé e do sangue reparador de Jesus Cristo. Todos os que negassem e duvidassem estariam perdidos. Viver uma vida honesta e moral, tomar conta da mulher e das crianças -- formar um lar feliz -- ser um bom cidadão, um patriota, ou simplesmente um homem sábio, tudo isso era uma maneira respeitável de ir para o inferno. Deus não recompensava homens pela honestidade, generosidade, bravura, mas pelos atos de fé. Sem fé, todas as chamadas virtudes eram pecados. E todos os homens que praticassem essas virtudes sem fé, mereceriam o sofrimento eterno. Todas estas coisas reconfortantes e racionais eram ensinadas pelos ministros em seus púlpitos -- por professores em salas de aula, e pelos pais, em casa. As crianças eram as vítimas. Elas ficavam assaltadas de pavor -- nos braços da mãe. Na época, os professores levavam adiante uma guerra contra o sentido natural das crianças, e todos os livros que elas liam eram cheios dessas verdades impossíveis. As pobres crianças eram desesperançadas. A atmosfera que respiravam era envenenada com mentiras -- mentiras que penetravam no seu sangue. Naqueles dias os ministros usavam os cultos para salvar almas e reformar o mundo. No inverno, estando a navegação interrompida, negócios eram quase totalmente suspensos. As estradas de ferro não funcionavam e os principais meios de transporte eram barcos e carruagens. As vezes as condições das estradas eram tão precárias que carruagens eram abandonadas. Não havia óperas, teatro ou diversões, além de festas e bailes. As festas eram tidas como mundanas, e os bailes, perniciosos. Para a alegria virtuosa e real, as boas pessoas dependiam dos cultos. Os sermões eram quase sempre sobre dores e agonias do inferno, sobre alegrias e êxtase do céu, salvação pela fé e a eficácia do arrependimento. As pequenas igrejas, nas quais os cultos aconteciam, eram mal ventiladas, excessivamente quentes. Os sermões emocionais, as canções tristes, os améns histéricos, a esperança do céu, provocavam em muitos a perda da pouca razão que possuíam. Eles se tornavam substancialmente insanos. Nessas condições eles sentavam no "banco das lamentações" rezavam orações de fé, tinham estranhas sensações, choravam e pensavam que tinham "nascido de novo". Então eles contavam sua história. Como tinham sido maus. Como tinham tido maus seus pensamentos, seus desejos, e como tinham mudado repentinamente. Eles relatavam a história de uma velha mulher que, contando sua experiência, disse: "Antes de me converter, de dar meu coração a Deus, eu costumava mentir e roubar. Mas agora, graças ao sangue de Jesus Cristo eu me livrei disso tudo". Obviamente, nem todos pensavam desta maneira. Havia alguns que ridicularizavam. E uma vez ou outra, alguém tinha coragem suficiente de dar gargalhadas das ameaças do padre e de escarnecer do inferno. Alguns falavam de não crentes que haviam vivido e morrido em paz. Quando era criança ouvi um deles falar de um velho fazendeiro em Vermont. Ele estava morrendo. O ministro estava na beira de sua cama e perguntou se era cristão. Se estava preparado para morrer. O velho respondeu que não havia feito nenhuma preparação. Não era cristão -- que em sua vida não fizera mais que trabalhar. O padre respondeu que não poderia lhe dar qualquer esperança a não ser que acreditasse em Cristo, e que se não tivesse nenhuma fé, sua alma estaria perdida. O velho não estava amedrontado. Estava perfeitamente calmo. Com sua voz fraca e entrecortada ele disse: "Sr. Reverendo, eu acho que o senhor conhece minha fazenda. Minha mulher e eu viemos para cá há mais de cinqüenta anos. Éramos recém-casados. Lá só tinha mato e a terra era coberta de pedras. Eu cortei o mato, queimei os galhos, tirei as pedras e aplainei o terreno. Minha mulher costurava e tecia, e trabalhava o tempo todo. Criamos e educamos nossas crianças. Esquecemos de nós mesmos. Durante todos esses anos minha mulher nunca possuiu um vestido ou um chapéu decente. Eu nunca tive uma roupa boa. Vivíamos para comer. Nossas mãos e corpos ficaram deformados pelo trabalho. Nunca tivemos férias. Nós nos amamos e amamos nossos filhos. É o único luxo que temos. Agora estou perto da morte e o senhor vem perguntar se estou preparado. Senhor Reverendo, eu não tenho nenhum medo do futuro, nem terror de outros mundos. Pode até existir lugar como o inferno -- mas se existe, o senhor nunca vai me fazer acreditar que seja pior do que nosso velho Vermont". Então me contaram de um homem que comparava a si próprio com um cachorro: "Meu cão," ele dizia, "só sabe latir e brincar. Tem tudo o que quer para comer. Ele nunca trabalha. Não tem qualquer preocupação com negócios. Dentro de pouco tempo morrerá e isso é tudo. Eu trabalho com todo meu esforço. Não tenho tempo para diversões. Tenho problemas todos os dias. Em pouco tempo, morrerei, e então irei para o inferno. Preferia ter nascido um cão". Então, quando a estação do frio terminava, enquanto a neve desaparecia, os cultos continuavam, quando o silvar dos barcos a vapor era ouvido, quando o frio ia embora, os negócios reiniciavam, as almas recém-convertidas retornavam à sua vida habitual. Mas no inverno seguinte estavam eles novamente prontos para "nascer de novo". Eles pareciam um elenco de teatro, representando os mesmos papéis a cada temporada. Os ministros que pregavam nos cultos eram sérios. Eram sinceros e cuidadosos. Não eram filósofos. Para eles Ciência representava uma distante ameaça. Um inimigo perigoso. Não sabiam muita coisa mas tinham muitas convicções: para eles, o inferno era uma realidade. Podiam até ver as chamas e a fumaça. O diabo era uma figura real. Era uma pessoa de fato, um rival de Deus, um inimigo da Humanidade. Acreditavam que o grande objetivo da vida era salvar nossas almas. E todos deveriam resistir, e desprezar os prazeres dos sentidos e manter o olhar fixo nas portas de ouro da Nova Jerusalém. Eram impassíveis, emotivos, histéricos, odiosos, fanáticos, amorosos e insanos. Eles realmente acreditavam que a Bíblia era a palavra de Deus. Um livro sem erros nem contradições. Eles chamavam suas crueldades de justiça. Seus absurdos, mistérios. Seus milagres, fatos. E suas passagens idiotas, profundamente espirituais. Eles descreviam os sofrimentos, a infinita agonia dos perdidos, e mostravam como era fácil evitar tudo isso, como o céu seria facilmente obtido. Eles pediam aos ouvintes que acreditassem, que tivessem fé, que dessem seus corações a Deus, seus pecados a Cristo, que iriam expiar seus pecados e deixar sua almas mais brancas que a neve. Em tudo isso os clérigos realmente acreditavam. Eles estavam absolutamente certos. Em suas mentes o diabo havia tentado em vão semear as sementes da dúvida. Em ouvi centenas desses sermões evangélicos. Ouvi centenas das mais assustadoras e terríveis descrições das torturas e aflições no inferno, do horrível estado dos perdidos. Eu supunha que aquilo que ouvia era verdade mas não acreditava naquilo. Eu dizia: "É verdade!". E logo depois, pensava: "não pode ser!". Esses sermões deixaram lembranças permanentes na minha memória. Mas não me convenciam. Eu não tinha qualquer desejo de ser "convertido". Não queria um "novo coração" e não queria "nascer de novo". Mas um dia ouvi um sermão que tocou meu coração: deixou uma marca, como uma cicatriz no meu cérebro. Um dia fui com meu irmão assistir a uma pregação de um pastor batista. Era um homem alto, vestido como um fazendeiro, mas era um grande orador: poderia pintar um quadro com palavras. Ele tomou para seu texto a parábolas do "rico e Lázaro". Descreveu Dives, o homem rico, sua maneira de viver, seus excessos, que ele ridicularizou, suas extravagâncias, suas noitadas, suas roupas de tecido fino, suas festas, seus vinhos e suas belas mulheres. Então ele descreveu Lázaro e sua pobreza, seus trapos, sua feiúra, seu pobre corpo comido pelas doenças, as crostas e escaras a devorarem-no, até os cães tinham piedade dele. Ele descreveu sua vida solitária, sua morte sem amigos. Então, mudando seu tom de voz de piedade para triunfo, de lágrimas para gritos de exaltação, de derrota para vitória, ele descreveu a gloriosa companhia dos anjos, que com suas brancas asinhas carregaram a alma do miserável para o Paraíso, para o seio de Abraão. Então, mudando sua voz para escárnio e raiva, ele descreveu a morte do rico. Ele estava num palácio deitado no seu sofá, o ar perfumado, o quarto preenchido por serviçais e médicos. Seu ouro então, não tinha qualquer valor. Ele não podia comprar uma outra vida. Ele morreu e no inferno abriu os olhos, em tormento. Então, assumindo uma atitude dramática, o Pastor colocou sua mão direita no ouvido e cochichou: "Ouçam! Eu ouço a voz do homem rico. O que ele diz? Ouçam! - Pai Abraão, pai Abraão! Eu peço a ti que mande Lázaro molhar seu dedo em água e umedecer meus lábios secos! Porque eu estou sofrendo nestas chamas!" "Oh, meus ouvintes, o rico está fazendo este pedido há mais de mil e oitocentos anos. E em milhões de anos esses lamentos ainda atravessarão o abismo que separa os salvos e os perdidos e ainda serão ouvidos: "Pai Abraão! Pai Abraão! Eu peço a ti que mande Lázaro molhar seu dedo em água e umedecer meus lábios secos! Porque eu estou sofrendo nestas chamas!" Pela primeira vez entendi o dogma do sofrimento eterno. Pela primeira vez tive noção da profundidade e extensão do horror cristão. E eu disse: Isto é uma mentira e eu odeio tua religião! Se isto é verdade, odeio também teu Deus!" Desde aquele dia deixei de ter medos ou dúvidas. Para mim, naquele dia as chamas do inferno se extinguiram. A partir daquele dia passei a detestar todo o tipo de crença ortodoxa. II Desde minha infância liam para mim ou eu mesmo lia a Bíblia. De manhã e à noite o livro sagrado era aberto e rezávamos. A Bíblia foi minha primeira história e os Judeus, meu primeiro povo, e os fatos narrados por Moisés e outros escritores inspirados, e aquelas descrições dos profetas eram tudo coisas importantes. Em outros livros eram descritos os pensamentos e sonhos de homens, mas a Bíblia continha a verdade de Deus. Entretanto, apesar do meu ambiente, da minha educação, eu não amava Deus. Ele era tão sem misericórdia, tão generoso em assassinatos, tão sedento de matanças, tão disposto a destruir, que eu O odiava com todo o meu coração. Sob seu comando, bebês eram despedaçados, mulheres violadas, e os cabelos brancos de velhos trêmulos, manchados de sangue. Esse Deus visitava famílias com epidemias, cobria as ruas de mortos e moribundos, deixou bebês passar fome agarrados aos seios vazios de suas mães, ouvia seus choros, via suas lágrimas, as bochechas murchas, os olhos sem visão, via as covas recentemente abertas, e continuou tão impiedoso como as pestes. Esse Deus suspendeu as chuvas, semeou a fome, viu os olhos tristes dos famintos, suas formas esquálidas, seus lábios pálidos, viu mães devorando bebês, e permaneceu tão feroz como a fome. Parece-me impossível para o homem civilizado amar ou adorar ou respeitar o Deus do Velho Testamento. Um homem realmente civilizado, uma mulher realmente civilizada deve encarar esse Deus com horror e desprezo. Mas nos velhos tempos as boas pessoas justificavam Jeová no seu tratamento aos infiéis. Os hereges assassinados eram idólatras, não merecedores da vida. De acordo com a Bíblia, Deus nunca se revelou a esses povos e sabia que sem sua revelação eles não poderiam saber qual o verdadeiro Deus. Como classificá-los então como hereges? Os cristãos afirmam que Deus tinha o direito de matá-los porque os tinha criado. Então, para que os criou? Ele sabia, quando os criou que eles seriam alimento para a espada. Ele sabia que teria o prazer de vê-los ser assassinados. Como uma última resposta, como uma desculpa, os adoradores de Jeová afirmam que todas aquelas coisas horríveis aconteceram sob "velha ordem", sob lei inevitável, e justiça absoluta, mas agora, sob "nova ordem", tudo já estaria mudado, a espada da justiça já estaria embainhada, o amor tinha assumido. No Velho Testamento, eles diziam, Deus era o Juiz. Mas no Novo, Cristo é piedoso. Mas na verdade, o Novo Testamento é infinitamente pior que o Velho. No Velho não há qualquer ameaça de sofrimento eterno. Jeová não possuía uma prisão eterna. Nenhum fogo eterno. Suas maldades terminavam na sepultura. Sua vingança estava satisfeita logo que o inimigo estivesse morto. No Novo Testamento a morte não é o fim, mas o início de uma punição sem fim. No Novo Testamento a malícia de Deus é infinita e a fome de vingança, eterna. O Deus ortodoxo, quando vestido em carne humana, disse a seus discípulos para resistir à maldade, amar seus inimigos, e quando esbofeteado numa face, que oferecessem a outra. E nós sabemos que esse mesmo Deus, com esses mesmos lábios ternos, exclamou estas cruéis e impiedosas palavras: "Apartai-vos de mim, malditos. Danai-vos no fogo eterno. Preparai-vos para o diabo e seus anjos". (Mat. 25:41). Estas são as palavras do "amor eterno". Nenhum ser humano tem imaginação suficiente para conceber esse infinito horror. Tudo o que a espécie humana tem sofrido na guerra, na fome, nas epidemias, no fogo e nas enchentes, Todas as desgraças de todas as dores e de todas as doenças, isto tudo é nada se comparado às agruras do sofrimento eterno da alma. Este é o consolo da religião Cristã. Esta é a justiça de Deus. A misericórdia de Cristo. Este dogma assustador, esta mentira infinita, fez de mim um inimigo implacável do Cristianismo. A verdade é que a crença na dor eterna tem sido o verdadeiro perseguidor. Ela criou a Inquisição, forjou as correntes, construiu as estacas das fogueiras. Ela escureceu as vidas de milhões. E fez os berços tão terríveis como os esquifes. Escravizou nações e derramou o sangue de muitos milhares. Sacrificou os mais sábios, os mais corajosos, os melhores. Subverteu a idéia de justiça, tirou o perdão do coração, transformou homens em maus e baniu a razão de seus cérebros. Como uma serpente venenosa ela rasteja, enrosca-se e silva em todo credo ortodoxo. Transformou o homem numa eterna vítima e Deus num eterno carrasco. Este é um infinito terror. Em toda igreja o que se ensina é uma maldição bíblica. Todo o Pastor que a prega é um inimigo da Humanidade. Abaixo dos dogmas cristãos, selvageria não existe. É uma infinidade de malícia, ódio e vingança. Nada poderia ser pior que o horror do inferno do que o seu criador, Deus. Enquanto eu viver, enquanto eu respirar, eu negarei com todas as minhas forças. E odiarei até a última gota de meu sangue esta mentira infinita. Nada me dá tanta alegria do que esta crença no sofrimento eterno está-se tornando mais fraca a cada dia. Que milhares de Pastores se envergonham disso. Isto me dá alegria em saber que a Cristandade está se tornando piedosa. Tão piedosa que o fogo do inferno está queimando mais brando. Tremula mais fraco e isto indica que logo se extinguirá para sempre. Por séculos o Cristianismo era uma casa de loucos. Papas, Cardeais, Bispos, Padres, Monges e hereges. Eram todos insanos. Apenas alguns -- quatro ou cinco num século, tinham cérebro e corações em ordem. Apenas alguns, apesar dos rugidos e do barulho, apesar dos choros, ouviam a voz da consciência. Apenas alguns, na fúria selvagem da ignorância, medo e fervor, permaneciam perfeitamente calmos, como a sabedoria manda. Nós avançamos. Em poucos anos o Cristianismo estará -- assim esperamos -- humano e sensível o suficiente para negar os dogmas que enchem anos sem fim com a dor. Eles têm que saber que esses dogmas são inconsistentes com a sabedoria, a justiça, com a bondade do seu Deus. Eles devem saber que sua crença no inferno leva ao Espírito Santo -- a pomba -- o bico de um abutre, e enche a boca do cordeiro de Deus com as presas de uma víbora. III Em minha juventude lia livros religiosos -- livros sobre Deus, sobre o arrependimento -- sobre a salvação pela fé e sobre outros mundos. Fiquei familiar com os comentadores -- com Adam Clark, que achava que a serpente havia seduzido nossa mãe Eva, e era de fato o pai de Caim. Ela também acreditava que os animais, quando na arca, mudaram suas naturezas de tal modo que consumiam palha e conviveram alegremente todos juntos -- então, prenunciando o milênio abençoado. Li Scott, que era um Teólogo tão natural que acreditava na história de Phaeton -- dos cavalos selvagens voando pelos céus -- e corroborando a história de Josué parando o sol e a lua. Então li Henry e MacNight e descobri que Deus amava tanto o mundo que despertou Sua mente para destruir a maioria dos seres humanos. Li Cruden que fez a grande Concordância e fez os milagres tão pequenos e prováveis como pôde. Lembro-me que ele explicava o milagre de alimentar os judeus andarilhos com codornizes, afirmando que nesse mesmo dia o céu no Mar Vermelho foi cruzado por milhares de codornizes. E que as que se encontravam cansadas, pousavam sobre barcos em tão grande número que alguns barcos afundavam. O fato de que a explicação é tão difícil de acreditar quanto o milagre não fez qualquer diferença para o devoto Cruden. Depois li as regras de Calvino, um livro calculado para produzir em qualquer mente natural, considerável respeito pelo diabo. Li as evidências de Paley e entendi a evidência da ingenuidade em produzir o mal, em planejar a dor, era tão menos real que a evidência de tender a mostrar o uso da inteligência na criação do que chamamos o bem. Você sabe que o argumento do relógio foi o maior esforço de Paley. Um homem acha um relógio e o acha tão maravilhoso que conclui que ele tem que ter um relojoeiro. Ele encontra o relojoeiro e conclui que este é tão maravilhoso que tem que ter também um Criador. Então ele encontra Deus, o Criador do homem. E Ele é tão mais maravilhoso que o homem que não pode ter um Criador. Isto é o que os advogados chamam de 'desistência na apelação'. De acordo com Paley, não pode haver criação sem criador -- mas pode haver um Criador sem ter sido criado. A maravilha do relógio, sugere o relojoeiro. A maravilha do relojoeiro, sugere o criador. E a maravilha do criador demonstra que Ele não foi criado. Mas era sem causa e eterno. Tivemos Edward em "A vontade", em que o reverendo autor lembra que a necessidade não tem efeito na explicabilidade -- e quando Deus cria um ser humano, no mesmo momento determina o que aquele ser deverá fazer e ser, o ser humano é responsável, e Deus, na sua infinita justiça e misericórdia tem o direito de torturar a alma deste ser humano para sempre. E então Edward afirma que ama Deus. O fato é que se você acredita num Deus infinito e também na punição eterna, você deve admitir que Edward e Calvino estavam absolutamente certos. Não há como escapar de suas conclusões se você aceitar suas premissas. Eles eram infinitamente cruéis, suas premissas infinitamente absurdas, seu Deus infinitamente cruel, e sua lógica, perfeita. E eu tenho a ternura e a candura suficiente para dizer que Calvino e Edward eram ambos insanos. Nós temos abundância de literatura teológica, Houve Jenkin e o arrependimento, que demonstrou a sabedoria de Deus em permitir uma maneira na qual o sofrimento de inocência poderia justificar a culpa. Ele tentou mostrar que crianças poderiam ser punidas pelos pecados dos seus ancestrais, e que os homens, se tiverem fé poderão ser com justiça ter crédito com a virtudes dos outros. Nada poderia ser mais ortodoxo, devotado e idiota. Mas nem toda a Teologia foi escrita em prosa. Nós tivemos Milton com sua celestial milícia com seu Deus desajeitado e seu diabo ardiloso. Suas guerras entre imortais, e todo o sublime absurdo que a religião forjou no cérebro de um homem cego. A Teologia ensinada por Multon era querida para um coração puritano. Foi aceita na Nova Inglaterra e envenenou as almas e arruinou as vidas de milhares. O gênio de Shakespeare não poderia fazer a Teologia de Milton poética. Na literatura do mundo não há nada, fora os "livros sagrados", tão perfeitamente absurdo. Nós temos os "Pensamentos noturnos" de Young e suponho que o autor era um devoto e amava os seguidores do Senhor. Entretanto, Young tinha grande desejo de se tornar Bispo, e para conseguir este intento, ele se aproximou da senhora do rei. Em outras palavras, era um grande hipócrita. Em "Pensamentos noturnos" não há uma linha genuinamente honesta. É fingimento, do início ao fim. Ele não escreveu o que pensava, mas o que ele achava que devia pensar. Nós temos o "Curso do tempo" de Pollock, com seus vermes que nunca morrem. Com suas chamas infindáveis, agonias intermináveis, demônios espreitando, seu Deus sádico. Este poema assustador poderia ter sido escrito num hospício. Nele você ouve todos os choros e gemidos dos maníacos, quando eles rasgam as carnes uns dos outros. É tão diabólico, tão sem coração, tão horrível como o capítulo trinta e dois do Deuteronômio. Nós todos conhecemos o belo hino começando com: "ouçam das tumbas, um som lúgubre". Nada mais apropriado para crianças. É para se ter um esquife onde deveria estar um berço. Quando uma mãe acalenta seu filho, é como se um túmulo se abrisse a seus pés. Isto tornaria seu bebê sério, reflexivo, religioso e infeliz. Deus odeia a risada e despreza a alegria. Para se sentir livre, despreocupado, alegre, para esquecer a morte, para se sentir preenchido pelo sol, e sem medo da noite, para esquecer o passado e ter o pensamento no futuro, sem sonhos com Deus, ou céu, ou inferno, ser intoxicado com o presente, ser consciente apenas do abraço e do beijo daqueles que você ama, estes são os pecados contra o Espírito Santo. Mas temos os poemas de Cowper. Este era sincero. Era o oposto de Young. Tinha um olho observador, um coração gentil, e um senso artístico. Simpatizava com todos os que sofriam. Com os prisioneiros, escravos, os excluídos. Amava o belo. Mesmo assim, a crença na punição eterna fez desta alma adorável também um insano. Mesmo com ele, as "Boas novas da alegria" extinguiu a grande estrela da esperança e deixou seu coração partido na escuridão do desespero. Temos muitos volumes de sermões ortodoxos cheios de ódio e terror do julgamento que virá -- sermões que foram proferidos pelos santos selvagens. Temos o livro dos mártires, mostrando que os cristãos imitaram por muitos séculos o Deus que eles adoravam. Temos a história dos Waldenses. Da reforma da Igreja. Temos o progresso do Peregrino, o chamado de Baxter, a analogia de Butler. Para usar a frase ocidental da salvação, descobri que Bispo Butler criou mais serpentes do que matou. Sugeriu mais dificuldades do que resolveu. Mais dúvidas do que explicações. Entre esses livros, minha juventude se passou. Todas essas sementes da Cristandade -- da superstição, eram semeadas em minha mente, e cultivadas com muita diligência e cuidado. IV Em todo esse tempo, não sabia nada de ciência. Nada sobre o outro lado. Nada das objeções que eram necessárias contra as Sagradas Escrituras, ou contra o perfeito Credo Congregacional. Claro que tinha ouvido o pastor falar de blasfemadores, de maus infiéis, de gente debochada que ria das coisas sagradas. Eles não respondiam seus argumentos, mas eles retalhavam seu caráter com fúria que eles faziam o trabalho do diabo. E então, apesar de tudo o que eu tinha ouvido, tudo que havia lido, eu não podia acreditar. Meu cérebro e coração diziam não. Em pouco tempo eu deixei os sonhos, as insanidades, as ilusões, os pesadelos da Teologia. Estudei um pouco de Astronomia -- só um pouco. Examinei os mapas do céu, aprendi os nomes de algumas constelações e de algumas estrelas. Entendi seus tamanhos e as velocidades com as quais giram, obtendo algumas noções dos espaços astronômicos. Descobri que muitas estrelas estão a uma distância tão gigantesca que sua luz, viajando a uma velocidade de trezentos mil quilômetros por segundo, demoraria muitos anos para atingir nosso pequeno mundo. Descobri que, comparado às grandes estrelas, nosso mundo não é mais que um pequeno grão de areia, ou um átomo, descobri que as velhas crenças que os donos do céu haviam criado para nós na terra eram o mais infinito absurdo. Comparei o que realmente se conhecia a respeito das estrelas com o que se sabia da criação contada no Gênesis. Descobri que os inspirados escritores sagrados não sabiam nada de Astronomia. Que eram tão ignorantes como um chefe dos Choctaw. Ou como um esquimó que conduz cães. Alguém imagina que o autor do Gênesis tivesse algum conhecimento sobre o sol? Sobre seu tamanho? Tinha conhecimentos sobre Sirius, a Estrela Polar, Capela? Ou sobre as galáxias, tão distantes de nós que sua luz passa milhões de anos para visitar nossos olhos? Se eles soubesse destes fatos, iriam afirmar que Jeová criou este mundo em seis dias, e que em apenas numa parte da tarde do quarto dia Ele fez o sol, a lua e todas as estrelas? E mesmo assim, milhões de pessoas insistem que esse escritor do Gênesis era inspirado pelo Criador de todos os mundos. Agora, homens inteligentes que não têm pavor, cujos cérebros não foram paralisados pelo medo, sabem que a história sagrada foi escrita por um selvagem ignorante. Eu admito que esse desconhecido fosse sincero, que ele escreveu o que achava que fosse a verdade. Que fez o melhor que pôde. Ele não afirmou ser inspirado -- não fingiu que a historia tivera sido contada a ele por Jeová. Ele apenas contou os "fatos" como ele os entendia. Depois que aprendi um pouco sobre as estrelas, concluí que este escritor, que este escriba "inspirado" enganou-se através de mitos e lendas, que ele não sabia mais sobre a criação do que os Teólogos dos nossos dias. Em outras palavras, ele não sabia absolutamente nada. E agora, vou dizer que aqueles Clérigos me que respondem estão mirando suas armas na direção errada. Esses Reverendos deveriam atacar os Astrônomos. Deveriam amaldiçoar e vilificar Kepler, Newton, Herschel e Laplace. Esses homens foram os verdadeiros destruidores das histórias sagradas. Então, depois de livrar-se deles, deveriam iniciar uma guerra contra as estrelas, e contra o próprio Deus, por deixar pistas que depõem contra a verdade desse livro. Então estudei Geologia. Não muito, só noções. Só o suficiente para encontrar uma maneira geral de como os fatos foram descobertos, e algumas das conclusões a que chegaram. Aprendi alguma coisa sobre a ação do fogo. Da água, sobre a formação das ilhas e continentes. Sobre os sedimentos e rochas, sobre as medições com carbono, sobre as encostas calcárias os recifes de corais, sobre os depósitos feitos pelos rios, sobre os efeitos dos vulcões, o gelo glacial, e todo o mar circundante; só o suficiente para saber que as rochas são muitos milhões de anos mais antigas que a grama abaixo dos meus pés. O suficiente para saber que nosso globo vem girando continuamente ao redor do sol, entre sombra e luz por centenas de milhões de anos, o suficiente para saber que aquele escritor "inspirado" não sabia nada sobre a história da terra, nada sobre as forças da natureza, do vento, das ondas, do fogo, forças que eram construídas de destruídas continuamente durante um tempo incalculável. E deixem-me dizer aos sacerdotes que eles não deveria perder seu tempo respondendo a mim. Deveriam atacar os Geólogos. Deveriam negar os fatos que foram descobertos. Deveriam lançar suas maldições sobre os mares blasfemantes. E bater suas cabeças contra rochas infiéis. Então, estudei Biologia -- não muito -- só o suficiente para saber das formas animais, saber que na época das rochas laurencianas a vida já existia. Que ferramentas de pedra, ferramentas produzidas por mãos humanas, haviam sido encontradas junto de ossadas de animais extintos. Ossos que haviam sido esmigalhados por aquelas ferramentas. E que esses animais haviam sido extintos centenas de milhares de anos da criação de Adão e Eva. Então eu fiquei certo de que as escrituras "inspiradas" eram falsas. Que milhões de pessoas vinham sendo enganadas e que tudo o que era ensinado sobre a origem do mundo era pura mentira. Senti que sabia que o Velho Testamento era o trabalho de homens ignorantes -- que era uma mistura de verdades e erros, de sabedoria e idiotice, de crueldade e bondade, de Filosofia e absurdos -- que ela continha alguns pensamentos elevados, alguma poesia, um bom número de ditos solenes e lugares-comuns, -- alguns histéricos, outros suaves, algumas orações maldosas, algumas previsões insanas, algumas alucinações, e alguns sonhos caóticos. É claro que os Teólogos lutaram contra os fatos descobertos pelos Geólogos, pelos Cientistas, e tentaram sustentar as Sagradas Escrituras. Tentaram confundir ossos de mastodontes com os de seres humanos, alegando orgulhosamente que eram gigantes que existiam naqueles tempos. Alguns afirmaram que os ossos haviam sido ali colocados por Deus para testar nossa fé, ou que o diabo havia imitado o trabalho do Criador. Responderam aos Geólogos afirmando que no Gênesis os dias eram longos períodos de tempo, e que na verdade o dilúvio poderia der sido um fenômeno local. Disseram aos Astrônomos que o sol e a lua havia sido não realmente, mas só aparentemente parados. E que a aparência se devia a fenômenos de reflexo e refração da luz. Desculparam a escravidão e a poligamia, as pilhagens e assassinatos acontecidos no Velho Testamento dizendo que aquelas pessoas eram tão degradadas que Jeová tinha sido obrigado a por fim à sua ignorância e maldade. A todo momento os Clérigos tentaram evadir-se dos fatos, escamotear a verdade e preservar a fé. No princípio eles simplesmente negavam os fatos -- depois os diminuíam -- depois se harmonizavam com eles. Depois negavam que os haviam negado. Então eles modificaram o significado dos livros "inspirados" para se adaptar aos fatos. No início afirmaram que se os fatos relatados fossem verdadeiros, a Bíblia seria falsa e o Cristianismo seria uma superstição. Depois admitiram que os fatos, eram verdadeiros e que eles comprovavam, acima de qualquer dúvida a inspiração da Bíblia e a origem divina da religião ortodoxa. Qualquer coisa da qual não podiam se esquivar, engoliam. E qualquer coisa que não engoliam, esquivavam-se. Desisti de acreditar no Velho Testamento por causa de seus erros, de seus absurdos, sua ignorância, suas crueldades. Desisti de acreditar no Novo porque ele testemunhava a verdade do Velho. Desisti do Novo devido aos seus milagres, suas contradições, porque Cristo e seus discípulos acreditavam em demônios -- conversavam e barganhavam com eles, expulsavam-nos de pessoas e animais. Isto, por si só já diz tudo. Sabemos que demônios não existem. Cristo nunca os expulsou. E se fingiu fazê-lo, ele era ou ignorante, desonesto ou insano. Essas histórias sobre demônios atestam a origem humana e supersticiosa do Novo Testamento. Rejeito o Novo Testamento porque ele recompensa a credulidade, castiga homens bravos e honestos, e porque ele ensina o infinito horror do castigo eterno. V Tendo passado minha juventude lendo livros religiosos -- sobre a "ressurreição" -- a desobediência dos nossos pais primitivos, o arrependimento, a salvação pela fé, a maldade do prazer, as conseqüência degradante do amor, a impossibilidade de atingir o céu de pessoas honestas e generosas, tornando-me cansado dos pensamentos confusos e esfarrapados, você pode imaginar a satisfação que senti ao ler os poemas de Robert Burns. Eu estava familiar com as escrituras dos devotos e mentirosos, os piedosos e petrificados, os puros e impiedosos. Aqui estava um homem naturalmente honesto. Já conhecia os escritos dos homens que consideravam a natureza depravada, que encaravam o amor como testemunha perpétua do pecado original. Aqui estava um homem que tirava alegria da lama, fazia mulheres caipiras deusas, e entronizava o homem honesto. Aquele que, com simpatia, braços aconchegantes, abraçava toda forma sofredora de vida, que odiava escravidão de qualquer tipo, que era tão natural como o azul do céu, com humor tão suave como o outono, com uma inteligência tão aguçada como a lança de Ithuriel, com uma irreverência tão devastadora como o fôlego de Simão. Um homem que amava seu mundo, sua vida, as coisas do dia-a-dia, e colocava acima de tudo a êxtase excitante do amor humano. Eu li e li novamente com alegria, lágrimas e sorrisos , sentimentos que um grande coração era revelado entre as linhas. Os poetas religiosos, lúgubres, artificiais, espirituais foram esquecidos ou permaneceram como fragmentos da parte lembradas dos horrores dos sonhos monstruosos ou distorcidos. Tinha encontrado afinal o homem que desprezava a crença cruel do seu povo, e que era corajoso e sensível o suficiente para dizer: "todas as religiões são histórias da carochinha, mas o homem honesto não tem o que temer nem neste mundo nem em mundos do futuro". Um homem que teve a generosidade de escrever a Oração de São Willie, um poema que crucificava os calvinistas, e trespassou seus corações impiedosos com a lança do bom senso. Um poema que fez de qualquer crença alimento para a galhofa, um motivo para gargalhadas. Burns teve suas, fraquezas, seus defeitos. Era intensamente humano. Entretanto, preferia aparecer no "Banco dos réus" bêbado e ser capaz de dizer que sou o autor de "para que serve o homem" a ser perfeitamente sóbrio e admitir que passei a vida como um escocês plesbiteriano. Li Byron -- li seu Caim no qual, como no Paraíso perdido, o diabo parece ser o melhor deus -- li suas lindas, sublimes e amargas linhas -- li seu prisioneiro de Chillon -- seu melhor -- um poema que encheu meu coração de ternura, de piedade, e com um ódio eterno à tirania. Li a Rainha Mab de Shelley -- poema cheio de beleza, coragem, pensamento, simpatia, lágrimas e ironia, na qual uma alma corajosa derruba os muros de uma prisão e preenche suas celas com luz. Li sua Andorinha -- uma chama alada -- apaixonada como sangue -- suave como lágrimas -- pura como a luz. Li Keats, "cujo nome estava escrito na água" -- Li St. Agendes Eve, uma história escrita com tão pouca arte que este pobre mundo parece ser uma terra maravilhosa -- um vaso grego que enche a alma com todo o vívido amor, com todo o êxtase da música imaginada -- a cotovia -- a melodia na qual há memória da manhã -- a melodia que morre na escuridão e lágrimas, impingindo os sentidos com sua perfeição. E então li Shakespeare, as peças, os sonetos, os poemas -- li tudo. Senti um novo céu e uma nova terra. Shakespeare, que conhecia o cérebro e o coração do homem -- as esperanças e medos, os amores e ódios, os vícios e virtudes da espécie humana: cuja imaginação leu as imagens borradas de lágrimas, as páginas manchadas de sangue de todo o passado, viu caindo sobre os pergaminhos espalhados, a luz da esperança e do amor; Shakespeare, que sondou toda a profundidade, enquanto os picos mais altos sentiram a sombra das suas asas. Comparo as peças com os livros "inspirados" -- Romeu e Julieta com a Canção de Salomão, rei Lear com Jó, e os sonetos com os Salmos e descobri que Jeová não conhecia a arte do discurso. Comparei as mulheres de Shakespeare -- sua mulheres perfeitas -- com as mulheres da Bíblia. Percebi que Jeová não era um escultor, nem um pintor nem um artista, que ele não tinha o poder de transformar barro em carne, a arte, o sentido plástico que molda a forma perfeita -- o alento que dá a vida livre e alegre -- o gênio que cria a culpa. Os livros sagrados de todo o mundo são escórias inúteis e pedras sem valor comparadas com o ouro brilhante e as pedras preciosas de Shakespeare. VI Até então não tinha lido nada contra nossa abençoada religião exceto o que tinha encontrado em Burns, Byron e Shelley. Quase por acaso li Volney que mostrou que todas as religiões são e foram estabelecidas da mesma maneira -- que todas tinham seus Cristos, seus apóstolos, milagres e livros sagrados, e que perguntou como seria possível decidir qual seria o verdadeiro. Uma questão que ainda espera uma resposta. Li Gibbon, o maior de todos os historiadores, que moldou seus fatos tão inteligentemente como César moldou suas legiões, e aprendi que Cristianismo é apenas mais um sinônimo de Paganismo -- para as velhas religiões, tosadas da sua beleza -- que alguns absurdos têm sido substituídos por outros -- que alguns deuses foram mortos -- uma grande multidão de diabos criados, e que o inferno foi ampliado. E então li "A idade da razão" de Thomas Paine. Deixe-me falar um pouco deste sublime e elegante homem. Ele veio para este país logo antes da revolução. Ele trazia uma carta de apresentação de Benjamin Franklin, naquela época o maior americano. Em Filadélfia, Paine foi empregado para escrever numa revista, a "Revista da Pensilvânia". Sabemos que ele escreveu pelo menos cinco artigos. O primeiro era contra a escravidão, o segundo contra os duelos, o terceiro sobre o tratamento dos presos -- mostrando que o objetivo deveria ser recuperar, e não punir ou degradar -- o quarto sobre os direitos da mulher, e o quinto, sobre a formação de sociedades para proteção de crianças e dos animais. Daí você vê que ele propunha a grande reforma do nosso século. A verdade é que ele lutou durante toda a sua vida para o bem dos seus semelhantes, e fez tudo o que pode para a fundação da grande república, mais que qualquer outro homem diante da nossa bandeira. Ele deu suas opiniões sobre religião -- sobre as Sagradas Escrituras, e sobre a superstição no seu tempo. Era perfeitamente sincero e o que ele dizia era claro e honesto. A Idade da Razão encheu de ódio os corações daqueles que amavam seus inimigos, e todo o clérigo se tornou, e ainda o é, feroz inimigo de Thomas Paine. Ninguém respondeu -- ninguém quer responder, seus argumentos contra os dogmas da inspiração -- suas objeções contra a Bíblia. Ele não se levantou contra as superstições do seu tempo. Enquanto ele odiava Jeová, ele amava o Deus da Natureza, o criador e mantenedor de tudo. Nisto ele estava errado, porque, como Watson dissera em resposta a Thomas Paine, o Deus da Natureza é tão impiedoso e cruel como o Deus da Bíblia. Mas Paine foi um dos pioneiros -- um dos Titãs, um dos heróis, que orgulhosamente deram sua vida, todos os seus atos e pensamentos, para libertar e civilizar o homem. Li Voltaire. Voltaire, o maior homem deste século, que contribuiu mais para a liberdade de pensamento e de expressão que qualquer outro ser, humano ou "divino". Voltaire, que tirou a máscara da hipocrisia e encontrou abaixo do sorriso pintado as garras do ódio. Voltaire, que atacou a selvageria da lei, as decisões cruéis dos tribunais, resgatou pessoas vítimas das rodas e dos patíbulos. Voltaire, que declarou guerra contra a tirania dos tronos, a ambição e iniqüidade do poder. Voltaire, que encheu as carnes dos padres com a lança pontudas da sua sabedoria, que fez o juiz piedoso que o amaldiçoou em público, rir de si próprios em privado. Voltaire, que se juntou aos oprimidos, resgatou os desafortunados, apoiou o obscuro e o fraco, civilizou juizes, repeliu leis e aboliu a tortura em seu país natal. Em todas as direções, este incansável homem lutou contra o absurdo, o miraculoso, o supersticioso, o idiota, o injusto. Ele não tinha nenhuma reverência pelo antigo. Não tinha qualquer inclinação pela pompa e cerimonial. Pelos crimes da coroa ou pretensão de mitra. Abaixo da coroa ele encontrou um criminoso, abaixo da mitra, um hipócrita. No âmago da sua consciência, da sua razão, ele denunciou o barbarismo e os bárbaros do seu tempo. Denunciou tudo isto e seu julgamento tem sido reafirmado por todo o mundo. Voltaire acendeu a tocha e deu a outros a chama sagrada. E continuará brilhando enquanto o homem amar a liberdade e a verdade. Li Zeno, o homem que disse, séculos antes de Cristo ter nascido, que um homem não podia ser dono de outro homem. "Não importa que você afirme que seu escravo foi comprado ou capturado. Aqueles que afirmam possuir seu semelhante olham para as profundezas e esquecem da justiça que deveria governar o mundo". Tomei conhecimento de Epicurus, que ensinou a religião na utilidade, da temperança, da coragem e sabedoria, e que disse: "Por que eu deveria temer a morte? Se existo, a morte não existe. Quando ela existir, eu não mais estarei aqui. Então, por que eu temeria algo que só existirá quando eu não mais existir?". Li sobre Sócrates, quando em julgamento por sua vida, disse, entre outras coisas, para seus juizes estas maravilhosas palavras: "Não procurei durante minha vida acumular riquezas ou adornar meu corpo, mas procurei enfeitar minha alma com as jóias da sabedoria, paciência, e acima de tudo, com o amor da liberdade." Então, li sobre Diógenes, o filósofo que odiava o supérfluo -- o inimigo do desperdício e da ganância, e que um dia entrou num templo, com reverência aproximou-se do altar, esmagou um piolho entre as unhas dos seus polegares e disse solenemente: "O sacrifício de Diógenes a todos os deuses". Ele parodiou todas as crenças e colocou a essência da religião. Diógenes devia saber sobre as passagens "inspiradas" -- "Sem derramamento de sangue não há remissão dos pecados". Comparo Zeno, Epicuro e Sócrates, três pagãos miseráveis que nunca tinham ouvido falar do Velho Testamento ou dos Dez Mandamentos, com Abraão, Isaac e Jacó, três favoritos de Jeová, e eu seria depravado o suficiente para achar que os pagãos eram superiores aos patriarcas -- e ao próprio Jeová. VII Então, minha atenção se voltou para outras religiões, para os livros sagrados, os credos e cerimônias de outros países -- da Índia, Egito, Assíria, Pérsia, dos povos extintos e ainda existentes. Concluí que todas as religiões tiveram a mesma fundação -- a crença no sobrenatural -- uma força acima da natureza que o homem poderia influenciar pela adoração, sacrifício e oração.. Descobri que as religiões repousam sobre uma compreensão equivocada da natureza -- que a religião de um povo era a ciência desse povo, ou seja, sua explicação sobre o mundo, sobre a vida e morte, sobre a origem e destino. Percebi que todas as religiões tinham substancialmente a mesma origem, e que não havia mais que uma religião no mundo. As ramos e as folhas podiam mudar, mas o tronco era o mesmo. O pobre africano que dedica seu coração a deuses de pedra está no mesmo nível do clérigo bem adornado que suplica a seu Deus. Os mesmos erros, as mesmas superstições, junta os joelhos e atinge os olhos de ambos. Ambos anseiam por ajuda sobrenatural e nenhum dos dois tem a menor noção da uniformidade da natureza. Parece provável que o primeiro cerimonial religioso tenha sido a adoração do sol. O sol era o "pai do céu", o que "via tudo", a fonte de vida, o lado flamejante do mundo. O sol era considerado o deus que combatia a escuridão, a força do mal, o inimigo do homem. Houve muitos deuses-sóis e eles pareciam ser a principal divindade das antigas religiões. Eles foram adorados em muitas regiões, muitos povos que já atingiram a extinção. Apolo era um deus-sol que combateu e conquistou a serpente da noite. Baldur era um deus-sol. Era apaixonado pela manhã, uma donzela. Krishna era um deus-sol. Ao seu nascimento, o Ganges foi formado, desde sua nascente até o mar, e todas as árvores, as mortas e as viventes, floresceram em folhas e flores. Hércules era um deus-sol, e também o era Sansão, cuja força estava nos cabelos, ou seja, em sua luz. Foi tosado em sua força por Dalila, a sombra, a escuridão. Osiris, Baco, Mitra, Buda, Quetzalcoalt, Prometeu, Zoroastro, Perseu, Cadom, Lao-tsé, Fo-hi, Horus, Ramsés, eram todos deuses-sóis. Todos estes deuses tinham deus como pai e eram filhos de virgens. O nascimento de quase todos foi anunciado por uma estrela, celebrado por música celestial, e vozes declararam que tinham vindo para abençoar este pobre mundo. Todos eles nasceram em local pobre. Em cavernas, abaixo duma árvore, em hospedarias simples. Tiranos tentaram destruí-los a todos quando ainda eram bebês. Todos estes deuses-sóis nasceram no solstício de inverno. No Natal. Quase todos foram adorados por sábios magos. Todos jejuaram por quarenta dias. Todos ensinaram em parábolas. Todos experimentaram milagres. Todos tiveram uma morte violenta e todos ressuscitaram dos mortos. A história desses deuses é exatamente a história do nosso Cristo. Isto não é uma coincidência, um acidente. Cristo era um deus-sol. Cristo foi um nome novo para uma velha biografia -- uma sobrevivência. O último dos deuses-sóis. Cristo não era um homem, mas um mito. Não uma vida, mas uma lenda. Descobri que nós não apenas pegamos emprestado nosso Cristo. Mas todos os nossos sacramentos, símbolos e cerimônias foi um legado que recebemos de um passado sepultado. Não há nada de original no Cristianismo. A cruz já era um símbolo milhares de anos antes de nossa era. Era um símbolo da vida. Da imortalidade -- do cordeiro de Deus, e era já colocada em tumbas muitas eras antes de uma só linha da Bíblia ser escrita. Batismo é muito mais antigo que o Cristianismo e Judaísmo. Os hindus, egípcios, gregos, batizavam-se muito antes de um católico ter vivido. A eucaristia foi emprestada dos pagãos. Ceres foi uma deusa dos campos. Baco, o do vinho. Nas suas festas eles molhavam o pão no vinho e diziam: "Esta é a carne da deusa". Então, bebiam vinho e choravam: "Este é o sangue do nosso deus". Os egípcios tinham uma trindade. Adoravam Osíris, Ísis e Orus milhares de anos antes que o Pai, o Filho e o Espírito Santo fossem conhecidos. A árvore da vida cresceu na Índia e entre os Astecas muito antes do Jardim do Éden ser plantado. Muito antes da Bíblia ser escrita, outros povos haviam tido seus livros sagrados. Os dogmas da tentação do homem, do arrependimento e a salvação pela fé são muito mais antigos que nossa religião. Em nossos Evangelhos abençoados -- em nosso "esquema divino" -- não há nada novo, nada original. Tudo é velho -- emprestado, remendado, adaptado. Então conclui que todas as religiões foram produzidas naturalmente, e que todas eram variações, modificações de uma. Então senti que eram todas produto do trabalho do homem. VIII Os Teólogos sempre insistiram que seus deuses eram os criadores de todas as coisas vivas -- que as formas, partes, funções, cores e variedades de animais eram expressão se sua vontade, gosto e sabedoria. Que eles foram produzidos exatamente da mesma forma que existem hoje. Que ele inventou barbatanas, pernas e asas, que ele colocou para esses seres armas para o ataque, carapaças para defesa, que os adaptou para tipos de alimento e clima, levando em consideração todos os fatos relacionados com a vida. Insistiram que o homem era um tipo especial de criação, não relacionado com os animais abaixo dele. Eles também afirmaram que todas as formas de vegetação, de plantas pequenas a florestas eram exatamente iguais às formas que tinham na criação. Homens de inteligência, que em sua maior parte eram livres de preconceitos religiosos, examinaram essas coisas -- estavam procurando fatos. Examinaram fósseis de animais e plantas, estudaram formas de animais, seus ossos e músculos, os efeitos do clima e da alimentação, as estranhas modificações pelas quais eles passaram. Humboldt publicou seus estudos, preenchidos por grandes pensamentos, com esplêndidas generalizações, com sugestões que estimulavam o espírito da observação, e com conclusões que satisfaziam a mente. Ele demonstrou a uniformidade da natureza, o parentesco entre todos os seres que vivem e crescem, que respiram e pensam. Darwin, com seu "Origem das Espécies", sua teorias sobre seleção natural, a sobrevivência dos mais adaptados, a influência do ambiente, derramou uma enchente de luz sobre o grande problema das plantas e vida animal. Estas coisas têm sido pensadas, afirmadas, sugeridas por muitos outros, mas Darwin, com infinita paciência, com perfeito cuidado e candura, encontrou os fatos, preencheu as profecias, demonstrou a veracidade dos fatos, suposições e declarações. Ele foi, em meu julgamento, o mais inteligente observador, o melhor julgador dos significados e valores de um fato, o maior naturalista que o mundo já produziu. A visão teológica começou a parecer pequena e vil. Spencer mostrou sua teoria da evolução e sustentou-a através de incontáveis argumentos. Colocou-se em grande altitude, e com visão de filósofo, um profundo pensador, pesquisou o mundo. Ele tem influenciado o pensamento dos mais sábios. Teologia pareceu mais absurda do que nunca. Huxley entrou na lista por Darwin. Nenhum homem tivera melhor espada -- uma melhor bainha. Desafiou o mundo. Os grandes teólogos e os pequenos cientistas -- aquelas que tinham mais coragem que razão, aceitaram o desafio. Seus pobres corpos foram levados embora pelos amigos. Huxley teve inteligência, genialidade, e coragem para expressar suas idéias. Ele era absolutamente leal para o que ele acreditava que fosse verdade. Sem preconceito e sem medo ele seguiu os passos da vida desde as menores formas até as maiores. Teologia parecia menor ainda. Haeckel começou na mais simples célula, foi de mudança a mudança -- de forma em forma -- seguiu a linha do desenvolvimento, o caminho da vida, até atingir a espécie humana. Era tudo natural. Não havia qualquer interferência do exterior. Li os trabalhos desses grandes homens. E muitos outros. E fiquei convencido de que estavam certos, e que todos os teólogos, todos os que acreditavam na "criação especial" estavam absolutamente errados. IX Dei um passo seguinte. O que é matéria -- substância? Pode ser destruída, aniquilada? É possível conceber a destruição do mais simples átomo de substância? Ela pode ser reduzida a pó -- mudada de sólido para líquido -- de líquido a gás, mas tudo isto permanece. Nada é perdido, nada é destruído. Deixe um Deus infinito, se há algum, atacar um grão de areia -- atacá-lo com infinita força. Não poderá ser destruído. Ele não se renderá. Ele desafia todas as forças. Substância não pode ser destruída. Então dei mais um passo. Se matéria não pode ser destruída, não pode ser aniquilada, não pode ter sido criada. O indestrutível tem de ser incriável. Então perguntei a mim mesmo: o que é força? Não podemos conceber a criação da força, ou de sua destruição. Força pode ser mudada de uma forma para outra -- de movimento para calor -- mas não pode ser destruída, aniquilada. Se a força não pode ser destruída, não pode ser criada. É eterna. Outra coisa. Matéria não pode existir separadamente da força. Força não pode existir separadamente da matéria. Matéria e força só podem ser concebidas em conjunto. Isto tem sido mostrado por vários cientistas, mas mais claramente por Buchner. Mente é uma forma de força, portanto ela não poderia formar ou criar matéria. Inteligência é uma forma de força que não poderia existir separadamente da matéria. Sem matéria não poderia existir mente, vontade, força de qualquer tipo, e não poderia existir qualquer substância sem força. Matéria e força não foram criadas. Elas existem desde sempre. Não podem ser destruídas. Não houve, não há nenhum criador. Então, vem a questão; Há um Deus? Haverá um ser de infinita inteligência, força e bondade, que governa o mundo? Pode haver bondade sem muita inteligência. Mas parece-me que infinita bondade e infinita inteligência têm de estar juntas. Na natureza vejo, ou pareço ver, bem e mal -- inteligência e ignorância, bondade e crueldade, cuidado e desprezo, economia e desperdício. Vejo meios que não justificam os fins -- formas que parecem falhar. Parece-me infinitamente cruel que vida se alimente de vida -- criar animais que devorem outros. Os dentes e presas, garras e patas, que amedrontam e aprisionam, enchem-me de horror. O que pode ser mais assustador que um mundo em guerra? Todo local, um campo de batalha. Toda flor um Golgotha -- em toda gota de água, perseguição, captura e morte. Em baixo de qualquer casca de árvore, vida espreitando vida. Em qualquer lâmina de vidro, algo que mata, -- algo que sofre. Em toda a parte o forte vivendo do fraco, o superior no inferior. Em toda a parte, o fraco, o insignificante vivendo no forte, o inferior no superior. O maior, alimento para o menor, homens sacrificados como alimento de micróbios. Assassinatos em todo o universo. Em todo local, dor, doença e morte. Morte que não espera por maturidade ou cabelos brancos, mas que leva bebês e juventude feliz. Morte que leva a mãe da criança desamparada, morte que enche o mundo com tristeza e lágrimas. Como pode o cristão explicar estas coisas? Sei que a vida é boa. Lembro o sol brilhando e a chuva. Então, penso em enchentes e terremotos. Não esqueço a saúde, o lar, o amor. Mas e as epidemias e a fome? Não posso harmonizar todas estas contradições -- estas bênçãos e agonias, com a existência de um Deus infinitamente bom, sábio e poderoso. Os teólogos afirmam que o que chamamos mal é para nosso próprio benefício, que nós fomos colocados neste mundo de tristezas e pecado para desenvolver o caráter. Se isto é verdade, pergunto por que crianças morrem? Milhões e milhões respiram umas poucas vezes e desfalecem para sempre nos braços de suas mães. A estas não é permitido desenvolver o caráter. Teólogos afirmam que serpentes possuem presas para se defender nos inimigos. Por que Deus que as fez, fez também seus inimigos? E por que muitas espécies de serpentes não têm presas? Teólogos dizem que Deus fez os hipopótamos com carapaça de escamas e placas, exceto as partes inferiores para que outros animais não os ataquem. Mas o mesmo Deus fez o rinoceronte com chifres pontiagudos com os quais ele pode estripar um hipopótamo. O mesmo Deus fez a águia, o abutre, o falcão e também suas presas indefesas. Em todo lado parece haver criação para atacar criação. Se Deus criou o homem -- se é o pai de todos nós, por que ele fez os criminosos, os dementes, os deformados, os idiotas? Deverá um homem inferior agradecer a Deus? Deverá uma mãe que carrega nos seus braços uma criança idiota agradecer a Deus? O escravo tem que agradecer a Deus? Teólogos afirmam que Deus governa o vento, a chuva, o relâmpago. Então, o que dizer dos ciclones, enchentes, a seca, o raio que matam? Suponha que haja alguém neste país que controla o vento, a chuva, o relâmpago, e suponha que o elejamos para governar estas coisas, e suponha que ele faça com que todos os estados sequem e que ao mesmo tempo, desperdice água no mar. Suponha que ele permita que o vento destrua cidades e que esmague milhares de homens e mulheres, e que raios fulminem mulheres e crianças. O que diríamos? O que deveríamos achar de tal selvagem? E no entanto, de acordo com teólogos, este é exatamente o curso seguido por Deus. O que achar de um homem, que não quer, apesar de poder, ajudar seus amigos? Entretanto o Deus cristão permitiu que seus inimigos torturassem e queimassem seus amigos e adoradores. Quem terá ingenuidade suficiente para explicar isto? O que um homem, podendo prevenir, permitiria que um inocente fosse aprisionado, jogado em masmorras, para ver esvair-se sua pobre vida naquele lugar? Se Deus governa o mundo, por que a inocência não é uma perfeita proteção? Por que a injustiça triunfa? Quem pode responder estas perguntas? Em resposta, o homem inteligente e honesto deve dizer: Eu não sei. X Este Deu deve ser, se existir, uma pessoa -- um ser consciente. Quem pode imaginar uma personalidade infinita? Este Deus tem que ter força e não é concebível força independente de matéria. Este Deus tem de ser material. Ele tem de ter meios pelos quais ele transforma força no que chamamos pensamento. Quando ele pensa, usa força; força que tem de ser substituída. E nos dizem que ele é infinitamente inteligente. Se é, ele não pensa. Pensamento é uma escada, um processo pelo qual nós atingimos uma conclusão. Aquele que já sabe todas as conclusões, não pensa. Ele não pode ter esperança nem medo. Quando o conhecimento é perfeito não pode haver paixão, nem emoção. Se Deus é infinito ele não quer. Ele já tem tudo. E aquele que não quer, não faz. O infinito deve viver na calma eterna. É tão impossível conceber tal ser como imaginar um triângulo quadrado, ou um círculo sem diâmetro. E no entanto nós somos ensinados a amar esse Deus. Podemos amar o desconhecido, o inconcebível? Poderá ser nossa obrigação amar alguém? É nossa obrigação agir com justiça, honestidade, mas não pode ser nossa obrigação amar. Não podemos ser obrigados a admirar uma pintura -- a apreciar um poema -- ou amar uma música. Admiração não pode ser controlada. Gosto e amor não são dependentes da vontade. Amor é, e deve ser livre. Ele surge do coração como o perfume de uma flor. Por milhares de anos homens têm tentado amar os deuses -- tentando amaciar seus corações, tentando obter sua ajuda. Vejo todos eles. O panorama passa na minha frente. Vejo-os com as mãos estendidas -- com olhos respeitosamente fechados -- adorando o sol. Vejo-os curvando-se, no seu medo e necessidade, diante de pedras -- implorando a serpentes, bestas e árvores sagradas -- rezando para ídolos de pedra e madeira. Vejo-os construindo altares para forças invisíveis, manchando-os com o sangue de crianças e de animais. Vejo os sacerdotes e ouço seus cânticos solenes. Vejo as vítimas moribundas, os altares esfumaçados, os incensadores balançando, a fumaça subindo. Vejo homens semi-deuses -- os cristãos penitentes, em muitos países. Vejo notícias de coisas comuns da vida transformando-se em milagres, à medida que se espalham de boca em boca. Vejo profetas loucos lendo livros secretos do destino através de sinais e sonhos. Vejo todos eles -- os assírios recitando as orações de Ashnur e Ishtar -- os hindus adorando Brahma, Vishnu e Draupadi, os braços brancos -- os caldeus oferecendo sacrifícios a Bel e Hea -- os egípcios curvando-se para Ptah e Ftah, Osíris e Ísis -- os medas aplacando a tempestade -- adorando o fogo -- os babilônios suplicando a Bel e Murodach -- vejo todos eles à beira do Eufrates, do Nilo, do Tigre, o Ganges. Vejo os gregos construindo templos a Zeus, Netuno e Vênus. Vejo os romanos ajoelhando-se para centenas de deuses. Vejo outros construindo ídolos e depositando neles todas as suas esperanças e medo, Vejo as multidões boquiabertas recebendo como verdades os mitos e fábulas de tempos passados. Vejo-os dando suas ferramentas, suas fortunas para vestir o sacerdote, para construir os telhados abobadados, as naves espaçosas, as cúpulas elevadas. Vejo-os esfarrapados, amontoados em cabanas, devorando migalhas e restos, porque tinham dado o melhor para fantasmas e deuses. Vejo-os construindo suas crenças horríveis e enchendo o mundo de ódio, guerras e morte. Vejo-os com suas faces empoeiradas nos anos negros da peste e da morte súbita, quando bochechas eram murchas e lábios eram pálidos por falta de pão. Ouço suas rezas, seus suspiros, suas lamentações. Vejo-os beijar lábios inconscientes enquanto suas lágrimas mornas molham a face pálida do morto. Vejo as nações crescerem e decaírem. Vejo-as serem capturadas e escravizadas. Vejo seus altares desmoronarem como a terra comum, seus templos se desmanchando até virar pó. Vejo seus deuses envelhecerem, enfraquecerem, adoecerem e desaparecerem. Vejo-os caindo de tronos nevoentos desamparados e mortos. Os adoradores não recebiam qualquer ajuda. A injustiça triunfava. Trabalhadores eram pagos com chicote -- bebês, vendidos, -- inocentes colocados no patíbulo, os heróis queimando em chamas. Vejo os terremotos destruindo, os vulcões transbordando, os ciclones devastando, as enchentes destruindo, os raios matando. As nações pereceram. Os deuses morreram. As ferramentas e as riquezas, perdidas. Os templos haviam sido construído em vão, e as preces não respondidas morreram no ar. Então perguntei a mim: há uma força sobrenatural -- uma mente arbitrária, um Deus entronizado -- um ente supremo que faz oscilar as marés e ventos, do qual tudo depende? Não nego. Eu não sei -- mas não acredito. Acho que o natural é o supremo -- que da cadeia infinita nenhum elo pode ser quebrado -- que não há qualquer ser sobrenatural que responda às preces. Nenhuma força que se adore pode modificar as coisas -- nenhuma força que cuide do homem. Acredito que com braços infinitos a natureza abrace o tudo -- que não há qualquer interferência -- qualquer possibilidade -- que atrás de qualquer fato estão as necessárias e incontáveis causas e além de qualquer fato, os necessários e incontáveis efeitos. O homem deve proteger a si próprio. Ele não pode depender do sobrenatural -- do imaginário pai do céu. Ele pode se proteger compreendendo os fatos da natureza, desenvolvendo sua mente, até o ponto em que ele poderá suplantar as dificuldades e tirar benefícios das forças da natureza. Há um Deus? Não sei. O homem é imortal? Não sei. Uma coisa eu sei, e é que nem a esperança, nem o medo, crença, negação, podem mudar os fatos. As coisas são como são, e serão como deverão ser. Nós esperamos e temos esperanças. XI Quando me tornei convencido de que o Universo é natural -- que todos os deuses e fantasmas eram mitos, entraram na minha mente, na minha alma, em cada gota do meu sangue, o senso, o sentimento e a alegria da liberdade. Os muros da prisão racharam e caíram. As masmorras foram invadidas pela luz, e todas as travas, as algemas, as barreiras, viraram pó. Eu não era mais um servo, um servente ou um escravo. Não havia mais para mim nenhum mestre em todo este gigantesco mundo -- nem mesmo no espaço infinito. Eu estava livre -- livre para pensar, para expressar meus pensamentos, livre para viver meu próprio ideal, livre para viver para mim e para aqueles que amo. Livre para rejeitar toda e qualquer crença cruel e ignorante, todos os "livros sagrados" que selvagens ignorantes produziram, e todas as bárbaras lendas do passado, livre de papas e padres, livre de todos os "chamados" e dos "excluídos", livre dos erros santificados e das mentiras santas, livre do medo de sofrimento eterno, livre dos monstros alados da noite -- livre de diabos, fantasmas e deuses. Pela primeira vez eu era livre. Não havia lugares proibidos em qualquer recanto da mente -- não havia ar ou espaço que a imaginação não pudesse atingir com suas asas coloridas -- nenhuma algema me prendendo -- nenhum chicote nas minhas costas -- nenhum fogo na minha carne, nenhum mestre me encarando nem ameaçando, nada mais de seguir os passos dos outros, nenhuma necessidade de me curvar, ajoelhar ou rastejar, ou expressar palavras mentirosas. Eu estava livre. Coloquei-me de pé e sem medo e alegremente, encarei o mundo. E então, meu coração foi preenchido de gratidão, com a paixão por todos aqueles heróis, os pensadores, que deram suas vidas pela liberdade de mãos e cérebros, pela liberdade de trabalho e pensamento, por aqueles que tombaram nos campos cruéis da guerra, por aqueles que morreram nas masmorras, acorrentados, por aqueles que subiram orgulhosamente os degraus do patíbulo, aqueles cujos ossos foram esmagados, cujas carnes foram feridas e rasgadas, por aqueles consumidos pelo fogo, por todos os bravos, sábios e bons de todos os países, cujo saber e ações resultaram em liberdade para os filhos dos homens. Quando me dispus a segurar a tocha que eles acenderam e a ergui no alto, aquela chama pôde ainda iluminar a escuridão. Vamos ser verdadeiros para nós mesmos. Verdadeiros para os fatos que conhecemos e, acima de tudo, preservar a veracidade de nossas almas. Se há deuses, não podemos ajudá-los. Mas podemos ajudar nossos semelhantes. Não podemos amar o inconcebível, mas podemos amar nossas esposas, filhos e amigos. Podemos ser tão honestos quanto ignorantes. Se formos perguntados sobre o que há além do horizonte do desconhecido, nós devemos responder que não sabemos. Nós podemos dizer a verdade e podemos gozar da liberdade abençoada que os bravos conquistaram. Podemos destruir os monstros da superstição, a serpente silvante da ignorância e do medo. Podemos afastar nossas mentes das coisas assustadoras que dilaceram e ferem com bicos e garras. Podemos civilizar nosso semelhante. Podemos preencher nossas vidas com ações generosas, com palavras carinhosas, com arte e música e todo o êxtase do amor. Podemos inundar nossos anos com o brilho do sol -- com o clima divino da candura, e podemos beber até a última gota do cálice dourado da felicidade.

RELIGIÕES UNIVERSAIS

As religiões apresentadas até agora não saíram das regiões em que foram criadas. Mesmo o taoísmo e o hinduísmo, que têm interesses e valores que ultrapassam as limitações geográficas e étnico-políticas por suas mensagens e preocupações que não se limitam a um Estado e a um povo, não tiveram e não têm um impulso que os levassem além das fronteiras da China e da Índia. O hinduísmo, a bem da verdade, conhece um movimento de ‘renascimento’, começado no fim do século XVIII, depois do impacto provocado pela colonização ocidental. No século passado e no atual, grandes personalidades se debruçaram sobre as tradições e obras sagradas hindus, realizando uma purificação das práticas religiosas e, concomitantemente, enfocando os grandes problemas humanos e sociais da Índia. Entre estas personalidades, está o Mahatma (= grande alma) Gandhi (1869-1948) que na Índia é considerado, mais do que líder político, um grande mestre espiritual. A Ahimsã (não violência) que ele pregava era, na sua intuição, não tanto instrumento de reivindicação política, quanto a estrada mestra para alcançar a Verdade (Satya) de Deus e para se deixar levar por ela. Hoje em dia, o hinduísmo adquiriu um impulso missionário e podemos encontrar até em nossas cidades os jovens do Hare Khrisna que pedem contribuições - cabeças raspadas e longas túnicas alaranjadas -, ou ler notícias sobre gurus indianos que doutrinam nos Estados Unidos ou na Europa. Mas se o internacionalismo do hinduísmo é recente, uma outra religião nascida na Índia, o budismo, espalhou-se pelo mundo oriental - hoje também pelo ocidental -, sem respeitar barreiras étnicas ou políticas, adotado, aliás, como religião de estado por reis não indianos. Sorte parecida teve o cristianismo surgido numa pequena região periférica do império romano que, perseguido no início, aos poucos se impôs como religião oficial desse império e, quando de sua queda, tornou-se a religião dos invasores, preponderante no Ocidente, inserindo-se como elemento caracterísitco de sua civilização. Outra religião, o islamismo, teve também uma trajetória semelhante: nascida na Arábia, religião dirigida aos árabes, aos poucos se consolidou entre povos diferentes e hoje serve também para ressaltar as diferenças culturais e raciais de muitos negros americanos que reivindicam sua identidade no mundo dominado pelos brancos. O aparecimento dessas que se convencionou chamar de religiões universais circunscreve-se aproximadamente ao período de um milênio: o budismo surgiu no século VI a.C., o cristianismo no I e o islamismo no VII d.C. O que intriga os historiadores das religiões, e não só eles, é o período do séculoVI a.C. por seu dinamismo e intensidade religiosa que o tornam um período ímpar na história da humanidade. O filósofo alemão Karl Jaspers, na obra Origem e fim da história, propõe a identidade da história universal como história da religião. Idéia sem dúvida válida pelo menos para a história antiga. Mais ainda, sugere que os meados do I milênio antes de Cristo possam ser considerados o que ele chama de ‘tempo axial’, ou seja, época de ruptura, de polêmica radical, de crise salutar, que veio a constituir uma autêntica linha divisória entre o ‘regime’ cultural e religioso destinado a desaparecer e a nova ‘economia’ levada avante pelo verbo magnífico dos profetas: um já destinado a confinar-se a uma época ‘antiga’, a outra pré-figurativa e portadora já da época ‘moderna’. Jaspers chama isso de ‘revolução profética’, de onde brotou uma nova visão de mundo. Lao Tse e Confúcio na China; Buda na Índia; Zaratustra na Pérsia; Isaías, Jeremias em Israel; mais tarde Jesus Cristo na Palestina; e ainda Heráclito, Pitágoras, Empédocles na civilização grega; acrescentamos, último cronologicamente, mas não menos importante, Maomé: os ‘profetas’ aparecem fortemente críticos e até destruidores das velhas tradições religiosas étnico-nacionais e impulsionam novas experiências e ideais. Entra em crise o velho politeísmo que representava a realidade fragmentada e se introduz o Deus único absoluto, transcendente e dominador do universo e da humanidade. O Deus único é o Deus de todos os povos e de todas as pessoas ao mesmo tempo e sem diferenças. François Houtart atribui o surgimento das novas religiões com características completamente diferentes e até opostas às anteriores como conseqüência das novas relações sociais e econômicas que foram desenvolvidas no período e em vários lugares simultaneamente, o que explicaria a contemporaneidade dos movimentos religiosos. Nos meados do I milênio a.C. nasceu uma economia mercantil de caráter internacional, explica Houtart, e a transformação das relações sociais provocou o aparecimento de novos sistemas religiosos. Entre essas transformações, nota-se uma acentuada separação entre o campo e a cidade. O campo continua a sustentar a cidade com seus excedentes; na cidade, fora os artesãos, boa parte da população é formada por não-produtores: grupos de poder (governantes, administradores, guerreiros), mercadores e escravos destinados aos serviços. Nas cidades, a especificidade das atividades políticas e econômicas e as novas normas de vida a elas conjugadas levam evidentemente a uma relação completamente diferente com a natureza, com um desenvolvimento das forças produtivas cuja racionalidade integra o papel ativo do homem, o seu domínio sobre a natureza. Também as relações sociais mudam: já não é mais o parentesco - o clã - a regular mecanismos das relações, mas os grupos diferentes criam laços assentados em mecanismos não-naturais. Neste contexto, as novas formas religiosas expressam a nova visão de mundo que a pessoa adquire ao ser colocada numa nova realidade.

Do amigo, prof. von Rückert-O VALOR DO ATEÍSMO

O Valor do Ateísmo Ter, 02 de Junho de 2009 15:43 Ernesto von Rückert Não é por falta de formação religiosa que sou ateu. Pelo contrário. É por excesso de formação religiosa. Em minha juventude, quando era católico, fui convidado a participar da TFP [Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade] e frequentei sua sede em Barbacena por um bom tempo, inteirando-me de sua proposta. Em função disto, aprofundei-me em estudos religiosos e filósóficos ao mesmo tempo em que também estudava muita física e cosmologia, que sempre foram a minha paixão. Esses estudos, tanto teológicos quanto científicos e filosóficos é que me levaram a perder a fé e tornar-me, a princípio, agnóstico e, posteriormente, ateu. No entanto, admiro a coerência, a dedicação à causa e a prática virtuosa dos membros da TFP, entre eles conhecida como “Grupo de Catolicismo”, e, certamente, as mesmas qualidades de seu mentor, Plínio Correa de Oliveira, que conheci pessoalmente. Todavia deploro suas posturas intransigentes com relação a outros pontos de vista e o comportamento à moda do “Opus Dei”. Na verdade eu nunca aceitei interiormente a cosmovisão direitista da TFP. Intimamente sempre fui um anarquista convicto. Minha aproximação com a TFP se deu por uma admiração à sua postura ética estóica e ao modo de vida intelectual e culturalmente sofisticado. Mesmo tendo sido criado como católico, sempre encarei a religião de um ponto de vista cético e antropológico. Assim, vi que a noção de “Revolução e Contra-revolução” é paranóica. A visão marxista é mais próxima da realidade, mas também é dogmática. Minha posição no espectro político não é de esquerda nem de direita, mas libertária, que é oposta à retrógrada e se lança para frente numa direção perpendicular ao eixo esquerda-direita. Não considero que a descrença no sobrenatural e a adoção de um cosmovisão científica tire o encanto da vida. Em primeiro lugar, a ciência é deslumbrante e maravilhosa, muito mais do que as sagas mitológicas dos Vedas, a Ilíada, a Odisséia, a Biblia ou o Corão. E a ciência não exclui a filosofia (mesmo a metafísica), nem a poesia, nem a música, nem a dança, nem o amor, nem a alegria, nem a bondade. Enfim, um ateu, inteiramente cético como eu, pode ser uma pessoa imensamente alegre, feliz, bondosa, idealista, prestativa, solidária, justa, honesta, sincera e um bravo lutador pelo prevalecimento do bem e a erradicação do mal. Mas também um eficaz esclarecedor que pretende difundir a luz da verdade onde imperam as trevas da ilusão e da ignorância. Por argumentos, esclarecimentos, demonstrações, sempre procuro levar a todos a mensagem de que as crenças no sobrenatural, em espíritos, em Deus, anjos, demônios e esse tipo de coisa são inteiramente infundadas. Que a oração é uma ilusão, que não há céu nem inferno, que a morte é o fim de tudo. Mas levar também o otimismo pelo fato de ter-se o privilégio de existir. Sim, pois esta vida é uma ocorrência raríssima no Universo e nós fomos os premiados por esta loteria que é mais difícil do que ganhar sozinho na mega-sena toda semana. Valorizar a própria vida e não viver a vida por causa da outra vida, que não existe. Nisto pode-se ser muito mais realizado, responsável e alegre do que na crença no sobrenatural. Aplicar-se a fazer o bem sem pretender nada em troca, nem o céu. E substituir a religião pela filosofia. É o que penso. Como professor de Física (agora aposentado e só atuando na administração acadêmica), ao longo de minha vida profissional que completa agora 40 anos de magistério e mais de 20 mil horas-aula, nos níveis médio, superior e de pós-graduação, tenho sempre introduzido, em paralelo ao conteúdo precípuo da disciplina, minhas concepções filosóficas materialistas (hoje diria “fisicalistas”) de que não há nenhuma necessidade de se apelar para qualquer ser extra-natural onipotente para dar conta de se explicar tudo na natureza. Sempre respeitando os pontos de vista divergentes dos alunos fideístas, procuro mostrar que a ciência prescinde do conceito de Deus. E mais: mostro que todos os aspectos da vida, inclusive éticos, não dependem de divindade para se fazerem prevalecer. Que o bem existe por si mesmo e que ser ateu absolutamente não significa ser imoral. Infelizmente, apaguei meus perfis anteriores [no site de relacionamentos orkut] mas, neles, os testemunhos de meus alunos mostravam o quanto me prezavam e, até, admiravam minha postura e modo de vida. Acho que cada um de nós, ateus, na sua vida social, nas conversas com os amigos, deve aproveitar as oportunidades para levantar essa treva das crenças infundadas e fazer ver a luz do conhecimento real, da verdade cristalina de que Deus não existe e que isto é algo muito bom de se saber. Que é motivo de grande paz e felicidade, como também de maior responsabilidade em fazer prevalecer o bem sobre o mal. Tenho amigos e amigas que são religiosos mas, mesmo assim, respeitam meu ponto de vista e admiram minha postura. Infelizmente custam a se convencer. Mas isto, para mim, é um ponto de honra e, digo mesmo, uma missão de vida. A militância ateísta de Richard Dawkins, Daniel Dennett, Sam Harris, Michel Onfray e outros não me parece, da modo algum, agressiva e mesquinha. Pelo que já li desses autores (todos os livros do Dawkins, “Quebrando o Encanto” do Dennett, “Tratado de Ateologia”, do Onfray e “Carta a uma nação Cristã” do Harris) eles são muito mais educados e têm muito mais consideração pelos crentes do que reciprocamente os crentes em relação aos ateus. Outros autores ateístas que já lí, como Bertrand Russell e Andrè Comte-Sponville, por exemplo, também são respeitosos em relação aos crentes. Certamente que mostram, sem meandros, como eles estão equivocados e condenam, mas mesmo assim com cortesia e elegância verbal, os aproveitadores da credulidade do povo. Esta é uma postura que precisa mesmo ser posta em prática, pois está mais do que cabalmente demonstrado como as crenças, e sua pior manifestação, as religiões organizadas, são nefastas à humanidade. É certo que muita coisa boa se fez em nome de crenças e religiões, mormente no quesito filantropia, mas nada que não pudesse ser feito sem o envolvimento das crenças e religiões. Veja-se, por exemplo, os “Médicos sem Fronteiras”. É preciso que políticos ateus, como o Fernando Henrique, assumam sua condição de peito aberto (não estou abonando e nem estigmatizando o Fernando Henrique em nada aqui, exceto nisto). Tenho orgulho em me proclamar ateu perante todo mundo, sempre que inquirido a respeito, e defendo com bons argumentos minha posição. Apesar disto sou um pessoa conceituada e respeitada em meu meio social por tudo que faço e por minha conduta pessoal e social, além de admirado em meu exercício profissional de professor e administrador escolar. Aproveito tudo isso em benefício da causa ateísta e vejo como missão de minha vida tornar o mundo melhor pelo esclarecimento do povo neste aspecto. A coisa mais importante para uma correta conduta intelectual é o espírito livre-pensador, inteiramente dissociado de qualquer dogmatismo mas também aberto a todas as possibilidades. O dogmatismo ateísta, bem como o marxismo dogmático são extremamente nocivos, do mesmo modo que o fanatismo religioso de muitos muçulmanos e mesmo de certas facções cristãs. A postura cética correta é a postura da dúvida, jamais levada a um plano dogmático. A dúvida é um dos instrumentos da busca do conhecimento, e, portanto, da verdade. A verdade é um valor superior a qualquer crença. Assim, meu ateísmo é uma condição atual e provisória. Como já fui católico romano fiel, passando para agnóstico e depois para ateu, posso me tornar espírita ou budista. Tudo vai depender de onde eu acharei a verdade. Mas meu ceticismo é fundamental, pois sempre vou precisar duvidar de ter possuído a verdade, justamente para obter mais garantias de que a possua. O que almejo ver disseminado na humanidade, especialmente na juventude, é esta posição franca e aberta de tudo examinar e considerar, nada objetando “a priori”, por mais esquisito que seja. O problema das crenças, mesmo do ateísmo dogmático, é justamente a inflexibilidade, os antolhos da mente. Por exemplo, ando muito interessado no espiritismo, pois tenho uma irmã que o professa. Com todo o meu ceticismo, tenho lido as obras de Allan Kardec, como já li a Biblia, muitos trechos do Corão e pretendo ler os mais importantes Vedas. Mas leio também Richard Dawkins, Michel Onfray, Sam Harris e Daniel Dennett, como li Bertrand Russell. A questão que coloco é como decidir por esta ou aquela explicação do mundo. Para mim só há duas possibilidades: a evidência dos sentidos ou as ponderações da razão. Penso que a Fé, qualquer que seja, não pode ser usada como critério de verdade, uma vez que há fiéis sinceros que creem em coisas inteiramente diferentes. Quanto ao espiritismo, não está conseguindo me convencer. *** Ernesto von Rückert é matemático, físico, cosmologista, professor universitário aposentado e fundador do curso de Física da Universidade Federal de Viçosa.

autor Darwin- Charles Darwin,

Introdução, The Ascent of Man, 1871
autor Darwin Fonte: http://www.str.com.br/Frases/fraseag.htm#A "Eu era ortodoxo na época em que estive a bordo do Beagle. Lembro-me de provocar gargalhadas em vários oficiais por citar a Bíblia como uma autoridade incontestável (...). Nesse período, entretanto, percebi pouco a pouco que o Velho Testamento (...) não merecia mais confiança do que os livros sagrados dos hindus ou as crenças de qualquer bárbaro. (...) Eu não estava disposto a desistir de minha crença com facilidade, lembro-me das inúmeras vezes em que inventei devaneios com a descoberta de antigas cartas entre romanos ilustres e de antigos manuscritos em Pompéia, ou em algum outro lugar, que confirmassem de maneira admirável tudo o que estava escrito nos Evangelhos. Mas eu tinha uma dificu1dade cada vez maior, soltando as rédeas de minha imaginação, de inventar provas suficientes para me convencer. Fui tomado lentamente pela descrença, que acabou sendo completa. A lentidão foi tamanha que não senti nenhuma aflição, e desde então nunca duvidei de que minha conclusão foi correta. Aliás, mal comigo entender como alguém possa desejar que o cristianismo seja verdadeiro." Charles Darwin, Autobiografia 1809 – 1882 "Me parece (seja correto ou errôneo) que o argumento direto contra o cristianismo e o teósmo dificilmente produz qualquer efeito no público; e a liberdade de pensamento é promovida melhor pela iliminação gradual das mentes dos homens que se segue do acanço da ciência." Charles Darwin "A ignorância suplica confiança mais freqüentemente do que o conhecimento: são aqueles que sabem pouco, e não os que sabem muito, que afirmam tão positivamente que esse ou aquele problema nunca serão resolvidos pela ciência." Charles Darwin, Introdução, The Ascent of Man, 1871 "Ao ver os marsupiais na Austrália pela primeira vez e comparando-os com os mamíferos placentais: Um descrente ... pode exclamar 'Certamente dois Criadores distintos devem ter trabalhado.'"Charles Darwin
Postado por Idma às 19:34

Ceticismo - Jean Paul Dumont

O CETICISMO

CETICISMO Jean-Paul Dumont (Scepticism: Artigo da Encyclopædia Universalis, Paris, s.d.,vol:14, pp. 719-723. Tradução: Jaimir Conte) 1.SIGNIFICADO DO CETICISMO ANTIGO *Dados históricos *Divergências das tradições *O fenomenismo grego *Evolução do relativismo *Os novos céticos 2. AS TRANSFORMAÇÕES DO CETICISMO *História da história do ceticismo *Cristianismo e ceticismo *Racionalismo e ceticismo O termo ceticismo terminou por designar atualmente, na linguagem comum, uma atitude negativa do pensamento. O cético é visto, freqüentemente, não somente como um espírito hesitante ou tímido, que não se pronuncia sobre nada, mas como aquele que, sobre qualquer coisa que é avançada, ou sobre qualquer coisa que possa dizer, se refugia na crítica. Da mesma forma, acredita-se ainda que o ceticismo é a escola da recusa e da negação categórica. Na realidade, e por sua própria etimologia (skepsis em grego significando “exame”), o ceticismo vetaria qualquer posição decidida, a começar até pela que consistiria em afirmar, muito antes de Pirro e como Metrodoro de Abdera, que somente sabemos uma coisa: que nada sabemos. Os céticos qualificam a si mesmos de zetéticos, isto é, de pesquisadores; de eféticos, que praticam a suspensão do juízo; de aporéticos, filósofos do obstáculo, da perplexidade e dos resultados não encontrados. Além disso, os historiadores latinos e gregos da filosofia cética, como Aulo-Gélio, Sexto Empírico e Diógenes Laércio, mantém uma distinção muito rigorosa entre os acadêmicos, que sustentam a impossibilidade de conhecer, e os céticos, que tomam a vida e a experiência por critérios de suas condutas. Para compreender o ceticismo, é preciso, pois, responder sucessivamente a estas duas questões: em que consistia o ceticismo antigo? Por que o ceticismo foi, na história da filosofia, ignorado e traído em sua intenção e valor? 1.SIGNIFICAÇÃO DO CETICISMO ANTIGO Dados históricos O fundador do ceticismo grego foi Pirro (fim do IV séc. a.C.). Ele não deixou nenhum escrito filosófico. Nasceu em Élis, pequena cidade do Peloponeso, onde viveu inicialmente como pintor, depois interessou-se pela filosofia, principalmente sob a influência de Anaxarco de Abdera, em companhia de quem seguiu Alexandre, o Grande, por ocasião da campanha da Ásia. Retornando à Élis, fundou uma escola filosófica que lhe valeu uma enorme reputação junto a seus concidadãos. Ele vivia pobre e simplesmente em companhia de sua irmã, Filista, que exercia a ocupação de parteira. Seu historiógrafo posterior, Antígone de Caristo, expressou em linguagem anedótica a indiferença de alma, a impassibilidade e o domínio de si que ele tinha. Ele teve por discípulo Tímon, autor de várias obras em versos e em prosa: as Sátiras (ou Considerações suspeitas); sendo que o verbo “satirizar” passou a significar a partir de então, “lançar-se a uma crítica acerba”), as Imagens; um diálogo, o Python (jogo de palavras sobre Pirro?); dois tratados em prosa Sobre as sensações e Contra os físicos. Porém, sua obra nos é apenas conhecida de modo muito fragmentário. A escola cética conhece um eclipse que eqüivale a um desaparecimento. Uma certa forma de ceticismo é, então, praticada pelos neo-acadêmicos: Arcesilau (primeira metade do séc. III e início do séc. II a.C.), chefe da nova academia.(Cf. Academia). Em seguida, a escola renasce graças à atividade de Enesidemo, de quem a obra é bastante conhecida, mas de quem a vida é de tal modo pouco conhecida que hesitamos sobre a época em que viveu (ele foi contemporâneo de Cícero ou viveu um século mais tarde?). Depois dele, a figura mais marcante é a de Agripa, mas da carreira dele nada conhecemos, a não ser os cinco argumentos que Diógenes Laércio lhe atribui. Aparece em seguida Sexto Empírico, o grande historiador do ceticismo, de quem também não sabemos quando e onde viveu (entre o início do séc. II e a segunda metade do séc. III d.C., sem dúvida na Grécia, posto que ele parece conhecer muito bem, além de Atenas, Alexandria e Roma.) Ele pertencia a escola empírica, o termo “empírico” sendo quase sinônimo de médico. Esta escola foi erguida em honra ao médico Menodoto de Nicomédia, discípulo de Antíoco de Laodicéia. A história do ceticismo antigo termina no século III. Divergências das tradições O ceticismo grego é bem conhecido, principalmente pelo testemunho dado por Sexto Empírico através de obras que expõem minuciosamente sua intenção e seus argumentos. Mais ou menos na mesma época, Diógenes Laércio dedicou uma parte importante do livro IX de suas Vidas à escola pirrônica. Em seguida, Eusébio de Cesaréia (início do séc. III ) expôs em sua Preparação evangélica (XIV,18) um testemunho bastante longo, relativo à Tímon, e conservado pelo peripatético Arístocles de Mecena que foi quase seu contemporâneo. Percebe-se, pois, que as fontes relativas ao ceticismo antigo são extremamente tardias, já que a doutrina foi fixada somente cinco séculos mais tarde. As fontes latinas incluem um capítulo das Noites áticas de Aulo-Gélio (início do séc. II d.C.) que utiliza Favorinos, Gaulois de Arles, contemporâneo de Adriano, e que mantém uma distinção entre céticos e acadêmicos. Resta Cícero. Como freqüentemente, Cícero é nossa fonte mais antiga em matéria de história de filosofia antiga. Assim como a exposição de Catão em De Finibus constitui o mais antigo trabalho do conjunto do estoicismo, os Acadêmicos e, em menor grau, as Tusculanas contém um certo número de informações relativas aos aspectos morais do pirronismo e aos aspectos epistemológicos da filosofia acadêmica. Porém, é preciso limitar a importância do testemunho de Cícero por três razões. Primeiramente, ele é, embora o mais antigo, muito posterior aos céticos. Por outro lado, Cícero não conhece o termo grego ????????, de modo que ele usa a palavra latina scepticus (não clássica); com a qual ele não poderia interpretar corretamente o ceticismo. Enfim, ele fala sobretudo de Arcesilau e de Carnéades, de quem conhece as polêmicas com o estóico Crisipo; ora, é muito difícil admitir que o que ele atribui a Arcesilau e a Carnéades possa valer também para os discípulos de Pirro. Como freqüentemente na história do pensamento antigo, encontramo-nos diante de tradições fixadas posteriormente; o autor, que retranscreve a opinião dos antigos ou de seus predecessores, reconstitui a tese que ele lhes empresta. Conhecer em sua pureza uma tese antiga fragmentada e retranscrita logo depois, é uma empreitada que convém renunciar. Todavia, a respeito da história do ceticismo, a impossibilidade de escolher uma maneira absolutamente decisiva entre uma ou outra tradição, comporta conseqüências filosóficas incalculáveis. Se adotarmos o ponto de vista de Cícero, embora Cícero seja o único autor antigo a sustentá-lo, estamos condenados a fazer dos céticos, filósofos que afirmam com ênfase que nada podemos conhecer. Os Acadêmicos são a fonte dos que, como Sêneca, santo Agostinho, Hume, Kant ou Hegel, oferecem do ceticismo antigo a imagem de um niilismo radical. Em compensação, se adotarmos o ponto de vista grego de Eusébio, de Sexto Empírico ou de Diógenes Laércio, o ceticismo é, ao contrário, uma filosofia cujo critério baseia-se na vida, na experiência e no fenômeno, excluindo apenas as especulações dogmáticas. Como dizem Sexto Empírico (Hypotyposes Pirrônicas, III, 179) e Diógenes Laércio (Vidas, IX, 104), “o fogo, que por essência queima, causa a cada um a representação de ser quente”. Vemos então, nesta perspectiva, que a significação do ceticismo torna-se completamente diferente daquela de um pretenso niilismo que conduziria os homens à indiferença e à inação. Assim sendo, cabem duas questões: Por que o ceticismo grego constituiu-se como um fenomenismo? Por que, depois, um contra-senso foi cometido a respeito de seu verdadeiro significado? O fenomenismo grego A importância conferida pelo ceticismo ao conceito de fenômeno (cf. Fenômeno) pode ser medida pelas palavras de Tímon. “O fenômeno prevalece sobre tudo, por toda parte onde ele se encontra” (Sexto Empírico, Contra os lógicos, I, 30: Diógenes Laércio, Vidas, IX, 105). No início este conceito não pertence propriamente à linguagem filosófica, mas antes à física. Por fenômeno, os ouvintes do sofista Protágoras ou os leitores de Platão entendem uma realidade física, ou seja, uma imagem constituída de ar e de luz, que desempenha no processo da visão um papel determinante. Contrariamente aos cientistas dos tempos modernos que se acostumaram, depois de Kleper e Descartes, a comparar o olho ao dispositivo ótico da câmara escura, a Antigüidade grega fez intervir na produção da visão um duplo fluxo luminoso: o objeto emite ou reflete a luz, mas ao mesmo tempo o olho, vendo, emite um raio que parte ao encontro daquele que o objeto está emitindo. Esta concorrência dos dois fluxos requer um meio transparente ou diáfano como o ar quando é de dia ou quando as trevas não o tornam opaco. Do encontro desses dois raios luminosos nasce um corpo, ou objeto material, portanto, um produto mediato, uma espécie de meio termo visível, que leva o nome de fenômeno, designando a natureza luminosa da representação. Ele provoca uma dupla conseqüência. Por um lado, o objeto nunca é tomado ou apreendido conforme sua própria natureza ou tal qual ele é em si mesmo. Esse é o sentido que Sexto Empírico dá à antiga fórmula de Anaxágoras: “Os fenômenos são a visão do que permanece oculto”. O fenômeno é, portanto, como uma máscara ou cortina que se interpõe entre o objeto e olho; o visível é o que dissimula o real tornado invisível. Por outro lado, o fenômeno contém sempre alguma coisa que pertence ao sujeito; é por estar cheio de sangue que o olho percebe um fenômeno roxo e por estar com icterícia que vê tudo amarelo. Assim, tudo é relativo, o que leva, como Aristóteles o diz de Protágoras, a considerar que os fenômenos são o critério e a medida de todas as coisas. Quando interpretamos filosoficamente uma física da visão desse tipo, somos levados a considerar que a realidade empírica do objeto não poderia constituir um dado absoluto e que o conhecimento efetua-se relativamente ao sujeito que participa de sua constituição. Assim, no tempo de Pirro, a física grega coloca a filosofia diante da seguinte alternativa: já que a realidade empírica não é uma realidade apreendida em si, é preciso afirmar, ou que não há ciência possível, à qual se reduz a sensação, ou que a ciência se fundamenta numa realidade inteligível; e essa é a última solução examinada por Platão. Mas, no primeiro caso, que é o do empirismo estrito, os fenômenos constituem o único critério ao qual podemos legitimamente nos ater. Consequentemente, não resta mais que uma coisa a fazer: tomar a sensação por guia – é o que fazem os cirenaicos – ou tomar a vida por guia – é o que fazem os pirrônicos. Se acreditarmos em Tímon, conforme o que indica Eusébio, o fato de constatar que as coisas não manifestam visivelmente ou fenomenicamente qualquer diferença absoluta entre elas e escapam igualmente à certeza e ao juízo que pretende conhecê-las absolutamente, permite-nos permanecer sem opinião e sem inclinação, de escapar a todo abalo ou dúvida da alma, de limitar-nos a dizer de cada coisa, que ela não é mais isto que aquilo, o que conduz à afasia e à ataraxia (Eusébio, op. cit. XIV, 18). Conseqüentemente, o ceticismo antigo não é uma negação da ciência ou do saber, é, ao contrário, solidário ao desenvolvimento da física da percepção. Evolução do relativismo Entretanto, o século III a.C., é marcado por uma profunda subversão a propósito da teoria da percepção, e os principais responsáveis por esta evolução científica são os estóicos. Zenão e principalmente Crisipo se distinguiram de seus predecessores em dois pontos essenciais. Por um lado, recusam-se, de modo absoluto, a admitir, como Platão ou Aristóteles, a existência de realidades inteligíveis, mesmo que concebidas como imanentes ao objeto empírico. Eles se apresentam como empiristas no sentido estrito. É por isso que eles são nominalistas, consideram os conceitos como abstrações e desenvolvem uma lógica original que suprime as classes e que prefigura a lógica proposicional dos Modernos. Assim, eles dão razão, aparentemente, aos pirrônicos contra Platão. Lembramos ainda que o final do século III é marcado pelo triunfo do pensamento empírico. Mas, por outro lado, os estóicos rejeitam também a antiga física fenomênica. Na realidade, eles consideram a sensação como uma pura e simples afecção concebida conforme o modelo da impressão deixada na alma pelos objetos exteriores. Certamente, a impressão não se confunde com a realidade empírica destes. Portanto, a sensação nada apreende do objeto exterior: ela é passiva. Mas, ao mesmo tempo que a alma recebe a sensação, ela imagina espontaneamente e instantaneamente a causa da sensação; e é por isso que a imaginação é dita compreensiva, porque percebe a causa da qual a sensação é o efeito. Como se vê, os estóicos contornam a dificuldade levantada pelo estatuto físico do fenômeno, e compreende-se ao mesmo tempo, que neste contexto diferente e renovado, tenham se desenvolvido polêmicas entre os estóicos e os defensores da nova academia. É por essa época que deve se situar a intervenção de Enesidemo. Sua recusa do dogmatismo estóico consiste, essencialmente, em criticar a teoria da representação compreensiva, isto é, a possibilidade da alma imaginar corretamente e espontaneamente a causa da sensação que ela experimenta, utilizando, segundo um registro filosófico, o antigo modelo físico desvalorizado fornecido pelo conceito de fenômeno. Esta é a razão pela qual ele desenvolve uma série de argumentos destinados a exaltar o relativismo e a mostrar que toda representação, pretensamente compreensiva não pode perceber a essência da coisa. Estes argumentos são conhecidos sob a denominação de Dez Tropos ou Modos de Enesidemo, e é sua exposição que nas antigas Enciclopédias, por exemplo, a de Diderot e d’Alembert, constitui o ponto central da exposição das teses céticas. Nós nos limitaremos, de nossa parte, a apresentar as conclusões a que nos conduziu o estudo destes tropos. Os tropos ditos de Enesidemo são conhecidos por três exposições sucessivas e um testemunho complementar. A mais antiga versão é a oferecida por Fílon de Alexandria (Da embriaguez, 171-202) e ela compreende oito tropos. O primeiro tropo ressalta a diversidade dos animais e dos órgãos dos sentidos. Ele conclui que as sensações são relativas ao sujeito que as experimenta. O segundo tropo constata que um mesmo homem pode, segundo as circunstâncias, ser diferentemente afetado por um mesmo objeto. O terceiro tropo denuncia a relatividade das circunstâncias, como saúde e doença, sonho e vigília, idade, movimento e repouso, etc., que concorrem para a instabilidade dos fenômenos. O quarto tropo destaca a relatividade dada pelas posições, pelas distâncias e pelos lugares. O quinto tropo considera a quantidade e a composição das substâncias, cujas propriedades mudam conforme a fórmula de sua composição. O sexto tropo é o da relação. Este modo torna-se o mais importante na versão de Sexto Empírico e Diógenes Laércio, pois é o que funda o relativismo universal. O sétimo tropo revela o caracter misturado dos eflúvios provenientes de um objeto exterior. O oitavo tropo constata a diversidade dos costumes, das leis, da moral, das crenças e das convicções. A essa exposição em oito tropos que se encontra em Fílon corresponde a afirmação de Eusébio, segundo a qual Enesidemo teria formulado nove tropos, assim como a presença, em Sexto Empírico e em Diógenes Laércio, de exposições quase parecidas e que somente diferem pela ordem dos argumentos, que, em compensação, são em número de dez. Nós resolvemos este problema propondo que se considere que a versão retranscrita por Fílon remete a um escritor cético anônimo (e por que não ao tratado de Tímon: Sobre as sensações?), ao qual Enesidemo teria acrescentado um novo modo, aquele que, em Sexto Empírico e em Diógenes Laércio constitui o terceiro e que é relativo à diferença de disposição dos órgãos dos sentidos. Não foi senão mais tarde que Favorinos teria acrescentado um décimo argumento que ocupa o nono lugar na enumeração de Sexto Empírico e constitui uma variação pouco importante sobre o tema da freqüência e da raridade das ocorrências. Em todo caso, esses argumentos são destinados a contestar o caráter absoluto do conhecimento sensível e a recusar a pretensão dogmática e estóica de escapar ao antigo relativismo. A época de Enesidemo é a do relativismo filosófico. Sem dúvida, é também nesta época que se encontra reafirmada a vocação moral do ceticismo. Se, como pensa P. Couissin, a palavra epoché, isto é, “suspensão do juízo”, foi tomada emprestada de Zenão por Arcesilau e não criada por Pirro, bem que a idéia esteve certamente no próprio Pirro, e é o relativismo filosófico de Enesidemo que melhor contribui para definir a suspensão do juízo como a regra não dogmática da vida cética. O cético denuncia como vãs as concepções noumênicas e, recusando exercer dogmaticamente seu entendimento, limita-se a constatar a relatividade dos fenômenos, opondo entre eles as representações presentes e passadas e tirando de seu conflito argumentos para uma vida tranqüila e silenciosa. Os novos céticos O lugar da alma no qual se dá o jogo das oposições entre fenômenos e nôumenos é, segundo Enesidemo, a memória. A uma representação presente, pode-se opor uma representação passada, ou até, a imaginação de uma coisa futura. É a razão pela qual na prática da dúvida cética, a alma não se encontra totalmente engajada. Mais tarde, veremos Descartes, convicto da unidade do espírito humano, experimentar a dúvida como uma angústia que interessa a totalidade das faculdades. Ao contrário, com Enesidemo ou Sexto Empírico, é feita uma separação entre a faculdade sensitiva e a faculdade de imaginar ou de conceber, embora a dúvida possa permanecer a expressão feliz e tranqüila de uma imaginação e de um entendimento suspensos ou, se se preferir, dogmaticamente inativos. Entretanto, para chegar a este silêncio do entendimento colocado na impossibilidade de se pronunciar sobre a natureza em si do objeto empírico, é preciso poder dispor de remédios apropriados e sobretudo cuidadosamente dosados a fim de não ocasionar, pela refutação de uma tese, a adesão do espírito a uma tese contrária. É a razão pela qual os céticos inventam, com Agripa, e praticam, com Sexto Empírico, uma nova lógica. Enquanto que, nas escolas gregas de filosofia, a lógica ou a dialética cumprem uma função defensiva contra os adversários do sistema, aqui a dialética é o instrumento de uma terapêutica destinada a dividir a alma em duas, ou seja, a impedir o entendimento de dogmatizar, concedendo plena confiança aos sentidos e à vida. Os novos céticos imaginaram cinco argumentos. O primeiro é o da discordância. Ele consiste nem reconhecer a oposição entre as opiniões e as teses; assim; na frase: “A neve é branca, mas a água é escura” é impossível saber qual é essencialmente a cor da água, e convém suspender o juízo quanto a este ponto. O segundo argumento é o da regressão ao infinito. Ele consiste em considerar que a prova a que o dogmático quiser recorrer, remete a uma outra prova, e assim ao infinito; por exemplo: pretender dar uma definição absoluta de qualquer coisa expõe quem formula esta pretensão a uma regressão ao infinito, já que o que define requer que ele mesmo seja definido, e assim por diante. O terceiro argumento é o da relação. Ele consiste em constatar que não somente os objetos são relativos entre si, mas que toda representação é sempre uma representação para um sujeito e relativa a ele. Este argumento retoma o da relação tal como Enesidemo o expressara. Esquerda e direita, pai e filho são relativos. Significante e significado são relativos. Tudo é relativo, o que exclui a universalidade. A própria fórmula: “tudo é relativo” deve ser entendida no sentido de “tudo nos aparece ou nos é representado conforme um fenômeno relativo”. Este argumento manifesta a herança filosófica de Protágoras. Ele estabelece um relativismo universal. Ele denuncia a pretensão do entendimento de se referir a uma certeza absoluta, ao conhecimento do real. O quarto argumento é o da hipótese. Quando os dogmáticos querem escapar do regresso ao infinito, eles colocam no início da cadeia de razões algo indemonstrável do qual convém admitir o caráter hipotético. Isto é o que fazem os geômetras que procedem por axiomas, definições e postulados. Mas o cético recusa-se a aceitar o que eles pedem e esquecer o caráter hipotético dos princípios nos quais a dedução se fundamenta. Assim, a geometria euclidiana ou a geometria estóica são denunciadas como sistemas hipotéticos: à outras hipóteses corresponderiam outras geometrias. O último argumento é o do dialelo ou círculo vicioso. Quando a gente pretende fundamentar circularmente uma prova sobre uma conseqüência daquilo que a gente procura demonstrar, a gente cai num círculo vicioso. O silogismo aristotélico que pretende deduzir da maior universal “todo homem é animal” a conclusão que “Sócrates é animal” cai no círculo vicioso. Pois a proposição:” todo homem é animal” é na realidade, fundada na indução que inclui todos os homens conhecidos: Sócrates, Platão, Díon. Conseqüentemente, é a conclusão, “Sócrates é animal”, que serve para fundamentar a hipótese “todo homem é animal” de tal modo que a gente cai num círculo vicioso. Até estes últimos anos, alguns eruditos ficaram exasperados pela multiplicação dos argumentos que Sexto Empírico propôs, enquanto que um espirito tão fino como o de Henri Estienne encontrou neles um grande deleite. Com efeito, é preciso ver bem que este estoque de argumentos dialéticos reuniu uma farmacopéia extremamente diversificada, comportando analgésicos, calmantes e tranqüilizantes da alma, objetos necessários para o cientismo da época, isto é, a pretensão dogmática de tudo conhecer. Ora, da mesma forma como observamos a propósito do pirronismo, quando, longe de derrubar toda ciência a dúvida é solidária de um estado dado da ciência, constatamos também em Sexto Empírico uma evolução particularmente significativa. Seu último tratado, Contra os astrólogos, não é dirigido contra a astronomia experimental, mas contra o charlatanismo dos Caldeus. Ele admite a utilidade e a legitimidade de uma astronomia experimental que permita regular os trabalhos da agricultura e prever as cheias dos rios. Vemos ele discutir os problemas postos para a medida do tempo por meio de um relógio d’água e refletir sobre o ajuste das simultaneidades. Enfim, o empirismo resulta em pesquisas comparáveis aos futuros métodos indutivos de Stuart Mill e coloca a possibilidade de edificar uma ciência não dogmática, que seria experimental Ainda que isso seja dito muito claramente pelos textos céticos, essa afirmação pode, entretanto, surpreender. Ela decorre do fato que em matéria de ceticismo o contra-senso parece ter conseguido mais força que a própria verdade histórica, mais exatamente, é o próprio contra-senso que é histórico a ponto de se impor contra a letra dos textos. Conseqüentemente, é a este aspecto tradicional do ceticismo que convém agora voltarmos nossa atenção. 2. AS TRANSFORMAÇÕES DO CETICISMO História da história do ceticismo A história do ceticismo moderno é inseparável da interpretação que os Modernos propõem do ceticismo antigo. Todos os que se declaram céticos em um certo sentido, como Montaigne ou Hume, fazem-no referindo-se a uma certa idéia do ceticismo. Mas, por outro lado, os partidários de um certo ceticismo não são os únicos a falar e a se posicionar em relação a idéia que eles fazem do mesmo. Assim, é necessário definir a imagem que os grandes filósofos deram do ceticismo antigo. Esta é, entretanto, uma tarefa difícil. É preciso, com efeito, lançar-se também a uma elucidação histórica das razões pelas quais sucessivamente o ceticismo antigo foi apresentado. Uma tal história em segundo grau cujo projeto é o de dar conta do estado do conhecimento das fontes em épocas diversas e da motivação das preferências interpretativas, exigiria, para ser completa, que se possa dar conta das metamorfoses do ceticismo antigo exigiria, para ser completa, que pudessem ao mesmo tempo dar conta do estado do conhecimento das fontes em épocas diferentes e das motivações das preferências interpretativas pelas quais os interpretes se tornaram responsáveis. É claro que nas épocas em que os textos pirrônicos são bem conhecidos o ceticismo é de preferência encarado como um empirismo e como um fenomenismo, em compensação, quando a influência de Cícero é predominante, é a interpretação acadêmica de um ceticismo negador que tende a se impor. Mas, por outro lado, as famílias espirituais às quais se ligam os intérpretes, orientam tão profundamente sua ligação seja à corrente do pensamento cristão, seja à corrente do pensamento racionalista, que convém dar conta esquematicamente agora. Cristianismo e ceticismo O primeiro filósofo a ter retomado os gregos e a ter, de algum modo, vivido de novo a experiência da dúvida foi Santo Agostinho. Uma grande parte de sua obra é dedicada a um esclarecimento das razões que a gente poderia ter para pôr em dúvida os conhecimentos humanos. O diálogo Contra os Acadêmicos apresenta na sua terceira parte toda a matéria das razões para duvidar que constituíram “alimento tão comum remastigado pela Meditação primeira de Descartes. Entretanto, o modelo ao qual Santo Agostinho se refere não é o pirronismo mas a dúvida acadêmica, que oferece o exemplo de uma verdade impossível de descobrir e de uma busca destinada a não terminar. Por outro lado, Santo Agostinho não se sente à vontade na dúvida. Enquanto que a suspensão do juízo aparecia voluptuosa a Enesidemo, ela o mergulha num verdadeiro desespero diante da certeza inencontrável, a desesperatio veri. O ceticismo ganha com Santo Agostinho três características novas: primeiramente, a dúvida é vivida. Se pensarmos no caráter existencial que toma a dúvida cartesiana e que revestirá a consciência infeliz de Hegel, devemos reconhecer em Santo Agostinho o mérito surpreendente de inaugurar para o ceticismo uma função totalmente nova. A razão disso é a impossibilidade augustiniana de separar as funções da alma, assim como o faziam os discípulos de Enesidemo. A unidade de espírito humano confere a dúvida a dimensão total de um completo desespero. Em segundo lugar, ao ser ao mesmo tempo desesperadora e existencial, a dúvida é uma experiência. Enquanto experiência – o que lhe confere uma intensidade particular –, a dúvida é passageira e dura um momento. Deste modo, a busca cética deixa de ser a busca zetética dos meios da suspensão, para tornar-se o momento da procura de uma verdade que ainda não se possui porque não está no poder da ciência possuí-la. É preciso notar este desvio do sentido grego da investigação cética para o sentido cristão de uma investigação da verdade. Em terceiro lugar, ao mesmo tempo em que a dúvida constitui uma experiência, ela é, não obstante, também um momento no sentido dialético do itinerário filosófico. O desespero é a expressão do momento da negatividade. A dúvida marca na literatura cristã o ponto da passagem obrigatório que constitui a permanência no purgatório, a prova necessária do pecado, o encontro das trevas do erro, cuja função revela as insuficiências de uma ciência atéia ou de uma certeza não fundada num Deus garantidor das verdades eternas. A dúvida é, pois, o momento da negação que transforma o saber humano numa certeza fundada na segurança de uma fé divina. Por isso mesmo, a experiência cética ocupa na vida do crente um lugar privilegiado, já que ela é a expressão da insuficiência do paganismo e a afirmação já presente de uma certeza de uma ordem inteiramente nova.. É porque Descartes e Hegel são, no fundo, tão cristãos quanto Santo Agostinho, que um propõe dar a dúvida unicamente metódica do Discurso do método a dimensão espiritual do desespero existencial das Meditações, e que o outro concebe o desenvolvimento da consciência como passando para um instante necessário do erro com o objetivo de chegar a uma certeza fundamentada. O ceticismo é um instante do purgatório em que a fé desolada e perdida se despoja das ilusões sensíveis, antes de ultrapassar o instante da crítica e da busca, para a apreensão de uma certeza tornada sólida, porque endurecida por ocasião desta própria prova. Daí decorre que o ceticismo, que a gente poderia acreditar espontaneamente que ele é rejeitado como um pecado e como uma abominação pelos teólogos, seja, na realidade, considerado pelos pensadores cristãos como um precioso auxiliar da fé em oposição a ciência. O exemplo mais claro é o uso pascaliano do pirronismo destinado a revelar a “fraqueza do homem através de seus “discursos de humildade”. “Zombar da filosofia é, em verdade, filosofar”(...) nós não acreditamos que toda a filosofia valha uma hora de aflição (...) o pirronismo é a verdade”. O ceticismo cumpre nos Pensamentos, uma função apologética: humilhar a inteligência, rebaixar o saber humano e manifestar a miséria de um entendimento abandonado por Deus. Porém, é preciso sublinhar o caráter, no fundo, banal e extremamente clássico desta concepção do ceticismo. A voz pascaliana é somente uma dentre outras no meio de um concerto de personagens menos ilustres que, todavia, tiveram em seu tempo uma influência considerável. Nicolau de Cusa tinha na metade do século XV, dado um esclarecimento particular, sob o nome de docta ignorantia, à ignorância reconhecida pelos neoplatônicos como a condição do homem diante da infinita grandeza de um Deus situado para além de todo o conhecimento humano. Erasmo, no Elogio da loucura, retoma a expressão de São Paulo: “Eu não falo segundo Deus mas como se fosse louco”. Agrippa de Nettesheym, em De incertitudine e vanitate omnium scientiarum e artium liber que conheceu um sucesso duradouro, denuncia a nociva presunção da ciência de se igualar a palavra de Deus. Henri Estienne em seu prefácio às Hypotyposes pirrônicas de Sexto Empírico apresenta o pirronismo como o melhor remédio contra a impiedade dos filósofos dogmáticos. Para Gentien Hervet, editor de Adversus mathematicos, a obra de Sexto Empírico exalta as fraquezas da razão humana e reconduz naturalmente o espírito para o caminho da religião católica. No século XVII, La Mothe le Vayer ( Da virtude dos pagãos, 1641, Solilóquios céticos, 1670) e Huet, bispo de Avranches (Tratado da fraqueza do espírito humano, obra póstuma, 1722), retoma ainda o mesmo tema: “Minha razão não podia me fazer conhecer com uma inteira evidência e uma perfeita certeza se há corpos, qual é a origem do mundo e várias outras coisas semelhantes, mas depois que eu aceitei a fé todas estas dúvidas se esvaneceram como espectros ao levantar do sol”. O principal responsável pelo sucesso do ceticismo foi, bem entendido, Montaigne. Montaigne exerceu uma influência determinante sobre Descartes, Pascal... No entanto, seu caso merece ser considerado inteiramente à parte. Com efeito, seu conhecimento do ceticismo antigo é singularmente rico e exato. Por um lado, ele é um dos raros autores da Renascença e o primeiro historiador da filosofia moderna a estabelecer uma distinção entre o niilismo dos acadêmicos e o pirronismo. Por outro lado, mesmo que a única obra que ele tenha lido seja as Hypotyposes pirrônicas, ele conhece muito bem Sexto e o utiliza abundantemente. Além disso, se Montaigne atribui ao ceticismo, na Apologia de Raymond Sebond, o mesmo papel que Pascal lhe concederá em relação à fé, ele não é, por um lado, como Pascal, um homem de fé, por outro, o modelo do ceticismo ao qual se refere é estritamente pirrônico. Enfim, por esta razão, Montaigne reata com a tradição grega: sua convicção é a de um relativismo universal. Ele está intimamente persuadido que o sujeito singular é incapaz de ultrapassar a singularidade de suas impressões e de sua imaginação para alcançar um conhecimento válido universalmente. Houve um tempo em que comprazia-se em separar, em Montaigne, os momentos estóico, cético e epicurista de seu pensamento. Isto decorria de uma ilusão grave, e também de um desconhecimento da natureza do pirronismo. Montaigne jamais praticou o desespero acadêmico, mas ele foi de início ao fim pirrônico, tendo considerado que a honestidade o forçava a falar da maneira singular com a qual ele via o mundo através dele mesmo, ao invés de adotar sobre o mundo um ponto de vista universal, decidido e dogmático. É por isso que este autor, que cita tão abundantemente os antigos, declara preliminarmente ser ele mesmo “a matéria de seu livro”; entendamos que, para ele, todo dado é relativo à um sujeito, isto é, aos sentidos e à imaginação particular. Racionalismo e ceticismo O racionalismo não pode senão afastar como estéril e como errôneo o ceticismo acadêmico. A expressão de um saber que se resumiria na proposição “não sei nada”, mesmo que se tratasse do não-saber de Metrodoro, da verdade inapreensível de Demócrito ou do nihil scire de Arcesilau, é tradicionalmente denunciada como se destruindo a si mesma. Já Sócrates, no Eutidemo de Platão (286c), denuncia este tipo de tese que, querendo derrubar as outras, destrói-se ao mesmo tempo. Assim, Hume sublinha os danos daquilo que ele chama (erroneamente!) o pirronismo: a dúvida cética é uma “doença”. (Tratado da natureza humana). O ceticismo é considerado “extravagante” (ibid.). A ação, o trabalho e as ocupações da vida ordinária destroem o pirronismo (Investigação). Igualmente, Kant observa que o ceticismo em geral se destrói a si mesmo, e considera os céticos como nômades, “sem domicílio fixo”. (Crítica da razão pura). É evidente que os sucessos da ciência moderna parecem descartar o ceticismo entendido como o niilismo acadêmico. Entretanto, um certo pirronismo, ora reconhecido como tal, ora praticado como uma filosofia original reconstruída independentemente de sua fonte grega, continuará a existir em função do próprio racionalismo. No século XVII, a análise cartesiana do sensível faz surgir um empirismo cujos traços encontramos em Malebranche, Gassendi, Bayle ou Locke. Pois, se as matemáticas escapam à toda incerteza, não se pode dizer o mesmo das realidades empíricas e sensíveis. Para os cartesianos, as qualidades sensíveis dos objetos, como o calor, o odor e as cores não estão, assim como o nota Bayle, nos objetos de nossos sentidos: “Estas são modificações da alma; eu sei que os corpos não são tais como me aparecem” (Dicionário). “Bem que desejaríamos excetuar a extensão e o movimento, mas não podemos; porque se os objetos dos sentidos nos parecem coloridos, quentes, frios, com cheiro, ainda que eles não o sejam, por que eles não poderiam parecer extensos e figurados, em repouso e em movimento, ainda que eles não fossem nada disso?”(ibid.) Em um certo sentido, portanto, o autêntico pirronismo, o que significa dizer, o relativismo fenomênico, encontra nas análises dos cartesianos um terreno propício para sua renovação. O ponto fraco do cartesianismo não consiste, precisamente, na dificuldade encontrada para demonstrar a existência das coisas exteriores? Ora, é evidente que, se Deus garante sua existência, ele não poderia fazer que as qualidades sensíveis não fossem relativas aos sentidos que as apreendem. Quando Descartes analisa o pedaço de cera (Meditação segunda), é difícil não se perguntar qual teria sido sua atitude frente à objeção de Sexto Empírico ao analisar a maçã “lisa, de aroma agradável, de sabor doce e amarela” (Hypotyposes pirrônicas, 1, 94) e se interrogar sobre como seria nossa percepção se fôssemos surdos e cegos, ou seja, se somente dispuséssemos do tato, do paladar e do olfato, ou se possuíssemos um sentido suplementar. (I, 96 ) A especulação filosófica do século XVIII é inteiramente dominada pelo problema da percepção. Num sentido, Hume é o herdeiro, ao mesmo tempo, do pirronismo e do cartesianismo. “Se nós levarmos nossa investigação para além das aparências sensíveis dos objetos, escreve ele à propósito de Newton, a maior parte de nossas conclusões serão, eu o receio, cheias de ceticismo e de incerteza (...). A natureza real da posição dos corpos permanece ignorada. Nós conhecemos somente seus efeitos sensíveis e seu poder de receber um corpo. Nada mais está de acordo com esta filosofia do que um ceticismo limitado a um certo grau e uma bela confissão de ignorância nos assuntos que ultrapassam toda capacidade humana” (Tratado da natureza humana). Reconhecemos nisso, neste limite atribuído ao empirismo, os traços do positivismo moderno. Hume será probabilista. Ele considerará que o que nós afirmamos ser leis da natureza não são, na realidade, senão leis do espírito humano que imagina uma conexão constante entre os fenômenos, dos quais a percepção sensível somente oferece a imagem de uma conjunção. É porque a imaginação faz associações e tem uma função reprodutora, isto é, espera ver se repetir o que ela já constatou (tal será em Kant o sentido da síntese da repetição na imaginação), que ela introduz em sua visão da natureza uma conexão e uma ordem somente prováveis e não necessárias. Todo empreendimento Kantiano consiste, ao nível da primeira Crítica, em tentar fundamentar o caráter universal e necessário dessa conexão. Mas o importante é que o quadro dessa especulação seja ainda o fenomenismo. Um outro aspecto importante do uso racionalista do ceticismo é a exaltação do espírito de tolerância. Foi para dar término às querelas religiosas e mostrar a vaidade das oposições entre os dogmatismos fanáticos que Huart vulgarizou em francês, em 1715, as Hypotyposes de Sexto Empírico. Nós nos limitaremos aqui a destacar este ponto. Nós já indicamos mais acima, falando de Hegel, como o ceticismo pode ser o momento da negatividade no desenvolvimento de seu conceito. A reintegração, na história do conceito ou no campo da filosofia, do pensamento cético têm por efeito falsificar a apreciação oferecida do fenomenismo. A imagem do ceticismo que Hegel preferiu dar é a da negatividade radical professada por Arcesilau. Na medida em que Hegel considera a filosofia como una, em detrimento das oposições entre as escolas, é-lhe impossível considerar que as filosofias se excluam mutuamente. Essas exclusões são apenas aparentes: é a filosofia que está em luta contra si mesma, tanto na afirmação do ceticismo radical, como no instante de sua superação. Atualmente o pirronismo tornou-se uma filosofia quase universalmente praticada sob o nome de positivismo. É claro que todo nosso conhecimento, por muito aperfeiçoados que sejam os instrumentos, é um conhecimento da natureza que opera pela mediação dos sentidos. Conseqüentemente, todo nosso saber é relativo aos sentidos. A idéia de uma relatividade, a crítica eisteiniana da noção de simultaneidade, que não existe senão relativamente à um dado observador, os limites engendrados pelas relações de incerteza de Heisenberg a respeito de nossa apreensão dos fenômenos se produzindo pela cadeia molecular revigoraram o antigo relativismo de Protágoras, de Pirro e de Sexto Empírico. Nenhuma época sente tão vivamente quanto a nossa o caráter historicamente relativo dos costumes, das instituições, das linguagens e das civilizações. Isso não significa que nós estejamos desesperados, convictos do não-saber do saber, mas que sabemos que não há saber sem o homem, nem conhecimento empírico fora dos homens que os constróem. O ceticismo é, portanto, uma noção de duplo sentido. Historicamente, para os Gregos que o fundaram, é um fenomenismo. Mas ao lado deste relativismo expressou-se com mais ou menos força, conforme diversos contextos, uma tendência do espírito humano em reivindicar o poder infinito da negatividade. Os problemas filosóficos que dela resultam são de vários tipos. Primeiramente: é verdade que nós estamos totalmente condenados ao relativismo? é legítimo formular, fora da prática das ciências positivas, a exigência de um conhecimento racional absoluto apoiado na fé da razão ou na crença num Deus “medida de todas as coisas” como o de Platão, ou garantidor das “verdades eternas” como o de Descartes? Em segundo lugar: de onde vem esta vertigem, esta aspiração ao nada, este apetite pela negação, esta tendência a radicalizar a dúvida que leva o homem, contra toda evidência, a proclamar o nada de seus conhecimentos e a vaidade da ciência? Por que Pascal assusta-se com o “pirrônico Arcesilau”, como com o silêncio dos espaços infinitos?, por que o pensamento dialético quer que a filosofia trabalhe para se negar a si mesma? Em terceiro lugar: podemos esperar atualmente do ceticismo que ele cumpra sua dupla função grega, ou seja, reduzir o entendimento ao silencio, mostrando as contradições dos dogmáticos e a vaidade das explicações metafísicas e religiosas que pretendem dar ao homem uma explicação total e definitiva; dar ao homem a tranqüilidade e a felicidade, fazendo com que ele não confie senão na vida, e remetendo ao domínio das ilusões as questões dogmáticas, fontes de sua inquietação, de sua intransigência, de sua fantasia, numa palavra, de sua infelicidade? Jean-Paul Dumont Scepticism: Artigo da Encyclopædia Universalis, Paris, s.d.,vol:14, pp. 719-723.