segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010
RELIGIÕES UNIVERSAIS
As religiões apresentadas até agora não saíram das regiões em que foram criadas. Mesmo o taoísmo e o hinduísmo, que têm interesses e valores que ultrapassam as limitações geográficas e étnico-políticas por suas mensagens e preocupações que não se limitam a um Estado e a um povo, não tiveram e não têm um impulso que os levassem além das fronteiras da China e da Índia. O hinduísmo, a bem da verdade, conhece um movimento de ‘renascimento’, começado no fim do século XVIII, depois do impacto provocado pela colonização ocidental. No século passado e no atual, grandes personalidades se debruçaram sobre as tradições e obras sagradas hindus, realizando uma purificação das práticas religiosas e, concomitantemente, enfocando os grandes problemas humanos e sociais da Índia. Entre estas personalidades, está o Mahatma (= grande alma) Gandhi (1869-1948) que na Índia é considerado, mais do que líder político, um grande mestre espiritual. A Ahimsã (não violência) que ele pregava era, na sua intuição, não tanto instrumento de reivindicação política, quanto a estrada mestra para alcançar a Verdade (Satya) de Deus e para se deixar levar por ela. Hoje em dia, o hinduísmo adquiriu um impulso missionário e podemos encontrar até em nossas cidades os jovens do Hare Khrisna que pedem contribuições - cabeças raspadas e longas túnicas alaranjadas -, ou ler notícias sobre gurus indianos que doutrinam nos Estados Unidos ou na Europa. Mas se o internacionalismo do hinduísmo é recente, uma outra religião nascida na Índia, o budismo, espalhou-se pelo mundo oriental - hoje também pelo ocidental -, sem respeitar barreiras étnicas ou políticas, adotado, aliás, como religião de estado por reis não indianos. Sorte parecida teve o cristianismo surgido numa pequena região periférica do império romano que, perseguido no início, aos poucos se impôs como religião oficial desse império e, quando de sua queda, tornou-se a religião dos invasores, preponderante no Ocidente, inserindo-se como elemento caracterísitco de sua civilização. Outra religião, o islamismo, teve também uma trajetória semelhante: nascida na Arábia, religião dirigida aos árabes, aos poucos se consolidou entre povos diferentes e hoje serve também para ressaltar as diferenças culturais e raciais de muitos negros americanos que reivindicam sua identidade no mundo dominado pelos brancos. O aparecimento dessas que se convencionou chamar de religiões universais circunscreve-se aproximadamente ao período de um milênio: o budismo surgiu no século VI a.C., o cristianismo no I e o islamismo no VII d.C. O que intriga os historiadores das religiões, e não só eles, é o período do séculoVI a.C. por seu dinamismo e intensidade religiosa que o tornam um período ímpar na história da humanidade. O filósofo alemão Karl Jaspers, na obra Origem e fim da história, propõe a identidade da história universal como história da religião. Idéia sem dúvida válida pelo menos para a história antiga. Mais ainda, sugere que os meados do I milênio antes de Cristo possam ser considerados o que ele chama de ‘tempo axial’, ou seja, época de ruptura, de polêmica radical, de crise salutar, que veio a constituir uma autêntica linha divisória entre o ‘regime’ cultural e religioso destinado a desaparecer e a nova ‘economia’ levada avante pelo verbo magnífico dos profetas: um já destinado a confinar-se a uma época ‘antiga’, a outra pré-figurativa e portadora já da época ‘moderna’. Jaspers chama isso de ‘revolução profética’, de onde brotou uma nova visão de mundo. Lao Tse e Confúcio na China; Buda na Índia; Zaratustra na Pérsia; Isaías, Jeremias em Israel; mais tarde Jesus Cristo na Palestina; e ainda Heráclito, Pitágoras, Empédocles na civilização grega; acrescentamos, último cronologicamente, mas não menos importante, Maomé: os ‘profetas’ aparecem fortemente críticos e até destruidores das velhas tradições religiosas étnico-nacionais e impulsionam novas experiências e ideais. Entra em crise o velho politeísmo que representava a realidade fragmentada e se introduz o Deus único absoluto, transcendente e dominador do universo e da humanidade. O Deus único é o Deus de todos os povos e de todas as pessoas ao mesmo tempo e sem diferenças. François Houtart atribui o surgimento das novas religiões com características completamente diferentes e até opostas às anteriores como conseqüência das novas relações sociais e econômicas que foram desenvolvidas no período e em vários lugares simultaneamente, o que explicaria a contemporaneidade dos movimentos religiosos. Nos meados do I milênio a.C. nasceu uma economia mercantil de caráter internacional, explica Houtart, e a transformação das relações sociais provocou o aparecimento de novos sistemas religiosos. Entre essas transformações, nota-se uma acentuada separação entre o campo e a cidade. O campo continua a sustentar a cidade com seus excedentes; na cidade, fora os artesãos, boa parte da população é formada por não-produtores: grupos de poder (governantes, administradores, guerreiros), mercadores e escravos destinados aos serviços. Nas cidades, a especificidade das atividades políticas e econômicas e as novas normas de vida a elas conjugadas levam evidentemente a uma relação completamente diferente com a natureza, com um desenvolvimento das forças produtivas cuja racionalidade integra o papel ativo do homem, o seu domínio sobre a natureza. Também as relações sociais mudam: já não é mais o parentesco - o clã - a regular mecanismos das relações, mas os grupos diferentes criam laços assentados em mecanismos não-naturais. Neste contexto, as novas formas religiosas expressam a nova visão de mundo que a pessoa adquire ao ser colocada numa nova realidade.
Do amigo, prof. von Rückert-O VALOR DO ATEÍSMO
O Valor do Ateísmo Ter, 02 de Junho de 2009 15:43 Ernesto von Rückert Não é por falta de formação religiosa que sou ateu. Pelo contrário. É por excesso de formação religiosa. Em minha juventude, quando era católico, fui convidado a participar da TFP [Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade] e frequentei sua sede em Barbacena por um bom tempo, inteirando-me de sua proposta. Em função disto, aprofundei-me em estudos religiosos e filósóficos ao mesmo tempo em que também estudava muita física e cosmologia, que sempre foram a minha paixão. Esses estudos, tanto teológicos quanto científicos e filosóficos é que me levaram a perder a fé e tornar-me, a princípio, agnóstico e, posteriormente, ateu. No entanto, admiro a coerência, a dedicação à causa e a prática virtuosa dos membros da TFP, entre eles conhecida como “Grupo de Catolicismo”, e, certamente, as mesmas qualidades de seu mentor, Plínio Correa de Oliveira, que conheci pessoalmente. Todavia deploro suas posturas intransigentes com relação a outros pontos de vista e o comportamento à moda do “Opus Dei”. Na verdade eu nunca aceitei interiormente a cosmovisão direitista da TFP. Intimamente sempre fui um anarquista convicto. Minha aproximação com a TFP se deu por uma admiração à sua postura ética estóica e ao modo de vida intelectual e culturalmente sofisticado. Mesmo tendo sido criado como católico, sempre encarei a religião de um ponto de vista cético e antropológico. Assim, vi que a noção de “Revolução e Contra-revolução” é paranóica. A visão marxista é mais próxima da realidade, mas também é dogmática. Minha posição no espectro político não é de esquerda nem de direita, mas libertária, que é oposta à retrógrada e se lança para frente numa direção perpendicular ao eixo esquerda-direita. Não considero que a descrença no sobrenatural e a adoção de um cosmovisão científica tire o encanto da vida. Em primeiro lugar, a ciência é deslumbrante e maravilhosa, muito mais do que as sagas mitológicas dos Vedas, a Ilíada, a Odisséia, a Biblia ou o Corão. E a ciência não exclui a filosofia (mesmo a metafísica), nem a poesia, nem a música, nem a dança, nem o amor, nem a alegria, nem a bondade. Enfim, um ateu, inteiramente cético como eu, pode ser uma pessoa imensamente alegre, feliz, bondosa, idealista, prestativa, solidária, justa, honesta, sincera e um bravo lutador pelo prevalecimento do bem e a erradicação do mal. Mas também um eficaz esclarecedor que pretende difundir a luz da verdade onde imperam as trevas da ilusão e da ignorância. Por argumentos, esclarecimentos, demonstrações, sempre procuro levar a todos a mensagem de que as crenças no sobrenatural, em espíritos, em Deus, anjos, demônios e esse tipo de coisa são inteiramente infundadas. Que a oração é uma ilusão, que não há céu nem inferno, que a morte é o fim de tudo. Mas levar também o otimismo pelo fato de ter-se o privilégio de existir. Sim, pois esta vida é uma ocorrência raríssima no Universo e nós fomos os premiados por esta loteria que é mais difícil do que ganhar sozinho na mega-sena toda semana. Valorizar a própria vida e não viver a vida por causa da outra vida, que não existe. Nisto pode-se ser muito mais realizado, responsável e alegre do que na crença no sobrenatural. Aplicar-se a fazer o bem sem pretender nada em troca, nem o céu. E substituir a religião pela filosofia. É o que penso. Como professor de Física (agora aposentado e só atuando na administração acadêmica), ao longo de minha vida profissional que completa agora 40 anos de magistério e mais de 20 mil horas-aula, nos níveis médio, superior e de pós-graduação, tenho sempre introduzido, em paralelo ao conteúdo precípuo da disciplina, minhas concepções filosóficas materialistas (hoje diria “fisicalistas”) de que não há nenhuma necessidade de se apelar para qualquer ser extra-natural onipotente para dar conta de se explicar tudo na natureza. Sempre respeitando os pontos de vista divergentes dos alunos fideístas, procuro mostrar que a ciência prescinde do conceito de Deus. E mais: mostro que todos os aspectos da vida, inclusive éticos, não dependem de divindade para se fazerem prevalecer. Que o bem existe por si mesmo e que ser ateu absolutamente não significa ser imoral. Infelizmente, apaguei meus perfis anteriores [no site de relacionamentos orkut] mas, neles, os testemunhos de meus alunos mostravam o quanto me prezavam e, até, admiravam minha postura e modo de vida. Acho que cada um de nós, ateus, na sua vida social, nas conversas com os amigos, deve aproveitar as oportunidades para levantar essa treva das crenças infundadas e fazer ver a luz do conhecimento real, da verdade cristalina de que Deus não existe e que isto é algo muito bom de se saber. Que é motivo de grande paz e felicidade, como também de maior responsabilidade em fazer prevalecer o bem sobre o mal. Tenho amigos e amigas que são religiosos mas, mesmo assim, respeitam meu ponto de vista e admiram minha postura. Infelizmente custam a se convencer. Mas isto, para mim, é um ponto de honra e, digo mesmo, uma missão de vida. A militância ateísta de Richard Dawkins, Daniel Dennett, Sam Harris, Michel Onfray e outros não me parece, da modo algum, agressiva e mesquinha. Pelo que já li desses autores (todos os livros do Dawkins, “Quebrando o Encanto” do Dennett, “Tratado de Ateologia”, do Onfray e “Carta a uma nação Cristã” do Harris) eles são muito mais educados e têm muito mais consideração pelos crentes do que reciprocamente os crentes em relação aos ateus. Outros autores ateístas que já lí, como Bertrand Russell e Andrè Comte-Sponville, por exemplo, também são respeitosos em relação aos crentes. Certamente que mostram, sem meandros, como eles estão equivocados e condenam, mas mesmo assim com cortesia e elegância verbal, os aproveitadores da credulidade do povo. Esta é uma postura que precisa mesmo ser posta em prática, pois está mais do que cabalmente demonstrado como as crenças, e sua pior manifestação, as religiões organizadas, são nefastas à humanidade. É certo que muita coisa boa se fez em nome de crenças e religiões, mormente no quesito filantropia, mas nada que não pudesse ser feito sem o envolvimento das crenças e religiões. Veja-se, por exemplo, os “Médicos sem Fronteiras”. É preciso que políticos ateus, como o Fernando Henrique, assumam sua condição de peito aberto (não estou abonando e nem estigmatizando o Fernando Henrique em nada aqui, exceto nisto). Tenho orgulho em me proclamar ateu perante todo mundo, sempre que inquirido a respeito, e defendo com bons argumentos minha posição. Apesar disto sou um pessoa conceituada e respeitada em meu meio social por tudo que faço e por minha conduta pessoal e social, além de admirado em meu exercício profissional de professor e administrador escolar. Aproveito tudo isso em benefício da causa ateísta e vejo como missão de minha vida tornar o mundo melhor pelo esclarecimento do povo neste aspecto. A coisa mais importante para uma correta conduta intelectual é o espírito livre-pensador, inteiramente dissociado de qualquer dogmatismo mas também aberto a todas as possibilidades. O dogmatismo ateísta, bem como o marxismo dogmático são extremamente nocivos, do mesmo modo que o fanatismo religioso de muitos muçulmanos e mesmo de certas facções cristãs. A postura cética correta é a postura da dúvida, jamais levada a um plano dogmático. A dúvida é um dos instrumentos da busca do conhecimento, e, portanto, da verdade. A verdade é um valor superior a qualquer crença. Assim, meu ateísmo é uma condição atual e provisória. Como já fui católico romano fiel, passando para agnóstico e depois para ateu, posso me tornar espírita ou budista. Tudo vai depender de onde eu acharei a verdade. Mas meu ceticismo é fundamental, pois sempre vou precisar duvidar de ter possuído a verdade, justamente para obter mais garantias de que a possua. O que almejo ver disseminado na humanidade, especialmente na juventude, é esta posição franca e aberta de tudo examinar e considerar, nada objetando “a priori”, por mais esquisito que seja. O problema das crenças, mesmo do ateísmo dogmático, é justamente a inflexibilidade, os antolhos da mente. Por exemplo, ando muito interessado no espiritismo, pois tenho uma irmã que o professa. Com todo o meu ceticismo, tenho lido as obras de Allan Kardec, como já li a Biblia, muitos trechos do Corão e pretendo ler os mais importantes Vedas. Mas leio também Richard Dawkins, Michel Onfray, Sam Harris e Daniel Dennett, como li Bertrand Russell. A questão que coloco é como decidir por esta ou aquela explicação do mundo. Para mim só há duas possibilidades: a evidência dos sentidos ou as ponderações da razão. Penso que a Fé, qualquer que seja, não pode ser usada como critério de verdade, uma vez que há fiéis sinceros que creem em coisas inteiramente diferentes. Quanto ao espiritismo, não está conseguindo me convencer. *** Ernesto von Rückert é matemático, físico, cosmologista, professor universitário aposentado e fundador do curso de Física da Universidade Federal de Viçosa.
autor Darwin- Charles Darwin,
Introdução, The Ascent of Man, 1871
autor Darwin Fonte: http://www.str.com.br/Frases/fraseag.htm#A "Eu era ortodoxo na época em que estive a bordo do Beagle. Lembro-me de provocar gargalhadas em vários oficiais por citar a Bíblia como uma autoridade incontestável (...). Nesse período, entretanto, percebi pouco a pouco que o Velho Testamento (...) não merecia mais confiança do que os livros sagrados dos hindus ou as crenças de qualquer bárbaro. (...) Eu não estava disposto a desistir de minha crença com facilidade, lembro-me das inúmeras vezes em que inventei devaneios com a descoberta de antigas cartas entre romanos ilustres e de antigos manuscritos em Pompéia, ou em algum outro lugar, que confirmassem de maneira admirável tudo o que estava escrito nos Evangelhos. Mas eu tinha uma dificu1dade cada vez maior, soltando as rédeas de minha imaginação, de inventar provas suficientes para me convencer. Fui tomado lentamente pela descrença, que acabou sendo completa. A lentidão foi tamanha que não senti nenhuma aflição, e desde então nunca duvidei de que minha conclusão foi correta. Aliás, mal comigo entender como alguém possa desejar que o cristianismo seja verdadeiro." Charles Darwin, Autobiografia 1809 – 1882 "Me parece (seja correto ou errôneo) que o argumento direto contra o cristianismo e o teósmo dificilmente produz qualquer efeito no público; e a liberdade de pensamento é promovida melhor pela iliminação gradual das mentes dos homens que se segue do acanço da ciência." Charles Darwin "A ignorância suplica confiança mais freqüentemente do que o conhecimento: são aqueles que sabem pouco, e não os que sabem muito, que afirmam tão positivamente que esse ou aquele problema nunca serão resolvidos pela ciência." Charles Darwin, Introdução, The Ascent of Man, 1871 "Ao ver os marsupiais na Austrália pela primeira vez e comparando-os com os mamíferos placentais: Um descrente ... pode exclamar 'Certamente dois Criadores distintos devem ter trabalhado.'"Charles Darwin
Postado por Idma às 19:34
autor Darwin Fonte: http://www.str.com.br/Frases/fraseag.htm#A "Eu era ortodoxo na época em que estive a bordo do Beagle. Lembro-me de provocar gargalhadas em vários oficiais por citar a Bíblia como uma autoridade incontestável (...). Nesse período, entretanto, percebi pouco a pouco que o Velho Testamento (...) não merecia mais confiança do que os livros sagrados dos hindus ou as crenças de qualquer bárbaro. (...) Eu não estava disposto a desistir de minha crença com facilidade, lembro-me das inúmeras vezes em que inventei devaneios com a descoberta de antigas cartas entre romanos ilustres e de antigos manuscritos em Pompéia, ou em algum outro lugar, que confirmassem de maneira admirável tudo o que estava escrito nos Evangelhos. Mas eu tinha uma dificu1dade cada vez maior, soltando as rédeas de minha imaginação, de inventar provas suficientes para me convencer. Fui tomado lentamente pela descrença, que acabou sendo completa. A lentidão foi tamanha que não senti nenhuma aflição, e desde então nunca duvidei de que minha conclusão foi correta. Aliás, mal comigo entender como alguém possa desejar que o cristianismo seja verdadeiro." Charles Darwin, Autobiografia 1809 – 1882 "Me parece (seja correto ou errôneo) que o argumento direto contra o cristianismo e o teósmo dificilmente produz qualquer efeito no público; e a liberdade de pensamento é promovida melhor pela iliminação gradual das mentes dos homens que se segue do acanço da ciência." Charles Darwin "A ignorância suplica confiança mais freqüentemente do que o conhecimento: são aqueles que sabem pouco, e não os que sabem muito, que afirmam tão positivamente que esse ou aquele problema nunca serão resolvidos pela ciência." Charles Darwin, Introdução, The Ascent of Man, 1871 "Ao ver os marsupiais na Austrália pela primeira vez e comparando-os com os mamíferos placentais: Um descrente ... pode exclamar 'Certamente dois Criadores distintos devem ter trabalhado.'"Charles Darwin
Postado por Idma às 19:34
Ceticismo - Jean Paul Dumont
O CETICISMO
CETICISMO Jean-Paul Dumont (Scepticism: Artigo da Encyclopædia Universalis, Paris, s.d.,vol:14, pp. 719-723. Tradução: Jaimir Conte) 1.SIGNIFICADO DO CETICISMO ANTIGO *Dados históricos *Divergências das tradições *O fenomenismo grego *Evolução do relativismo *Os novos céticos 2. AS TRANSFORMAÇÕES DO CETICISMO *História da história do ceticismo *Cristianismo e ceticismo *Racionalismo e ceticismo O termo ceticismo terminou por designar atualmente, na linguagem comum, uma atitude negativa do pensamento. O cético é visto, freqüentemente, não somente como um espírito hesitante ou tímido, que não se pronuncia sobre nada, mas como aquele que, sobre qualquer coisa que é avançada, ou sobre qualquer coisa que possa dizer, se refugia na crítica. Da mesma forma, acredita-se ainda que o ceticismo é a escola da recusa e da negação categórica. Na realidade, e por sua própria etimologia (skepsis em grego significando “exame”), o ceticismo vetaria qualquer posição decidida, a começar até pela que consistiria em afirmar, muito antes de Pirro e como Metrodoro de Abdera, que somente sabemos uma coisa: que nada sabemos. Os céticos qualificam a si mesmos de zetéticos, isto é, de pesquisadores; de eféticos, que praticam a suspensão do juízo; de aporéticos, filósofos do obstáculo, da perplexidade e dos resultados não encontrados. Além disso, os historiadores latinos e gregos da filosofia cética, como Aulo-Gélio, Sexto Empírico e Diógenes Laércio, mantém uma distinção muito rigorosa entre os acadêmicos, que sustentam a impossibilidade de conhecer, e os céticos, que tomam a vida e a experiência por critérios de suas condutas. Para compreender o ceticismo, é preciso, pois, responder sucessivamente a estas duas questões: em que consistia o ceticismo antigo? Por que o ceticismo foi, na história da filosofia, ignorado e traído em sua intenção e valor? 1.SIGNIFICAÇÃO DO CETICISMO ANTIGO Dados históricos O fundador do ceticismo grego foi Pirro (fim do IV séc. a.C.). Ele não deixou nenhum escrito filosófico. Nasceu em Élis, pequena cidade do Peloponeso, onde viveu inicialmente como pintor, depois interessou-se pela filosofia, principalmente sob a influência de Anaxarco de Abdera, em companhia de quem seguiu Alexandre, o Grande, por ocasião da campanha da Ásia. Retornando à Élis, fundou uma escola filosófica que lhe valeu uma enorme reputação junto a seus concidadãos. Ele vivia pobre e simplesmente em companhia de sua irmã, Filista, que exercia a ocupação de parteira. Seu historiógrafo posterior, Antígone de Caristo, expressou em linguagem anedótica a indiferença de alma, a impassibilidade e o domínio de si que ele tinha. Ele teve por discípulo Tímon, autor de várias obras em versos e em prosa: as Sátiras (ou Considerações suspeitas); sendo que o verbo “satirizar” passou a significar a partir de então, “lançar-se a uma crítica acerba”), as Imagens; um diálogo, o Python (jogo de palavras sobre Pirro?); dois tratados em prosa Sobre as sensações e Contra os físicos. Porém, sua obra nos é apenas conhecida de modo muito fragmentário. A escola cética conhece um eclipse que eqüivale a um desaparecimento. Uma certa forma de ceticismo é, então, praticada pelos neo-acadêmicos: Arcesilau (primeira metade do séc. III e início do séc. II a.C.), chefe da nova academia.(Cf. Academia). Em seguida, a escola renasce graças à atividade de Enesidemo, de quem a obra é bastante conhecida, mas de quem a vida é de tal modo pouco conhecida que hesitamos sobre a época em que viveu (ele foi contemporâneo de Cícero ou viveu um século mais tarde?). Depois dele, a figura mais marcante é a de Agripa, mas da carreira dele nada conhecemos, a não ser os cinco argumentos que Diógenes Laércio lhe atribui. Aparece em seguida Sexto Empírico, o grande historiador do ceticismo, de quem também não sabemos quando e onde viveu (entre o início do séc. II e a segunda metade do séc. III d.C., sem dúvida na Grécia, posto que ele parece conhecer muito bem, além de Atenas, Alexandria e Roma.) Ele pertencia a escola empírica, o termo “empírico” sendo quase sinônimo de médico. Esta escola foi erguida em honra ao médico Menodoto de Nicomédia, discípulo de Antíoco de Laodicéia. A história do ceticismo antigo termina no século III. Divergências das tradições O ceticismo grego é bem conhecido, principalmente pelo testemunho dado por Sexto Empírico através de obras que expõem minuciosamente sua intenção e seus argumentos. Mais ou menos na mesma época, Diógenes Laércio dedicou uma parte importante do livro IX de suas Vidas à escola pirrônica. Em seguida, Eusébio de Cesaréia (início do séc. III ) expôs em sua Preparação evangélica (XIV,18) um testemunho bastante longo, relativo à Tímon, e conservado pelo peripatético Arístocles de Mecena que foi quase seu contemporâneo. Percebe-se, pois, que as fontes relativas ao ceticismo antigo são extremamente tardias, já que a doutrina foi fixada somente cinco séculos mais tarde. As fontes latinas incluem um capítulo das Noites áticas de Aulo-Gélio (início do séc. II d.C.) que utiliza Favorinos, Gaulois de Arles, contemporâneo de Adriano, e que mantém uma distinção entre céticos e acadêmicos. Resta Cícero. Como freqüentemente, Cícero é nossa fonte mais antiga em matéria de história de filosofia antiga. Assim como a exposição de Catão em De Finibus constitui o mais antigo trabalho do conjunto do estoicismo, os Acadêmicos e, em menor grau, as Tusculanas contém um certo número de informações relativas aos aspectos morais do pirronismo e aos aspectos epistemológicos da filosofia acadêmica. Porém, é preciso limitar a importância do testemunho de Cícero por três razões. Primeiramente, ele é, embora o mais antigo, muito posterior aos céticos. Por outro lado, Cícero não conhece o termo grego ????????, de modo que ele usa a palavra latina scepticus (não clássica); com a qual ele não poderia interpretar corretamente o ceticismo. Enfim, ele fala sobretudo de Arcesilau e de Carnéades, de quem conhece as polêmicas com o estóico Crisipo; ora, é muito difícil admitir que o que ele atribui a Arcesilau e a Carnéades possa valer também para os discípulos de Pirro. Como freqüentemente na história do pensamento antigo, encontramo-nos diante de tradições fixadas posteriormente; o autor, que retranscreve a opinião dos antigos ou de seus predecessores, reconstitui a tese que ele lhes empresta. Conhecer em sua pureza uma tese antiga fragmentada e retranscrita logo depois, é uma empreitada que convém renunciar. Todavia, a respeito da história do ceticismo, a impossibilidade de escolher uma maneira absolutamente decisiva entre uma ou outra tradição, comporta conseqüências filosóficas incalculáveis. Se adotarmos o ponto de vista de Cícero, embora Cícero seja o único autor antigo a sustentá-lo, estamos condenados a fazer dos céticos, filósofos que afirmam com ênfase que nada podemos conhecer. Os Acadêmicos são a fonte dos que, como Sêneca, santo Agostinho, Hume, Kant ou Hegel, oferecem do ceticismo antigo a imagem de um niilismo radical. Em compensação, se adotarmos o ponto de vista grego de Eusébio, de Sexto Empírico ou de Diógenes Laércio, o ceticismo é, ao contrário, uma filosofia cujo critério baseia-se na vida, na experiência e no fenômeno, excluindo apenas as especulações dogmáticas. Como dizem Sexto Empírico (Hypotyposes Pirrônicas, III, 179) e Diógenes Laércio (Vidas, IX, 104), “o fogo, que por essência queima, causa a cada um a representação de ser quente”. Vemos então, nesta perspectiva, que a significação do ceticismo torna-se completamente diferente daquela de um pretenso niilismo que conduziria os homens à indiferença e à inação. Assim sendo, cabem duas questões: Por que o ceticismo grego constituiu-se como um fenomenismo? Por que, depois, um contra-senso foi cometido a respeito de seu verdadeiro significado? O fenomenismo grego A importância conferida pelo ceticismo ao conceito de fenômeno (cf. Fenômeno) pode ser medida pelas palavras de Tímon. “O fenômeno prevalece sobre tudo, por toda parte onde ele se encontra” (Sexto Empírico, Contra os lógicos, I, 30: Diógenes Laércio, Vidas, IX, 105). No início este conceito não pertence propriamente à linguagem filosófica, mas antes à física. Por fenômeno, os ouvintes do sofista Protágoras ou os leitores de Platão entendem uma realidade física, ou seja, uma imagem constituída de ar e de luz, que desempenha no processo da visão um papel determinante. Contrariamente aos cientistas dos tempos modernos que se acostumaram, depois de Kleper e Descartes, a comparar o olho ao dispositivo ótico da câmara escura, a Antigüidade grega fez intervir na produção da visão um duplo fluxo luminoso: o objeto emite ou reflete a luz, mas ao mesmo tempo o olho, vendo, emite um raio que parte ao encontro daquele que o objeto está emitindo. Esta concorrência dos dois fluxos requer um meio transparente ou diáfano como o ar quando é de dia ou quando as trevas não o tornam opaco. Do encontro desses dois raios luminosos nasce um corpo, ou objeto material, portanto, um produto mediato, uma espécie de meio termo visível, que leva o nome de fenômeno, designando a natureza luminosa da representação. Ele provoca uma dupla conseqüência. Por um lado, o objeto nunca é tomado ou apreendido conforme sua própria natureza ou tal qual ele é em si mesmo. Esse é o sentido que Sexto Empírico dá à antiga fórmula de Anaxágoras: “Os fenômenos são a visão do que permanece oculto”. O fenômeno é, portanto, como uma máscara ou cortina que se interpõe entre o objeto e olho; o visível é o que dissimula o real tornado invisível. Por outro lado, o fenômeno contém sempre alguma coisa que pertence ao sujeito; é por estar cheio de sangue que o olho percebe um fenômeno roxo e por estar com icterícia que vê tudo amarelo. Assim, tudo é relativo, o que leva, como Aristóteles o diz de Protágoras, a considerar que os fenômenos são o critério e a medida de todas as coisas. Quando interpretamos filosoficamente uma física da visão desse tipo, somos levados a considerar que a realidade empírica do objeto não poderia constituir um dado absoluto e que o conhecimento efetua-se relativamente ao sujeito que participa de sua constituição. Assim, no tempo de Pirro, a física grega coloca a filosofia diante da seguinte alternativa: já que a realidade empírica não é uma realidade apreendida em si, é preciso afirmar, ou que não há ciência possível, à qual se reduz a sensação, ou que a ciência se fundamenta numa realidade inteligível; e essa é a última solução examinada por Platão. Mas, no primeiro caso, que é o do empirismo estrito, os fenômenos constituem o único critério ao qual podemos legitimamente nos ater. Consequentemente, não resta mais que uma coisa a fazer: tomar a sensação por guia – é o que fazem os cirenaicos – ou tomar a vida por guia – é o que fazem os pirrônicos. Se acreditarmos em Tímon, conforme o que indica Eusébio, o fato de constatar que as coisas não manifestam visivelmente ou fenomenicamente qualquer diferença absoluta entre elas e escapam igualmente à certeza e ao juízo que pretende conhecê-las absolutamente, permite-nos permanecer sem opinião e sem inclinação, de escapar a todo abalo ou dúvida da alma, de limitar-nos a dizer de cada coisa, que ela não é mais isto que aquilo, o que conduz à afasia e à ataraxia (Eusébio, op. cit. XIV, 18). Conseqüentemente, o ceticismo antigo não é uma negação da ciência ou do saber, é, ao contrário, solidário ao desenvolvimento da física da percepção. Evolução do relativismo Entretanto, o século III a.C., é marcado por uma profunda subversão a propósito da teoria da percepção, e os principais responsáveis por esta evolução científica são os estóicos. Zenão e principalmente Crisipo se distinguiram de seus predecessores em dois pontos essenciais. Por um lado, recusam-se, de modo absoluto, a admitir, como Platão ou Aristóteles, a existência de realidades inteligíveis, mesmo que concebidas como imanentes ao objeto empírico. Eles se apresentam como empiristas no sentido estrito. É por isso que eles são nominalistas, consideram os conceitos como abstrações e desenvolvem uma lógica original que suprime as classes e que prefigura a lógica proposicional dos Modernos. Assim, eles dão razão, aparentemente, aos pirrônicos contra Platão. Lembramos ainda que o final do século III é marcado pelo triunfo do pensamento empírico. Mas, por outro lado, os estóicos rejeitam também a antiga física fenomênica. Na realidade, eles consideram a sensação como uma pura e simples afecção concebida conforme o modelo da impressão deixada na alma pelos objetos exteriores. Certamente, a impressão não se confunde com a realidade empírica destes. Portanto, a sensação nada apreende do objeto exterior: ela é passiva. Mas, ao mesmo tempo que a alma recebe a sensação, ela imagina espontaneamente e instantaneamente a causa da sensação; e é por isso que a imaginação é dita compreensiva, porque percebe a causa da qual a sensação é o efeito. Como se vê, os estóicos contornam a dificuldade levantada pelo estatuto físico do fenômeno, e compreende-se ao mesmo tempo, que neste contexto diferente e renovado, tenham se desenvolvido polêmicas entre os estóicos e os defensores da nova academia. É por essa época que deve se situar a intervenção de Enesidemo. Sua recusa do dogmatismo estóico consiste, essencialmente, em criticar a teoria da representação compreensiva, isto é, a possibilidade da alma imaginar corretamente e espontaneamente a causa da sensação que ela experimenta, utilizando, segundo um registro filosófico, o antigo modelo físico desvalorizado fornecido pelo conceito de fenômeno. Esta é a razão pela qual ele desenvolve uma série de argumentos destinados a exaltar o relativismo e a mostrar que toda representação, pretensamente compreensiva não pode perceber a essência da coisa. Estes argumentos são conhecidos sob a denominação de Dez Tropos ou Modos de Enesidemo, e é sua exposição que nas antigas Enciclopédias, por exemplo, a de Diderot e d’Alembert, constitui o ponto central da exposição das teses céticas. Nós nos limitaremos, de nossa parte, a apresentar as conclusões a que nos conduziu o estudo destes tropos. Os tropos ditos de Enesidemo são conhecidos por três exposições sucessivas e um testemunho complementar. A mais antiga versão é a oferecida por Fílon de Alexandria (Da embriaguez, 171-202) e ela compreende oito tropos. O primeiro tropo ressalta a diversidade dos animais e dos órgãos dos sentidos. Ele conclui que as sensações são relativas ao sujeito que as experimenta. O segundo tropo constata que um mesmo homem pode, segundo as circunstâncias, ser diferentemente afetado por um mesmo objeto. O terceiro tropo denuncia a relatividade das circunstâncias, como saúde e doença, sonho e vigília, idade, movimento e repouso, etc., que concorrem para a instabilidade dos fenômenos. O quarto tropo destaca a relatividade dada pelas posições, pelas distâncias e pelos lugares. O quinto tropo considera a quantidade e a composição das substâncias, cujas propriedades mudam conforme a fórmula de sua composição. O sexto tropo é o da relação. Este modo torna-se o mais importante na versão de Sexto Empírico e Diógenes Laércio, pois é o que funda o relativismo universal. O sétimo tropo revela o caracter misturado dos eflúvios provenientes de um objeto exterior. O oitavo tropo constata a diversidade dos costumes, das leis, da moral, das crenças e das convicções. A essa exposição em oito tropos que se encontra em Fílon corresponde a afirmação de Eusébio, segundo a qual Enesidemo teria formulado nove tropos, assim como a presença, em Sexto Empírico e em Diógenes Laércio, de exposições quase parecidas e que somente diferem pela ordem dos argumentos, que, em compensação, são em número de dez. Nós resolvemos este problema propondo que se considere que a versão retranscrita por Fílon remete a um escritor cético anônimo (e por que não ao tratado de Tímon: Sobre as sensações?), ao qual Enesidemo teria acrescentado um novo modo, aquele que, em Sexto Empírico e em Diógenes Laércio constitui o terceiro e que é relativo à diferença de disposição dos órgãos dos sentidos. Não foi senão mais tarde que Favorinos teria acrescentado um décimo argumento que ocupa o nono lugar na enumeração de Sexto Empírico e constitui uma variação pouco importante sobre o tema da freqüência e da raridade das ocorrências. Em todo caso, esses argumentos são destinados a contestar o caráter absoluto do conhecimento sensível e a recusar a pretensão dogmática e estóica de escapar ao antigo relativismo. A época de Enesidemo é a do relativismo filosófico. Sem dúvida, é também nesta época que se encontra reafirmada a vocação moral do ceticismo. Se, como pensa P. Couissin, a palavra epoché, isto é, “suspensão do juízo”, foi tomada emprestada de Zenão por Arcesilau e não criada por Pirro, bem que a idéia esteve certamente no próprio Pirro, e é o relativismo filosófico de Enesidemo que melhor contribui para definir a suspensão do juízo como a regra não dogmática da vida cética. O cético denuncia como vãs as concepções noumênicas e, recusando exercer dogmaticamente seu entendimento, limita-se a constatar a relatividade dos fenômenos, opondo entre eles as representações presentes e passadas e tirando de seu conflito argumentos para uma vida tranqüila e silenciosa. Os novos céticos O lugar da alma no qual se dá o jogo das oposições entre fenômenos e nôumenos é, segundo Enesidemo, a memória. A uma representação presente, pode-se opor uma representação passada, ou até, a imaginação de uma coisa futura. É a razão pela qual na prática da dúvida cética, a alma não se encontra totalmente engajada. Mais tarde, veremos Descartes, convicto da unidade do espírito humano, experimentar a dúvida como uma angústia que interessa a totalidade das faculdades. Ao contrário, com Enesidemo ou Sexto Empírico, é feita uma separação entre a faculdade sensitiva e a faculdade de imaginar ou de conceber, embora a dúvida possa permanecer a expressão feliz e tranqüila de uma imaginação e de um entendimento suspensos ou, se se preferir, dogmaticamente inativos. Entretanto, para chegar a este silêncio do entendimento colocado na impossibilidade de se pronunciar sobre a natureza em si do objeto empírico, é preciso poder dispor de remédios apropriados e sobretudo cuidadosamente dosados a fim de não ocasionar, pela refutação de uma tese, a adesão do espírito a uma tese contrária. É a razão pela qual os céticos inventam, com Agripa, e praticam, com Sexto Empírico, uma nova lógica. Enquanto que, nas escolas gregas de filosofia, a lógica ou a dialética cumprem uma função defensiva contra os adversários do sistema, aqui a dialética é o instrumento de uma terapêutica destinada a dividir a alma em duas, ou seja, a impedir o entendimento de dogmatizar, concedendo plena confiança aos sentidos e à vida. Os novos céticos imaginaram cinco argumentos. O primeiro é o da discordância. Ele consiste nem reconhecer a oposição entre as opiniões e as teses; assim; na frase: “A neve é branca, mas a água é escura” é impossível saber qual é essencialmente a cor da água, e convém suspender o juízo quanto a este ponto. O segundo argumento é o da regressão ao infinito. Ele consiste em considerar que a prova a que o dogmático quiser recorrer, remete a uma outra prova, e assim ao infinito; por exemplo: pretender dar uma definição absoluta de qualquer coisa expõe quem formula esta pretensão a uma regressão ao infinito, já que o que define requer que ele mesmo seja definido, e assim por diante. O terceiro argumento é o da relação. Ele consiste em constatar que não somente os objetos são relativos entre si, mas que toda representação é sempre uma representação para um sujeito e relativa a ele. Este argumento retoma o da relação tal como Enesidemo o expressara. Esquerda e direita, pai e filho são relativos. Significante e significado são relativos. Tudo é relativo, o que exclui a universalidade. A própria fórmula: “tudo é relativo” deve ser entendida no sentido de “tudo nos aparece ou nos é representado conforme um fenômeno relativo”. Este argumento manifesta a herança filosófica de Protágoras. Ele estabelece um relativismo universal. Ele denuncia a pretensão do entendimento de se referir a uma certeza absoluta, ao conhecimento do real. O quarto argumento é o da hipótese. Quando os dogmáticos querem escapar do regresso ao infinito, eles colocam no início da cadeia de razões algo indemonstrável do qual convém admitir o caráter hipotético. Isto é o que fazem os geômetras que procedem por axiomas, definições e postulados. Mas o cético recusa-se a aceitar o que eles pedem e esquecer o caráter hipotético dos princípios nos quais a dedução se fundamenta. Assim, a geometria euclidiana ou a geometria estóica são denunciadas como sistemas hipotéticos: à outras hipóteses corresponderiam outras geometrias. O último argumento é o do dialelo ou círculo vicioso. Quando a gente pretende fundamentar circularmente uma prova sobre uma conseqüência daquilo que a gente procura demonstrar, a gente cai num círculo vicioso. O silogismo aristotélico que pretende deduzir da maior universal “todo homem é animal” a conclusão que “Sócrates é animal” cai no círculo vicioso. Pois a proposição:” todo homem é animal” é na realidade, fundada na indução que inclui todos os homens conhecidos: Sócrates, Platão, Díon. Conseqüentemente, é a conclusão, “Sócrates é animal”, que serve para fundamentar a hipótese “todo homem é animal” de tal modo que a gente cai num círculo vicioso. Até estes últimos anos, alguns eruditos ficaram exasperados pela multiplicação dos argumentos que Sexto Empírico propôs, enquanto que um espirito tão fino como o de Henri Estienne encontrou neles um grande deleite. Com efeito, é preciso ver bem que este estoque de argumentos dialéticos reuniu uma farmacopéia extremamente diversificada, comportando analgésicos, calmantes e tranqüilizantes da alma, objetos necessários para o cientismo da época, isto é, a pretensão dogmática de tudo conhecer. Ora, da mesma forma como observamos a propósito do pirronismo, quando, longe de derrubar toda ciência a dúvida é solidária de um estado dado da ciência, constatamos também em Sexto Empírico uma evolução particularmente significativa. Seu último tratado, Contra os astrólogos, não é dirigido contra a astronomia experimental, mas contra o charlatanismo dos Caldeus. Ele admite a utilidade e a legitimidade de uma astronomia experimental que permita regular os trabalhos da agricultura e prever as cheias dos rios. Vemos ele discutir os problemas postos para a medida do tempo por meio de um relógio d’água e refletir sobre o ajuste das simultaneidades. Enfim, o empirismo resulta em pesquisas comparáveis aos futuros métodos indutivos de Stuart Mill e coloca a possibilidade de edificar uma ciência não dogmática, que seria experimental Ainda que isso seja dito muito claramente pelos textos céticos, essa afirmação pode, entretanto, surpreender. Ela decorre do fato que em matéria de ceticismo o contra-senso parece ter conseguido mais força que a própria verdade histórica, mais exatamente, é o próprio contra-senso que é histórico a ponto de se impor contra a letra dos textos. Conseqüentemente, é a este aspecto tradicional do ceticismo que convém agora voltarmos nossa atenção. 2. AS TRANSFORMAÇÕES DO CETICISMO História da história do ceticismo A história do ceticismo moderno é inseparável da interpretação que os Modernos propõem do ceticismo antigo. Todos os que se declaram céticos em um certo sentido, como Montaigne ou Hume, fazem-no referindo-se a uma certa idéia do ceticismo. Mas, por outro lado, os partidários de um certo ceticismo não são os únicos a falar e a se posicionar em relação a idéia que eles fazem do mesmo. Assim, é necessário definir a imagem que os grandes filósofos deram do ceticismo antigo. Esta é, entretanto, uma tarefa difícil. É preciso, com efeito, lançar-se também a uma elucidação histórica das razões pelas quais sucessivamente o ceticismo antigo foi apresentado. Uma tal história em segundo grau cujo projeto é o de dar conta do estado do conhecimento das fontes em épocas diversas e da motivação das preferências interpretativas, exigiria, para ser completa, que se possa dar conta das metamorfoses do ceticismo antigo exigiria, para ser completa, que pudessem ao mesmo tempo dar conta do estado do conhecimento das fontes em épocas diferentes e das motivações das preferências interpretativas pelas quais os interpretes se tornaram responsáveis. É claro que nas épocas em que os textos pirrônicos são bem conhecidos o ceticismo é de preferência encarado como um empirismo e como um fenomenismo, em compensação, quando a influência de Cícero é predominante, é a interpretação acadêmica de um ceticismo negador que tende a se impor. Mas, por outro lado, as famílias espirituais às quais se ligam os intérpretes, orientam tão profundamente sua ligação seja à corrente do pensamento cristão, seja à corrente do pensamento racionalista, que convém dar conta esquematicamente agora. Cristianismo e ceticismo O primeiro filósofo a ter retomado os gregos e a ter, de algum modo, vivido de novo a experiência da dúvida foi Santo Agostinho. Uma grande parte de sua obra é dedicada a um esclarecimento das razões que a gente poderia ter para pôr em dúvida os conhecimentos humanos. O diálogo Contra os Acadêmicos apresenta na sua terceira parte toda a matéria das razões para duvidar que constituíram “alimento tão comum remastigado pela Meditação primeira de Descartes. Entretanto, o modelo ao qual Santo Agostinho se refere não é o pirronismo mas a dúvida acadêmica, que oferece o exemplo de uma verdade impossível de descobrir e de uma busca destinada a não terminar. Por outro lado, Santo Agostinho não se sente à vontade na dúvida. Enquanto que a suspensão do juízo aparecia voluptuosa a Enesidemo, ela o mergulha num verdadeiro desespero diante da certeza inencontrável, a desesperatio veri. O ceticismo ganha com Santo Agostinho três características novas: primeiramente, a dúvida é vivida. Se pensarmos no caráter existencial que toma a dúvida cartesiana e que revestirá a consciência infeliz de Hegel, devemos reconhecer em Santo Agostinho o mérito surpreendente de inaugurar para o ceticismo uma função totalmente nova. A razão disso é a impossibilidade augustiniana de separar as funções da alma, assim como o faziam os discípulos de Enesidemo. A unidade de espírito humano confere a dúvida a dimensão total de um completo desespero. Em segundo lugar, ao ser ao mesmo tempo desesperadora e existencial, a dúvida é uma experiência. Enquanto experiência – o que lhe confere uma intensidade particular –, a dúvida é passageira e dura um momento. Deste modo, a busca cética deixa de ser a busca zetética dos meios da suspensão, para tornar-se o momento da procura de uma verdade que ainda não se possui porque não está no poder da ciência possuí-la. É preciso notar este desvio do sentido grego da investigação cética para o sentido cristão de uma investigação da verdade. Em terceiro lugar, ao mesmo tempo em que a dúvida constitui uma experiência, ela é, não obstante, também um momento no sentido dialético do itinerário filosófico. O desespero é a expressão do momento da negatividade. A dúvida marca na literatura cristã o ponto da passagem obrigatório que constitui a permanência no purgatório, a prova necessária do pecado, o encontro das trevas do erro, cuja função revela as insuficiências de uma ciência atéia ou de uma certeza não fundada num Deus garantidor das verdades eternas. A dúvida é, pois, o momento da negação que transforma o saber humano numa certeza fundada na segurança de uma fé divina. Por isso mesmo, a experiência cética ocupa na vida do crente um lugar privilegiado, já que ela é a expressão da insuficiência do paganismo e a afirmação já presente de uma certeza de uma ordem inteiramente nova.. É porque Descartes e Hegel são, no fundo, tão cristãos quanto Santo Agostinho, que um propõe dar a dúvida unicamente metódica do Discurso do método a dimensão espiritual do desespero existencial das Meditações, e que o outro concebe o desenvolvimento da consciência como passando para um instante necessário do erro com o objetivo de chegar a uma certeza fundamentada. O ceticismo é um instante do purgatório em que a fé desolada e perdida se despoja das ilusões sensíveis, antes de ultrapassar o instante da crítica e da busca, para a apreensão de uma certeza tornada sólida, porque endurecida por ocasião desta própria prova. Daí decorre que o ceticismo, que a gente poderia acreditar espontaneamente que ele é rejeitado como um pecado e como uma abominação pelos teólogos, seja, na realidade, considerado pelos pensadores cristãos como um precioso auxiliar da fé em oposição a ciência. O exemplo mais claro é o uso pascaliano do pirronismo destinado a revelar a “fraqueza do homem através de seus “discursos de humildade”. “Zombar da filosofia é, em verdade, filosofar”(...) nós não acreditamos que toda a filosofia valha uma hora de aflição (...) o pirronismo é a verdade”. O ceticismo cumpre nos Pensamentos, uma função apologética: humilhar a inteligência, rebaixar o saber humano e manifestar a miséria de um entendimento abandonado por Deus. Porém, é preciso sublinhar o caráter, no fundo, banal e extremamente clássico desta concepção do ceticismo. A voz pascaliana é somente uma dentre outras no meio de um concerto de personagens menos ilustres que, todavia, tiveram em seu tempo uma influência considerável. Nicolau de Cusa tinha na metade do século XV, dado um esclarecimento particular, sob o nome de docta ignorantia, à ignorância reconhecida pelos neoplatônicos como a condição do homem diante da infinita grandeza de um Deus situado para além de todo o conhecimento humano. Erasmo, no Elogio da loucura, retoma a expressão de São Paulo: “Eu não falo segundo Deus mas como se fosse louco”. Agrippa de Nettesheym, em De incertitudine e vanitate omnium scientiarum e artium liber que conheceu um sucesso duradouro, denuncia a nociva presunção da ciência de se igualar a palavra de Deus. Henri Estienne em seu prefácio às Hypotyposes pirrônicas de Sexto Empírico apresenta o pirronismo como o melhor remédio contra a impiedade dos filósofos dogmáticos. Para Gentien Hervet, editor de Adversus mathematicos, a obra de Sexto Empírico exalta as fraquezas da razão humana e reconduz naturalmente o espírito para o caminho da religião católica. No século XVII, La Mothe le Vayer ( Da virtude dos pagãos, 1641, Solilóquios céticos, 1670) e Huet, bispo de Avranches (Tratado da fraqueza do espírito humano, obra póstuma, 1722), retoma ainda o mesmo tema: “Minha razão não podia me fazer conhecer com uma inteira evidência e uma perfeita certeza se há corpos, qual é a origem do mundo e várias outras coisas semelhantes, mas depois que eu aceitei a fé todas estas dúvidas se esvaneceram como espectros ao levantar do sol”. O principal responsável pelo sucesso do ceticismo foi, bem entendido, Montaigne. Montaigne exerceu uma influência determinante sobre Descartes, Pascal... No entanto, seu caso merece ser considerado inteiramente à parte. Com efeito, seu conhecimento do ceticismo antigo é singularmente rico e exato. Por um lado, ele é um dos raros autores da Renascença e o primeiro historiador da filosofia moderna a estabelecer uma distinção entre o niilismo dos acadêmicos e o pirronismo. Por outro lado, mesmo que a única obra que ele tenha lido seja as Hypotyposes pirrônicas, ele conhece muito bem Sexto e o utiliza abundantemente. Além disso, se Montaigne atribui ao ceticismo, na Apologia de Raymond Sebond, o mesmo papel que Pascal lhe concederá em relação à fé, ele não é, por um lado, como Pascal, um homem de fé, por outro, o modelo do ceticismo ao qual se refere é estritamente pirrônico. Enfim, por esta razão, Montaigne reata com a tradição grega: sua convicção é a de um relativismo universal. Ele está intimamente persuadido que o sujeito singular é incapaz de ultrapassar a singularidade de suas impressões e de sua imaginação para alcançar um conhecimento válido universalmente. Houve um tempo em que comprazia-se em separar, em Montaigne, os momentos estóico, cético e epicurista de seu pensamento. Isto decorria de uma ilusão grave, e também de um desconhecimento da natureza do pirronismo. Montaigne jamais praticou o desespero acadêmico, mas ele foi de início ao fim pirrônico, tendo considerado que a honestidade o forçava a falar da maneira singular com a qual ele via o mundo através dele mesmo, ao invés de adotar sobre o mundo um ponto de vista universal, decidido e dogmático. É por isso que este autor, que cita tão abundantemente os antigos, declara preliminarmente ser ele mesmo “a matéria de seu livro”; entendamos que, para ele, todo dado é relativo à um sujeito, isto é, aos sentidos e à imaginação particular. Racionalismo e ceticismo O racionalismo não pode senão afastar como estéril e como errôneo o ceticismo acadêmico. A expressão de um saber que se resumiria na proposição “não sei nada”, mesmo que se tratasse do não-saber de Metrodoro, da verdade inapreensível de Demócrito ou do nihil scire de Arcesilau, é tradicionalmente denunciada como se destruindo a si mesma. Já Sócrates, no Eutidemo de Platão (286c), denuncia este tipo de tese que, querendo derrubar as outras, destrói-se ao mesmo tempo. Assim, Hume sublinha os danos daquilo que ele chama (erroneamente!) o pirronismo: a dúvida cética é uma “doença”. (Tratado da natureza humana). O ceticismo é considerado “extravagante” (ibid.). A ação, o trabalho e as ocupações da vida ordinária destroem o pirronismo (Investigação). Igualmente, Kant observa que o ceticismo em geral se destrói a si mesmo, e considera os céticos como nômades, “sem domicílio fixo”. (Crítica da razão pura). É evidente que os sucessos da ciência moderna parecem descartar o ceticismo entendido como o niilismo acadêmico. Entretanto, um certo pirronismo, ora reconhecido como tal, ora praticado como uma filosofia original reconstruída independentemente de sua fonte grega, continuará a existir em função do próprio racionalismo. No século XVII, a análise cartesiana do sensível faz surgir um empirismo cujos traços encontramos em Malebranche, Gassendi, Bayle ou Locke. Pois, se as matemáticas escapam à toda incerteza, não se pode dizer o mesmo das realidades empíricas e sensíveis. Para os cartesianos, as qualidades sensíveis dos objetos, como o calor, o odor e as cores não estão, assim como o nota Bayle, nos objetos de nossos sentidos: “Estas são modificações da alma; eu sei que os corpos não são tais como me aparecem” (Dicionário). “Bem que desejaríamos excetuar a extensão e o movimento, mas não podemos; porque se os objetos dos sentidos nos parecem coloridos, quentes, frios, com cheiro, ainda que eles não o sejam, por que eles não poderiam parecer extensos e figurados, em repouso e em movimento, ainda que eles não fossem nada disso?”(ibid.) Em um certo sentido, portanto, o autêntico pirronismo, o que significa dizer, o relativismo fenomênico, encontra nas análises dos cartesianos um terreno propício para sua renovação. O ponto fraco do cartesianismo não consiste, precisamente, na dificuldade encontrada para demonstrar a existência das coisas exteriores? Ora, é evidente que, se Deus garante sua existência, ele não poderia fazer que as qualidades sensíveis não fossem relativas aos sentidos que as apreendem. Quando Descartes analisa o pedaço de cera (Meditação segunda), é difícil não se perguntar qual teria sido sua atitude frente à objeção de Sexto Empírico ao analisar a maçã “lisa, de aroma agradável, de sabor doce e amarela” (Hypotyposes pirrônicas, 1, 94) e se interrogar sobre como seria nossa percepção se fôssemos surdos e cegos, ou seja, se somente dispuséssemos do tato, do paladar e do olfato, ou se possuíssemos um sentido suplementar. (I, 96 ) A especulação filosófica do século XVIII é inteiramente dominada pelo problema da percepção. Num sentido, Hume é o herdeiro, ao mesmo tempo, do pirronismo e do cartesianismo. “Se nós levarmos nossa investigação para além das aparências sensíveis dos objetos, escreve ele à propósito de Newton, a maior parte de nossas conclusões serão, eu o receio, cheias de ceticismo e de incerteza (...). A natureza real da posição dos corpos permanece ignorada. Nós conhecemos somente seus efeitos sensíveis e seu poder de receber um corpo. Nada mais está de acordo com esta filosofia do que um ceticismo limitado a um certo grau e uma bela confissão de ignorância nos assuntos que ultrapassam toda capacidade humana” (Tratado da natureza humana). Reconhecemos nisso, neste limite atribuído ao empirismo, os traços do positivismo moderno. Hume será probabilista. Ele considerará que o que nós afirmamos ser leis da natureza não são, na realidade, senão leis do espírito humano que imagina uma conexão constante entre os fenômenos, dos quais a percepção sensível somente oferece a imagem de uma conjunção. É porque a imaginação faz associações e tem uma função reprodutora, isto é, espera ver se repetir o que ela já constatou (tal será em Kant o sentido da síntese da repetição na imaginação), que ela introduz em sua visão da natureza uma conexão e uma ordem somente prováveis e não necessárias. Todo empreendimento Kantiano consiste, ao nível da primeira Crítica, em tentar fundamentar o caráter universal e necessário dessa conexão. Mas o importante é que o quadro dessa especulação seja ainda o fenomenismo. Um outro aspecto importante do uso racionalista do ceticismo é a exaltação do espírito de tolerância. Foi para dar término às querelas religiosas e mostrar a vaidade das oposições entre os dogmatismos fanáticos que Huart vulgarizou em francês, em 1715, as Hypotyposes de Sexto Empírico. Nós nos limitaremos aqui a destacar este ponto. Nós já indicamos mais acima, falando de Hegel, como o ceticismo pode ser o momento da negatividade no desenvolvimento de seu conceito. A reintegração, na história do conceito ou no campo da filosofia, do pensamento cético têm por efeito falsificar a apreciação oferecida do fenomenismo. A imagem do ceticismo que Hegel preferiu dar é a da negatividade radical professada por Arcesilau. Na medida em que Hegel considera a filosofia como una, em detrimento das oposições entre as escolas, é-lhe impossível considerar que as filosofias se excluam mutuamente. Essas exclusões são apenas aparentes: é a filosofia que está em luta contra si mesma, tanto na afirmação do ceticismo radical, como no instante de sua superação. Atualmente o pirronismo tornou-se uma filosofia quase universalmente praticada sob o nome de positivismo. É claro que todo nosso conhecimento, por muito aperfeiçoados que sejam os instrumentos, é um conhecimento da natureza que opera pela mediação dos sentidos. Conseqüentemente, todo nosso saber é relativo aos sentidos. A idéia de uma relatividade, a crítica eisteiniana da noção de simultaneidade, que não existe senão relativamente à um dado observador, os limites engendrados pelas relações de incerteza de Heisenberg a respeito de nossa apreensão dos fenômenos se produzindo pela cadeia molecular revigoraram o antigo relativismo de Protágoras, de Pirro e de Sexto Empírico. Nenhuma época sente tão vivamente quanto a nossa o caráter historicamente relativo dos costumes, das instituições, das linguagens e das civilizações. Isso não significa que nós estejamos desesperados, convictos do não-saber do saber, mas que sabemos que não há saber sem o homem, nem conhecimento empírico fora dos homens que os constróem. O ceticismo é, portanto, uma noção de duplo sentido. Historicamente, para os Gregos que o fundaram, é um fenomenismo. Mas ao lado deste relativismo expressou-se com mais ou menos força, conforme diversos contextos, uma tendência do espírito humano em reivindicar o poder infinito da negatividade. Os problemas filosóficos que dela resultam são de vários tipos. Primeiramente: é verdade que nós estamos totalmente condenados ao relativismo? é legítimo formular, fora da prática das ciências positivas, a exigência de um conhecimento racional absoluto apoiado na fé da razão ou na crença num Deus “medida de todas as coisas” como o de Platão, ou garantidor das “verdades eternas” como o de Descartes? Em segundo lugar: de onde vem esta vertigem, esta aspiração ao nada, este apetite pela negação, esta tendência a radicalizar a dúvida que leva o homem, contra toda evidência, a proclamar o nada de seus conhecimentos e a vaidade da ciência? Por que Pascal assusta-se com o “pirrônico Arcesilau”, como com o silêncio dos espaços infinitos?, por que o pensamento dialético quer que a filosofia trabalhe para se negar a si mesma? Em terceiro lugar: podemos esperar atualmente do ceticismo que ele cumpra sua dupla função grega, ou seja, reduzir o entendimento ao silencio, mostrando as contradições dos dogmáticos e a vaidade das explicações metafísicas e religiosas que pretendem dar ao homem uma explicação total e definitiva; dar ao homem a tranqüilidade e a felicidade, fazendo com que ele não confie senão na vida, e remetendo ao domínio das ilusões as questões dogmáticas, fontes de sua inquietação, de sua intransigência, de sua fantasia, numa palavra, de sua infelicidade? Jean-Paul Dumont Scepticism: Artigo da Encyclopædia Universalis, Paris, s.d.,vol:14, pp. 719-723.Só para constar - Rastafaris
Hailê Selassiê e a Bíblia Uma opinião que une os rastafáris é que Ras (título amárico de nobreza que pode ser traduzido como "príncipe" ou "cabeça") Tafari ("da paz") Makonnen que foi coroado como Hailê Selassiê I, Imperador da Etiópia em 2 de Novembro de 1930, é a encarnação do chamado Jah (Deus) na Terra, e o Messias Negro que irá liderar os povos de origem africana a uma terra prometida de emancipação e justiça divina. Porém algumas correntes rastafáris não acreditam nisso literalmente. Parte porque seus títulos, como Rei do Reis, Senhor dos Senhores e Leão Conquistador da tribo de Judá, apesar de se encaixarem com aqueles mencionados no livro de Judá, também foram dados, de acordo com a tradição etíope, a todos os chamados imperadores salomônicos desde 980 a.C., mas Selassiê foi o único que recebeu, evidentemente, todos os títulos, incluindo os mais sagrados como Supremo Defensor da Fé e Poder da Santíssima Trindade. Hailê Selassiê era, de acordo com algumas tradições, o ducentésimo vigésimo quinto na linha de imperadores etíopes descendentes do bíblico Rei Salomão e a Rainha de Sabá. O salmo 87:4-6 é também intrepretado como a previsão da sua coroação. De acordo com a historiografia etíope, no século X a.C., a dinastia salomônica da Etiópia foi iniciada com a ascensão ao poder de Menelik I, filho de Salomão e da Rainha de Sabá, que visitava Salomão em Israel. 1 Reis 10:13 diz: "E o Rei Salomão realizou todos os desejos da Rainha de Sabá, um destes sua própria generosidade Real. então ela voltou e foi para seu próprio país, ela e seus servos." Segundo a popular epopéia étíope Kebra Negast, rastas interpretam isto como o significado que ela concebeu seu filho, e disto eles concluem que as pessoas negras são as verdadeiras crianças de Israel, ou hebraicas. Hebreus negros tem vivido na Etiópia por séculos, sem conexão com o resto do mundo judaico; a existência deles deram credenciais e ímpeto para os primeiros Rastafaris, validando a crença de que a Etiópia é na verdade Sião, já que só lá que a Casa de Davi reinava soberana, sob um país cristão/judaico, além de possuir a Arca da Aliança. Alguns rastafáris escolhem classificar sua religião como cristianismo ortodoxo etíope, cristianismo protestante, ou judaísmo. Entre estas, os laços para a Igreja etíope são os mais difundidos, embora isto seja uma controvérsia para muitos clérigos etíopes. Os rastafáris acreditam que as traduções comuns da Bíblia incorporam mudanças criadas pela estrutura da força branca racista. Alguns adoram a Kebra Negast, mas muitos destes rastas classificariam-se como etíopes ortodoxos na religião e rastafáris na ideologia. Alguns rastas prestam pouca atenção ao Kebra Negast, e muitos o consideram como estando pouco próximo da santidade da Bíblia. Muitos rastafáris acreditam que Selassiê é de certa forma a volta de Jesus Cristo e que, assim, eles seriam verdadeiros israelitas. Alguns ainda acreditam que Jesus era Moisés, filho de José, enquanto Selassiê seria "Moisés, filho de David", e usam uma visão não-milenar do reinado de Cristo e uma visão pós-milenar para Selassiê. No coração do rastafári está a crença de ser o próprio rei ou príncipe (por isso eles se proclamam rastafári). Como cantou Ras Midas, "Quando eu vi meu pai com a picareta e minha mãe com a vassoura, eu soube que o rasta estava exilado" (Ras Midas, Rastaman in Exile, 1980). Os rastas dizem que eles foram escravizados, mas converteram isso ao seu próprio potencial divino, acreditando que, como Selassiê interrompeu esse ciclo, eles também são dignos de serem reis e príncipes. Rastas chamam Selassiê de Jah ou Jah Rastafari, e acreditam haver uma grande força nestes nomes. Eles autoproclamam-se rastafári para expressar a relação pessoal que cada rasta tem com Selassiê I. Rastas gostam de usar o número ordinal com o nome Hailê Selassiê I, com o número romano dinástico significando o primeiro deliberadamente pronunciado como a letra I - novamente como signicado da relação pessoal com Deus. Eles também o chamam de H.I.M., sigla em inglês para "Sua Majestade Imperial" (His Imperial Majesty). Isso tudo reflete unidade, tendo em consideração que muitas das expressões rastas começam com "I", como I-Ration e I and I. Quando Hailê Selassiê I morreu em 1975, sua morte não foi aceita por alguns rastafáris que não podiam aceitar que o Deus encarnado poderia morrer. Muitos acreditam que a morte de Selassiê foi um engodo, e que ele voltaria para libertar seus seguidores. Os rastas atualmente consideram este parcial preenchimento de profecia encontrado no apocalíptico trecho de Esdras 2 7:28. Uma história anônima da fé rastafari aponta para Debre Damo, um dos três antigos Príncipes das Montanhas. Ele acredita que depois Derg ordenou sua execução, os leais da guarda imperial trabalhando como agentes duplos usaram hipotermia induzida para fazer Selassie aparecer morto. Ele e os remanescentes leais da Guarda Imperial foram contrabandeados para assegurar o significado da estrada de ferro subterrânea. Eles agora caem em êxtase em um quarto secreto debaixo do monastério até o dia do julgamento, no qual eles serão automaticamente reanimados e totalmente revelados (11:19-21), assim como a Arca que está na Etiópia irá surgir. Isto deve ocorrer apenas depois dos idosos libertarem o povo da Jamaica, pois Selassiê, em 1966, disse que a repatriação e revelação só ocorreriam após a Jamaica ser libertada pelos Rastafaris.
AS PSEUDOCIÊNCIAS NAS UNIVERSIDADES BRASILEIRAS-Widson Porto Reis
Matéria gentilmente enviada por roberto barbiere,num domingo nublado,quando todos aqui de casa sairam para jogar golfe, e eu procurava o que fazer, em dias nublados prefiro fazer alguma coisa dentro de casa, então achei... abri meus emails e tava lá: Algo para eu me indignar um pouco, e espantar a monotonia da falta do sol... Repasso para vcs:
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AS PSEUDOCIÊNCIAS NAS UNIVERSIDADES BRASILEIRAS
Widson Porto Reis
“INTRODUÇÃO
A pseudociência chegou à última fronteira do pensamento crítico. Depois que os mapas astrológicos se espalharam pelas revistas femininas e o feng-shui e a radiestesia fincaram pé nas revistas de decoração; depois que a homeopatia tornou-se prática médica reconhecida e a memória da água virou citação comum nas revistas de ciência; depois que as correntes de e-mail convenceram os legisladores de um estado brasileiro que o uso de celulares deveria ser proibido nos postos de gasolina e enquanto o criacionismo se avizinha das aulas de ciência das escolas públicas de outro estado… agora a pseudociência e o pensamento mágico travestido de ciência chegaram à universidade.
O PROBLEMA
O fato não é realmente novo mas nunca antes se viu tantas atividades vindas de dentro da universidade destinadas a difundir e legitimar a pseudociência. A cada dia surgem na imprensa notícias de novos cursos de extensão, pós graduação e até mesmo graduação, pesquisas científicas, palestras e seminários promovendo as pseudociências.
A universidade privada já é terra arrasada há tempos. Com um estrito compromisso com o lucro, a universidade particular oferece ao cliente o que ele quiser. Assim pode-se encontrar cursos de pós-graduação e de extensão em praticamente qualquer pseudociência que se imagine: “Astrologia Clínica” na respeitada Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo e "Astrologia Aplicada na Gestão de Pessoas" na UBC; “Terapias Naturais e Holísticas” na Universidade Castelo Branco; “Feng-Shui” na Universidade Veiga de Almeida; “I-Ching” na Faculdade Cândido Mendes; “Florais de Bach” na Faculdade Helio Afonso (FACHA) e na Estácio de Sá (UNESA); Reflexologia na UNISUL… só para citar uma minúscula fração dos cursos oferecidos.
Mas é quando a pseudociência passa a ser difundida com o dinheiro público que a situação se agrava. A Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), por exemplo, ministra regularmente cursos de extensão em Reiki – técnica oriental de cura com as mãos – Aromaterapia e Mandalas. Os cursos são oferecidos pelo CCSA, Centro de Ciências Sociais Aplicadas. Já a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), certamente uma das mais conceituadas universidades do país, é a instituição pública brasileira com a maior oferta de cursos de extensão para a formação de profissionais esotéricos: “Terapia Floral”, “Fisiologia Chinesa e Práticas Energéticas”, “Astrologia, Corpo e Saúde“, “Cromoterapia” e especialmente o “Ecologia da Mente”, guarda chuva místico sob o qual se abrigam Radiestesia, I-Ching, Feng-Shui e Tarô. Para ser honesto, nenhum dos cursos citados causaria estranheza no triste cenário atual não fosse o fato de estarem catalogados na área de “Ciências da Saúde” e serem oferecidos pela Divisão de Ensino, Pesquisa e Extensão do Hospital Escola São Francisco de Assis. De fato, um dos projetos em andamento neste hospital universitário é a implantação destas técnicas no tratamento dos pacientes, buscando a “redução de custos hospitalares e melhoria da qualidade de vida e saúde (…) aprofundando e construindo o conhecimento das terapias naturais numa perspectiva multidisciplinar”.
Depois de ganhar os cursos de extensão, a pseudociência chegou a graduação. Já se espalham pelo país os cursos superiores em naturologia. A princípio a proposta parece inatacável. Afinal, seria muito bem vindo um profissional que pudesse prescrever tratamentos naturais reconhecidamente eficazes, separando-os de inócuos, e às vezes perigosos, curandeirismos. Mas como todo cético escaldado sabe, o rótulo de terapias naturais geralmente é uma fachada para as velhas esotéricas técnicas “milenares”.
Realmente, uma análise mais cuidadosa do programa desses cursos revela o que se espera: radiestesia, florais de Bach, cromoterapia e reflexoterapia são algumas das disciplinas que um bom naturólogo terá em seu currículo.
Além das terapias naturais e artes divinatórias, também a religião vem ganhando espaço na universidade, o que não seria problema nenhum desde que a ocupação não se desse no território das ciências. Uma destas iniciativas está na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS, que criou em 2001 o NIETE - Núcleo Interdisciplinar de Estudos Transdisciplinares Sobre Espiritualidade, atualmente coordenado pela a professora Malvina do Amaral Dorneles. Uma das atividades recentes do NIETE foi estabelecer uma parceria com a Sociedade Brasileira de Apometria para a formação de um grupo de estudos em apometria (GEPEA) a fim de “contribuir para a promoção da saúde da população de nossa comunidade (…) inserindo-se nas discussões contemporâneas da Organização Mundial da Saúde”. Bem, para quem não conhece, a apometria é uma técnica espírita, controversa mesmo entre os adeptos desta religião, que consiste em aplicar “pulsos magnéticos concentrados e progressivos no corpo astral do paciente”. Cursos de apometria incluem técnicas de desobssessão (exorcismo) e defesa contra vampirismo e espíritos parasitas. Outro filhote do NIETE é o Grupo Psi-Alfa-Ômega, coordenado pelo professor da UFGRS, Cícero Marcos Teixeira. Um das principais linhas de pesquisa do grupo é a Transcomunicação Instrumental (TI), a arte de receber mensagens do além através de ondas de rádio ou televisão. Quem pratica, jura que pode captar mensagens dos mortos nos ruídos de velhos rádios valvulados ou ver espíritos em difusas imagens de televisão; um update do velho mito das mensagens subliminares em discos de rock. "Queremos contribuir em termos acadêmicos para a compreensão do ser humano, uma vez que ele não vive somente no plano físico", diz Cícero, que também é autor do livro “Internautas do Além”.
Já na UNIFESP, o biólogo Ricardo Monezzi defendeu sua dissertação de mestrado: “Avaliação de efeitos da prática do Reiki sobre o sistema imunológico de camundongos machos”. No estudo, um terço do grupo de ratos recebia tratamento por impostação de mãos, outro terço tinha uma luva colocada sobre as gaiolas (para simular a impostação) e o restante não recebia nenhum tipo de tratamento. Ao final do experimento, Monezzi detectou um aumento do número de linfócitos e monócitos dos ratos submetidos ao tratamento. O trabalho já seria controverso o bastante sem a afirmação non sense com que foi divulgado por Monezzi na imprensa: “O corpo humano é um emissor de energias que ainda não foram qualificadas, mas exames como o eletrocardiograma e eletroencefalograma mostram que existem”. O estudo de Monezzi, mesmo sem ter sido replicado por nenhum outro pesquisador, é utilizado pelo GenteComSaude, Grupo de Meditação e Técnicas Complementares em Saúde, da UNIFESP, na promoção do curso de extensão do Centro de Aperfeiçoamento em Saúde: “Gerenciamento das doenças através do REIKI/impostação das mãos”, do qual, aliás, Monezzi é professor.
O caso UnB Neste quadro, a Universidade de Brasília certamente representa o caso mais grave. Esta prestigiada instituição, sediada na capital do País, criou em 1989 o Núcleo de Estudos de Fenômenos Paranormais (NEFP), ligado ao CEAM - Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares. O que parecia uma interessante iniciativa acabou se revelando um verdadeiro cavalo de tróia, com o qual astrólogos, radiestesistas, ufólogos, médiuns, entortadores de colheres e outros tantos vêm invadindo a academia, utilizando-a para difundir suas crenças pessoais.
O coordenador do NEFP é o engenheiro civil e astrólogo, Paulo Celso dos Reis Gomes. Paulo Celso é autor do trabalho “Verificação dos efeitos das posições dos astros na eclíptica com respeito à formação do homem e seu cotidiano”. Na pesquisa, os astrólogos (os próprios autores) confeccionaram o mapa astral de 100 voluntários conhecendo apenas as datas e locais de nascimento de cada um. Depois de receber seu perfil astrológico, os voluntários preencheram um questionário onde pontuaram, numa escala de 1 a 5, o grau de acerto ou relevância de cada uma das características levantadas. Somente 40 dos 100 questionários foram analisados; destes, os pesquisadores verificaram o impressionante índice de 95% de acertos.
É evidente que a única coisa que o estudo de Paulo Celso mediu foi a capacidade que as pessoas têm de se identificar com perfis vagos, especialmente os positivos e lisonjeiros, sobre si mesmas – o velho conhecido Efeito Forer. Esta falha grosseira de metodologia, contudo, não ficou no caminho do NEFP, que assim mesmo divulgou o trabalho nos maiores meios de comunicação do país. O astrólogo Francisco Seabra, também membro do NEFP, chegou a declarar à revista ISTOÉ, segunda maior revista de notícias do país: “A universidade faz uma revolução ao reconhecer que a astrologia é uma ciência”. A bisonha afirmação só revela o desconhecimento de Seabra sobre o que é ciência.
Um dos objetivos confessos do NEFP é trabalhar para a “sistematização da Astrologia e sua inclusão no rol das ciências oficiais”. Neste esforço já se encontra em sua quarta edição o Curso de Astrologia para Pesquisadores, promovido pela UnB e coordenado por Hiroshi Masuda, outro membro do NEFP. O curso tem uma missão bem definida: “formar astrólogos pesquisadores que venham a comprovar, de forma racional, os fundamentos da astrologia”.
Firme em sua missão, recentemente o NEFP conseguiu aprovar a realização do “1o Encontro Nacional de Astrologia”, ocorrido em agosto deste ano. O tema central do encontro foi a capciosa pergunta “Até que ponto a astrologia deve ser entendida como ciência?”. Francisco Seabra declarou a imprensa meses antes: “Vamos debater pesquisas que têm contribuído para aproximar o conceito astrológico do conceito científico”. Como se vê, à rigor não teria sido um debate muito amplo…
O vice coordenador do NEFP é físico PhD Álvaro Luis Tronconi. Pródigo em alegações que desafiam o bom senso, Tronconi já entregou à imprensa pérolas como: “Queremos saber por que a força do pensamento desorganiza a configuração dos átomos dos metais e se ela pode ser identificada e calculada como se faz com a energia elétrica, que não conhecemos por inteiro, mas todos acreditam que existe e a usam”, e “Se podemos melhorar nossa oratória, também podemos dominar a bioenergia e usá-la para nos teletransportar ou curar doenças”.
O objeto de estudo de Tronconi é o famoso paranormal brasileiro Luiz Carlos Amorim que, assim como o paranormal ícone dos anos 70, Uri Geller, exercita seus poderes em talheres e ganha a vida como oráculo de políticos, atores e qualquer um que possa pagar seus gordos cachês. Na verdade Tronconi e os demais pesquisadores do NEFP parecem considerar as habilidades paranormais de Amorim suficientemente demonstradas, já que o convidaram em 2003 a apresentar seus poderes durante uma palestra na UnB. Segundo a assessoria de imprensa da UnB, a demonstração foi um fiasco. A platéia, constituída em sua maioria pelos estudantes da universidade, compareceu decidida a desmascarar o paranormal e conseguiram fazê-lo perder a compostura (e aparentemente os poderes) em mais de uma ocasião - um interessante caso em que os alunos demonstraram mais senso crítico que seus professores. Como seria de se esperar, também este pequeno obstáculo de credibilidade não ficou no caminho do NEFP, que manteve agendado o curso “Despertando o Eu Paranormal” que Amorim ministraria na universidade. (O valor de aproximadamente 100 dólares que o interessado deveria desembolsar pelo curso pode ser visto como um grande investimento, já que aumentar a sorte em bingos e loterias é uma das artes que Amorim ensina em seus cursos.)
A relação de Luiz Carlos Amorim com o NEFP vem de longa data. O ex-coordenador do Núcleo, o psicólogo Joston Miguel Silva, estudou durante oito anos 13 pessoas que diziam possuir alguma habilidade paranormal, entre eles Amorim e Thomas Green Morton, outro paranormal brasileiro badalado entre os famosos. Dos 13, o pesquisador da UnB confirmou as habilidades de cinco. Outros cinco tiveram seus poderes parcialmente comprovados e sobre os três restantes não houve nenhuma conclusão. A técnica de Joston para validar os paranormais? a kirliangrafia, em que se usa uma Máquina Kirlian para fotografar a aura do sujeito.
O interesse do vice-coordenador do NEFP, pelo estudo da paranormalidade nasceu de uma marcante experiência pessoal. Tronconi atribui a cura de uma hérnia-de-disco ao poder mental da enfermeira que o tratou utilizando passes de mão. Arrebatado pela experiência, Tronconi hoje é coordenador e professor do curso de extensão “Ensaios Parapsíquicos”, promovido pela UnB. O programa do curso é um pout pouri esotérico envolvendo viagem astral, regressão a vidas passadas, kirliangrafia, chacras, interpretação de sonhos, retrocognição e outros assuntos que nos fazem imaginar como são as aulas de física que Tronconi leciona na universidade. Onde está o limite?
Criticar qualquer tipo de pesquisa na universidade é caminhar em uma linha muito tênue. Uma escorregadela e se atravessa para o lado do preconceito e do patrulhamento da liberdade acadêmica. Por isso é importante responder muito claramente: por quê a presença da pseudociência na universidade é tão nociva?
Como ponto de partida é preciso deixar claro que nenhum tema jamais deve ser considerado tabu na universidade. Muito pelo contrário. As pesquisas acadêmicas sobre as pseudociências são o necessário ferramental para o cético que promove a razão e o pensamento crítico. Afinal não se deve esperar que as alegações da astrologia e outras artes divinatórias, de diversas terapias alternativas e de inúmeros fenômenos paranormais sejam descartadas somente por desafiar o senso comum. Pesquisar é preciso.
O que torna o quadro atual preocupante é que o que se está fazendo em grande parte dentro da universidade não é somente pseudociência, é ciência ruim; ciência ruim em nome da legitimização da pseudociência. Os astrólogos, ufólogos, terapeutas alternativos e religiosos que vêm utilizando o nome da universidade em suas pesquisas não estão em busca da verdade, mas apenas da validação, custe o que custar, de suas crenças pessoais. Estes pesquisadores invertem o caminho que devem trilhar as novas idéias e levam suas controversas pesquisas aos meios de comunicação leigos antes de fazê-las chegar aos periódicos científicos, onde poderiam ser avaliados por seus pares. Na verdade, bem poucos destes trabalhos chegam a ver a luz de um revista peer-review. Trabalhos com resultados extraordinários, que se verdadeiros fossem obrigariam a ciência a rever seus conceitos mais básicos e introduzir novas entidades, forças e “energias”, são divulgados entusiasticamente sem a devida análise crítica dos resultados e sem que as potenciais fontes de erros sejam apontadas. Citações bibliográficas são seletivas e simplesmente ignoram toda a massa de dados, geralmente abundante nestes casos, que se opõem à visão dos autores. Acima de tudo não há replicação dos trabalhos; um único resultado favorável é considerado suficiente para confirmar as hipóteses do ansioso autor – muito pouco para quem está dirigindo na contra-mão do conhecimento estabelecido. O que estes pesquisadores estão fazendo é o que Richard Feynman chamava de “ciência de culto a carga”: algo que usa a linguagem científica, que segue os preceitos básicos do método científico e que até mesmo parece ciência – pelo menos tanto quanto um boneco parece um homem – mas no qual falta um elemento fundamental: integridade científica.
Mas a universidade também contribui para a legitimização do pensamento mágico quando serve de fórum para debate com a pseudociência. Tome-se como exemplo a recente palestra sobre “criacionismo científico” (uma contradição a partir do título) ocorrida na Universidade Federal do Estado de São Paulo (UNIFESP) sob (tímidos) protestos da comunidade científica.
Sabe-se que para o criacionismo não interessa o resultado do debate, mas apenas ser debatido; o simples fato de ocupar o palanque em uma grande universidade e ser ouvido pela elite intelectual do país já empresta ao movimento criacionista a imagem de cientificismo que ele tanto busca para se colocar como alternativa ao ensino da evolução.
Novamente não se trata de impor nenhum tipo de censura ou de “inquisição sem fogueiras” - como rapidamente protestam os que se consideram censurados ou perseguidos. Mas permitir que tudo seja dito em nome da ciência e esperar que as evidências falem por si mesmas, decididamente não funciona em um país onde grassa a ignorância científica e onde a mídia, vilã e vítima, noticia apenas a parte sensacional da notícia. Além disso, mesmo o mais ferrenho defensor da liberdade irrestrita de expressão concordará com o cético mais radical que há uma linha em algum lugar entre, por exemplo, a quiromancia e a acupuntura. Onde está a linha descobre-se checando-se as evidências e não emprestando o púlpito à primeira cigana interessada. E evidentemente ninguém está mais apto a investigar evidências do que a universidade.
Por fim é preciso lembrar que a crença em certas pseudociências traz um ônus para a sociedade. Este ônus pode não ser óbvio enquanto a astrologia fica restrita aos inocentes horóscopos das páginas dos jornais e o feng-shui às revistas de decoração. Mas e quando mapas astrológicos estiverem sendo usados em entrevistas de emprego ou nas salas dos tribunais? Alguém gostaria de perder um emprego ou uma causa judicial por causa da hora em que foi retirado da barriga de sua mãe? E quando pêndulos estiverem auxiliando os diagnósticos médicos e a imposição de mãos for prática comum nos hospitais públicos, no lugar dos tratamentos convencionais? E quando tudo isso estiver acontecendo porque a universidade deu a astrólogos e radiestesistas a mesma credibilidade profissional de engenheiros e médicos? Quanto tempo ainda temos até que cirurgias espirituais, devidamente abalizadas pelas pesquisas “científicas” da academia, sejam cobertas pelos planos de saúde? É bom lembrar que no Brasil, a homeopatia já chegou lá.
A CAUSA
O Brasil tem um quadro desanimador no que diz respeito ao combate à pseudociência. O movimento cético no país é um fenômeno relativamente recente, 100% amador e que não surgiu dentro da universidade e sim na internet em torno de grupos de discussão e uns poucos sites. Sendo um grupo formado em sua maioria por jovens ainda sem credenciais científicas, o Movimento Cético Brasileiro, se podemos chamá-lo assim, sofre por falta de credibilidade, o que até agora tem lhe permitido atingir apenas de raspão a mídia. Já a comunidade científica nacional está muito mais ocupada em concorrer pelos minguados recursos oficiais e lutar contra as dificuldades diárias de infra-estrutura, sucateamento de laboratórios, cargas horárias excessivas e toda a sorte de problemas, do que em combater voluntariamente a penetração da pseudociência em seu quintal.
Mas não faltam apenas as pessoas para combater o pensamento mágico, faltam os meios de divulgação. Dizer que as revistas de ciência no Brasil são tolerantes com as pseudociências é dizer pouco. Dizer muito seria chamar de “revistas de ciência”, revistas que já produziram suplementos especiais sobre astrologia e feng-shui. Sobre este tema Allan Novaes em seu artigo “Ciência em crise, jornalismo em queda?” mostra que de 2000 a 2004, 75% das capas da revista Superinteressante, maior revista de seu gênero no Brasil, foram sobre ciências sociais ou humanas e 42% foram de temas religiosos, místicos ou pseudocientíficos. Aqui, a crise do jornalismo científico se confunde a tal ponto com a questão da infiltração da pseudociência nas universidades que fica difícil distinguir causa e efeito.
Há outros motivos por que pseudociências e misticismos encontraram um terreno fértil nas universidades. O Brasil é um país que respira religiosidade, e onde existe uma mistura, talvez única no mundo, de religiões, cultos e seitas. Projetos de pesquisa e extensão como os que a UnB, UFRJ e UFRGS vêm realizando são populares porque mostram uma aproximação entre ciência e espiritualidade que muitos acreditam ser saudável. A idéia de que a ciência deveria dar as mãos à religião em uma espécie de “retorno às origens”, e que deste casamento forçado entre o materialismo e o espiritualismo nasceria o melhor dos dois mundos é muito promovida pelas ciências humanas e bastante apreciada pelo público leigo.
Condenar esta promiscuidade científico-místico-religisosa, modernamente camuflada por palavras como “interdisciplinaridade” e “multidisciplinaridade”, tem soado cada vez mais politicamente incorreto, e os cientistas não raro o evitam. Some-se a este quadro a natureza do povo brasileiro, hábil em conciliar o inconciliável – por exemplo, no sincretismo religioso que mescla os cultos africanos com o cristianismo – e sua aversão a qualquer tipo de confrontamento que possa ser levemente confundido com intolerância religiosa.
O que nos leva a maior de todas as causas para disseminação da pseudociência nas universidades: o Relativismo. O Relativismo é a idéia de que todos os saberes são apenas questão de opinião, fruto do seu contexto histórico e social. O relativista acredita que todos os pontos de vista são igualmente válidos e vê a ciência apenas como mais uma maneira de representar o mundo, em pé de igualdade com a não-ciência. A verdade científica, nesta onda relativista, é vista apenas como um produto social, uma questão democrática, de consenso da maioria. Desta maneira as teorias mais exóticas tornam-se irrepreensíveis e passam a ser escudadas por bordões como: “Você tem a sua opinião, eu tenho a minha” ou “tudo é relativo”. Novamente torna-se uma imperdoável intolerância criticar qualquer saber, por mais primitivo e desligado da realidade que seja. Francamente impulsionado pelas ciências humanas e sociais, esse relativismo paralisante não reconhece como final nenhum conhecimento científico (o que rigorosamente falando não é mesmo), mas tampouco descarta nenhuma alegação extraordinária; tudo pode ser, como pode não ser. Se a ciência ainda não comprovou a eficácia daquela “técnica milenar”, o problema é da ciência; dê-lhe mais alguns milênios e ela chegará lá.
CONCLUSÃO (temporária)
Não se propõe com este trabalho nenhum tipo de censura à produção universitária, mesmo em se tratando de fenômenos supostamente paranormais, místicos ou esotéricos; pelo contrário este trabalho propõe o acirramento da discussão sobre estes fenômenos, mas definindo o escopo e o valor da Ciência, que parece ter se esmaecido em algum lugar do passado.
Acima de tudo este trabalho propõe o estabelecimento de políticas vindas de dentro dos comitês universitários, que restrinjam o impacto de pesquisas levianas, sejam elas naquilo que hoje se considera pseudociência ou não. Este trabalho propõe que núcleos de pesquisa de borda, como o NEFP e o NIETE, sejam julgados periodicamente por sua produção científica, publicada em revistas indexadas e que isso determine seu subsidiamento pela universidade pública; isto sempre foi sinônimo de pesquisa de qualidade em qualquer área e a pesquisa em fenômenos paranormais não deve ser exceção. E finalmente este trabalho sugere que cursos de extensão e pós graduação em terapias médicas alternativas promovidas pelas ciências da saúde, sejam julgados e aprovados por comitês multidisciplinares (similares aos comitês de ética normalmente requeridos para aprovar estudos que trabalham com populações) que possam atestar a cientifidade e segurança das técnicas ensinadas. No mínimo isso servirá para mover estas terapias alternativas para fora do escopo da ciência.”
(Widson Porto Reis é formado em engenharia metalúrgica, com mestrado em ciência dos materiais, ambos pelo Instituto Militar de Engenharia (IME). Atualmente trabalha em uma empresa de consultoria em engenharia e é um dos responsáveis pelo Projeto Ockham (http://www.projetoockham.org/))
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AS PSEUDOCIÊNCIAS NAS UNIVERSIDADES BRASILEIRAS
Widson Porto Reis
“INTRODUÇÃO
A pseudociência chegou à última fronteira do pensamento crítico. Depois que os mapas astrológicos se espalharam pelas revistas femininas e o feng-shui e a radiestesia fincaram pé nas revistas de decoração; depois que a homeopatia tornou-se prática médica reconhecida e a memória da água virou citação comum nas revistas de ciência; depois que as correntes de e-mail convenceram os legisladores de um estado brasileiro que o uso de celulares deveria ser proibido nos postos de gasolina e enquanto o criacionismo se avizinha das aulas de ciência das escolas públicas de outro estado… agora a pseudociência e o pensamento mágico travestido de ciência chegaram à universidade.
O PROBLEMA
O fato não é realmente novo mas nunca antes se viu tantas atividades vindas de dentro da universidade destinadas a difundir e legitimar a pseudociência. A cada dia surgem na imprensa notícias de novos cursos de extensão, pós graduação e até mesmo graduação, pesquisas científicas, palestras e seminários promovendo as pseudociências.
A universidade privada já é terra arrasada há tempos. Com um estrito compromisso com o lucro, a universidade particular oferece ao cliente o que ele quiser. Assim pode-se encontrar cursos de pós-graduação e de extensão em praticamente qualquer pseudociência que se imagine: “Astrologia Clínica” na respeitada Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo e "Astrologia Aplicada na Gestão de Pessoas" na UBC; “Terapias Naturais e Holísticas” na Universidade Castelo Branco; “Feng-Shui” na Universidade Veiga de Almeida; “I-Ching” na Faculdade Cândido Mendes; “Florais de Bach” na Faculdade Helio Afonso (FACHA) e na Estácio de Sá (UNESA); Reflexologia na UNISUL… só para citar uma minúscula fração dos cursos oferecidos.
Mas é quando a pseudociência passa a ser difundida com o dinheiro público que a situação se agrava. A Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), por exemplo, ministra regularmente cursos de extensão em Reiki – técnica oriental de cura com as mãos – Aromaterapia e Mandalas. Os cursos são oferecidos pelo CCSA, Centro de Ciências Sociais Aplicadas. Já a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), certamente uma das mais conceituadas universidades do país, é a instituição pública brasileira com a maior oferta de cursos de extensão para a formação de profissionais esotéricos: “Terapia Floral”, “Fisiologia Chinesa e Práticas Energéticas”, “Astrologia, Corpo e Saúde“, “Cromoterapia” e especialmente o “Ecologia da Mente”, guarda chuva místico sob o qual se abrigam Radiestesia, I-Ching, Feng-Shui e Tarô. Para ser honesto, nenhum dos cursos citados causaria estranheza no triste cenário atual não fosse o fato de estarem catalogados na área de “Ciências da Saúde” e serem oferecidos pela Divisão de Ensino, Pesquisa e Extensão do Hospital Escola São Francisco de Assis. De fato, um dos projetos em andamento neste hospital universitário é a implantação destas técnicas no tratamento dos pacientes, buscando a “redução de custos hospitalares e melhoria da qualidade de vida e saúde (…) aprofundando e construindo o conhecimento das terapias naturais numa perspectiva multidisciplinar”.
Depois de ganhar os cursos de extensão, a pseudociência chegou a graduação. Já se espalham pelo país os cursos superiores em naturologia. A princípio a proposta parece inatacável. Afinal, seria muito bem vindo um profissional que pudesse prescrever tratamentos naturais reconhecidamente eficazes, separando-os de inócuos, e às vezes perigosos, curandeirismos. Mas como todo cético escaldado sabe, o rótulo de terapias naturais geralmente é uma fachada para as velhas esotéricas técnicas “milenares”.
Realmente, uma análise mais cuidadosa do programa desses cursos revela o que se espera: radiestesia, florais de Bach, cromoterapia e reflexoterapia são algumas das disciplinas que um bom naturólogo terá em seu currículo.
Além das terapias naturais e artes divinatórias, também a religião vem ganhando espaço na universidade, o que não seria problema nenhum desde que a ocupação não se desse no território das ciências. Uma destas iniciativas está na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS, que criou em 2001 o NIETE - Núcleo Interdisciplinar de Estudos Transdisciplinares Sobre Espiritualidade, atualmente coordenado pela a professora Malvina do Amaral Dorneles. Uma das atividades recentes do NIETE foi estabelecer uma parceria com a Sociedade Brasileira de Apometria para a formação de um grupo de estudos em apometria (GEPEA) a fim de “contribuir para a promoção da saúde da população de nossa comunidade (…) inserindo-se nas discussões contemporâneas da Organização Mundial da Saúde”. Bem, para quem não conhece, a apometria é uma técnica espírita, controversa mesmo entre os adeptos desta religião, que consiste em aplicar “pulsos magnéticos concentrados e progressivos no corpo astral do paciente”. Cursos de apometria incluem técnicas de desobssessão (exorcismo) e defesa contra vampirismo e espíritos parasitas. Outro filhote do NIETE é o Grupo Psi-Alfa-Ômega, coordenado pelo professor da UFGRS, Cícero Marcos Teixeira. Um das principais linhas de pesquisa do grupo é a Transcomunicação Instrumental (TI), a arte de receber mensagens do além através de ondas de rádio ou televisão. Quem pratica, jura que pode captar mensagens dos mortos nos ruídos de velhos rádios valvulados ou ver espíritos em difusas imagens de televisão; um update do velho mito das mensagens subliminares em discos de rock. "Queremos contribuir em termos acadêmicos para a compreensão do ser humano, uma vez que ele não vive somente no plano físico", diz Cícero, que também é autor do livro “Internautas do Além”.
Já na UNIFESP, o biólogo Ricardo Monezzi defendeu sua dissertação de mestrado: “Avaliação de efeitos da prática do Reiki sobre o sistema imunológico de camundongos machos”. No estudo, um terço do grupo de ratos recebia tratamento por impostação de mãos, outro terço tinha uma luva colocada sobre as gaiolas (para simular a impostação) e o restante não recebia nenhum tipo de tratamento. Ao final do experimento, Monezzi detectou um aumento do número de linfócitos e monócitos dos ratos submetidos ao tratamento. O trabalho já seria controverso o bastante sem a afirmação non sense com que foi divulgado por Monezzi na imprensa: “O corpo humano é um emissor de energias que ainda não foram qualificadas, mas exames como o eletrocardiograma e eletroencefalograma mostram que existem”. O estudo de Monezzi, mesmo sem ter sido replicado por nenhum outro pesquisador, é utilizado pelo GenteComSaude, Grupo de Meditação e Técnicas Complementares em Saúde, da UNIFESP, na promoção do curso de extensão do Centro de Aperfeiçoamento em Saúde: “Gerenciamento das doenças através do REIKI/impostação das mãos”, do qual, aliás, Monezzi é professor.
O caso UnB Neste quadro, a Universidade de Brasília certamente representa o caso mais grave. Esta prestigiada instituição, sediada na capital do País, criou em 1989 o Núcleo de Estudos de Fenômenos Paranormais (NEFP), ligado ao CEAM - Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares. O que parecia uma interessante iniciativa acabou se revelando um verdadeiro cavalo de tróia, com o qual astrólogos, radiestesistas, ufólogos, médiuns, entortadores de colheres e outros tantos vêm invadindo a academia, utilizando-a para difundir suas crenças pessoais.
O coordenador do NEFP é o engenheiro civil e astrólogo, Paulo Celso dos Reis Gomes. Paulo Celso é autor do trabalho “Verificação dos efeitos das posições dos astros na eclíptica com respeito à formação do homem e seu cotidiano”. Na pesquisa, os astrólogos (os próprios autores) confeccionaram o mapa astral de 100 voluntários conhecendo apenas as datas e locais de nascimento de cada um. Depois de receber seu perfil astrológico, os voluntários preencheram um questionário onde pontuaram, numa escala de 1 a 5, o grau de acerto ou relevância de cada uma das características levantadas. Somente 40 dos 100 questionários foram analisados; destes, os pesquisadores verificaram o impressionante índice de 95% de acertos.
É evidente que a única coisa que o estudo de Paulo Celso mediu foi a capacidade que as pessoas têm de se identificar com perfis vagos, especialmente os positivos e lisonjeiros, sobre si mesmas – o velho conhecido Efeito Forer. Esta falha grosseira de metodologia, contudo, não ficou no caminho do NEFP, que assim mesmo divulgou o trabalho nos maiores meios de comunicação do país. O astrólogo Francisco Seabra, também membro do NEFP, chegou a declarar à revista ISTOÉ, segunda maior revista de notícias do país: “A universidade faz uma revolução ao reconhecer que a astrologia é uma ciência”. A bisonha afirmação só revela o desconhecimento de Seabra sobre o que é ciência.
Um dos objetivos confessos do NEFP é trabalhar para a “sistematização da Astrologia e sua inclusão no rol das ciências oficiais”. Neste esforço já se encontra em sua quarta edição o Curso de Astrologia para Pesquisadores, promovido pela UnB e coordenado por Hiroshi Masuda, outro membro do NEFP. O curso tem uma missão bem definida: “formar astrólogos pesquisadores que venham a comprovar, de forma racional, os fundamentos da astrologia”.
Firme em sua missão, recentemente o NEFP conseguiu aprovar a realização do “1o Encontro Nacional de Astrologia”, ocorrido em agosto deste ano. O tema central do encontro foi a capciosa pergunta “Até que ponto a astrologia deve ser entendida como ciência?”. Francisco Seabra declarou a imprensa meses antes: “Vamos debater pesquisas que têm contribuído para aproximar o conceito astrológico do conceito científico”. Como se vê, à rigor não teria sido um debate muito amplo…
O vice coordenador do NEFP é físico PhD Álvaro Luis Tronconi. Pródigo em alegações que desafiam o bom senso, Tronconi já entregou à imprensa pérolas como: “Queremos saber por que a força do pensamento desorganiza a configuração dos átomos dos metais e se ela pode ser identificada e calculada como se faz com a energia elétrica, que não conhecemos por inteiro, mas todos acreditam que existe e a usam”, e “Se podemos melhorar nossa oratória, também podemos dominar a bioenergia e usá-la para nos teletransportar ou curar doenças”.
O objeto de estudo de Tronconi é o famoso paranormal brasileiro Luiz Carlos Amorim que, assim como o paranormal ícone dos anos 70, Uri Geller, exercita seus poderes em talheres e ganha a vida como oráculo de políticos, atores e qualquer um que possa pagar seus gordos cachês. Na verdade Tronconi e os demais pesquisadores do NEFP parecem considerar as habilidades paranormais de Amorim suficientemente demonstradas, já que o convidaram em 2003 a apresentar seus poderes durante uma palestra na UnB. Segundo a assessoria de imprensa da UnB, a demonstração foi um fiasco. A platéia, constituída em sua maioria pelos estudantes da universidade, compareceu decidida a desmascarar o paranormal e conseguiram fazê-lo perder a compostura (e aparentemente os poderes) em mais de uma ocasião - um interessante caso em que os alunos demonstraram mais senso crítico que seus professores. Como seria de se esperar, também este pequeno obstáculo de credibilidade não ficou no caminho do NEFP, que manteve agendado o curso “Despertando o Eu Paranormal” que Amorim ministraria na universidade. (O valor de aproximadamente 100 dólares que o interessado deveria desembolsar pelo curso pode ser visto como um grande investimento, já que aumentar a sorte em bingos e loterias é uma das artes que Amorim ensina em seus cursos.)
A relação de Luiz Carlos Amorim com o NEFP vem de longa data. O ex-coordenador do Núcleo, o psicólogo Joston Miguel Silva, estudou durante oito anos 13 pessoas que diziam possuir alguma habilidade paranormal, entre eles Amorim e Thomas Green Morton, outro paranormal brasileiro badalado entre os famosos. Dos 13, o pesquisador da UnB confirmou as habilidades de cinco. Outros cinco tiveram seus poderes parcialmente comprovados e sobre os três restantes não houve nenhuma conclusão. A técnica de Joston para validar os paranormais? a kirliangrafia, em que se usa uma Máquina Kirlian para fotografar a aura do sujeito.
O interesse do vice-coordenador do NEFP, pelo estudo da paranormalidade nasceu de uma marcante experiência pessoal. Tronconi atribui a cura de uma hérnia-de-disco ao poder mental da enfermeira que o tratou utilizando passes de mão. Arrebatado pela experiência, Tronconi hoje é coordenador e professor do curso de extensão “Ensaios Parapsíquicos”, promovido pela UnB. O programa do curso é um pout pouri esotérico envolvendo viagem astral, regressão a vidas passadas, kirliangrafia, chacras, interpretação de sonhos, retrocognição e outros assuntos que nos fazem imaginar como são as aulas de física que Tronconi leciona na universidade. Onde está o limite?
Criticar qualquer tipo de pesquisa na universidade é caminhar em uma linha muito tênue. Uma escorregadela e se atravessa para o lado do preconceito e do patrulhamento da liberdade acadêmica. Por isso é importante responder muito claramente: por quê a presença da pseudociência na universidade é tão nociva?
Como ponto de partida é preciso deixar claro que nenhum tema jamais deve ser considerado tabu na universidade. Muito pelo contrário. As pesquisas acadêmicas sobre as pseudociências são o necessário ferramental para o cético que promove a razão e o pensamento crítico. Afinal não se deve esperar que as alegações da astrologia e outras artes divinatórias, de diversas terapias alternativas e de inúmeros fenômenos paranormais sejam descartadas somente por desafiar o senso comum. Pesquisar é preciso.
O que torna o quadro atual preocupante é que o que se está fazendo em grande parte dentro da universidade não é somente pseudociência, é ciência ruim; ciência ruim em nome da legitimização da pseudociência. Os astrólogos, ufólogos, terapeutas alternativos e religiosos que vêm utilizando o nome da universidade em suas pesquisas não estão em busca da verdade, mas apenas da validação, custe o que custar, de suas crenças pessoais. Estes pesquisadores invertem o caminho que devem trilhar as novas idéias e levam suas controversas pesquisas aos meios de comunicação leigos antes de fazê-las chegar aos periódicos científicos, onde poderiam ser avaliados por seus pares. Na verdade, bem poucos destes trabalhos chegam a ver a luz de um revista peer-review. Trabalhos com resultados extraordinários, que se verdadeiros fossem obrigariam a ciência a rever seus conceitos mais básicos e introduzir novas entidades, forças e “energias”, são divulgados entusiasticamente sem a devida análise crítica dos resultados e sem que as potenciais fontes de erros sejam apontadas. Citações bibliográficas são seletivas e simplesmente ignoram toda a massa de dados, geralmente abundante nestes casos, que se opõem à visão dos autores. Acima de tudo não há replicação dos trabalhos; um único resultado favorável é considerado suficiente para confirmar as hipóteses do ansioso autor – muito pouco para quem está dirigindo na contra-mão do conhecimento estabelecido. O que estes pesquisadores estão fazendo é o que Richard Feynman chamava de “ciência de culto a carga”: algo que usa a linguagem científica, que segue os preceitos básicos do método científico e que até mesmo parece ciência – pelo menos tanto quanto um boneco parece um homem – mas no qual falta um elemento fundamental: integridade científica.
Mas a universidade também contribui para a legitimização do pensamento mágico quando serve de fórum para debate com a pseudociência. Tome-se como exemplo a recente palestra sobre “criacionismo científico” (uma contradição a partir do título) ocorrida na Universidade Federal do Estado de São Paulo (UNIFESP) sob (tímidos) protestos da comunidade científica.
Sabe-se que para o criacionismo não interessa o resultado do debate, mas apenas ser debatido; o simples fato de ocupar o palanque em uma grande universidade e ser ouvido pela elite intelectual do país já empresta ao movimento criacionista a imagem de cientificismo que ele tanto busca para se colocar como alternativa ao ensino da evolução.
Novamente não se trata de impor nenhum tipo de censura ou de “inquisição sem fogueiras” - como rapidamente protestam os que se consideram censurados ou perseguidos. Mas permitir que tudo seja dito em nome da ciência e esperar que as evidências falem por si mesmas, decididamente não funciona em um país onde grassa a ignorância científica e onde a mídia, vilã e vítima, noticia apenas a parte sensacional da notícia. Além disso, mesmo o mais ferrenho defensor da liberdade irrestrita de expressão concordará com o cético mais radical que há uma linha em algum lugar entre, por exemplo, a quiromancia e a acupuntura. Onde está a linha descobre-se checando-se as evidências e não emprestando o púlpito à primeira cigana interessada. E evidentemente ninguém está mais apto a investigar evidências do que a universidade.
Por fim é preciso lembrar que a crença em certas pseudociências traz um ônus para a sociedade. Este ônus pode não ser óbvio enquanto a astrologia fica restrita aos inocentes horóscopos das páginas dos jornais e o feng-shui às revistas de decoração. Mas e quando mapas astrológicos estiverem sendo usados em entrevistas de emprego ou nas salas dos tribunais? Alguém gostaria de perder um emprego ou uma causa judicial por causa da hora em que foi retirado da barriga de sua mãe? E quando pêndulos estiverem auxiliando os diagnósticos médicos e a imposição de mãos for prática comum nos hospitais públicos, no lugar dos tratamentos convencionais? E quando tudo isso estiver acontecendo porque a universidade deu a astrólogos e radiestesistas a mesma credibilidade profissional de engenheiros e médicos? Quanto tempo ainda temos até que cirurgias espirituais, devidamente abalizadas pelas pesquisas “científicas” da academia, sejam cobertas pelos planos de saúde? É bom lembrar que no Brasil, a homeopatia já chegou lá.
A CAUSA
O Brasil tem um quadro desanimador no que diz respeito ao combate à pseudociência. O movimento cético no país é um fenômeno relativamente recente, 100% amador e que não surgiu dentro da universidade e sim na internet em torno de grupos de discussão e uns poucos sites. Sendo um grupo formado em sua maioria por jovens ainda sem credenciais científicas, o Movimento Cético Brasileiro, se podemos chamá-lo assim, sofre por falta de credibilidade, o que até agora tem lhe permitido atingir apenas de raspão a mídia. Já a comunidade científica nacional está muito mais ocupada em concorrer pelos minguados recursos oficiais e lutar contra as dificuldades diárias de infra-estrutura, sucateamento de laboratórios, cargas horárias excessivas e toda a sorte de problemas, do que em combater voluntariamente a penetração da pseudociência em seu quintal.
Mas não faltam apenas as pessoas para combater o pensamento mágico, faltam os meios de divulgação. Dizer que as revistas de ciência no Brasil são tolerantes com as pseudociências é dizer pouco. Dizer muito seria chamar de “revistas de ciência”, revistas que já produziram suplementos especiais sobre astrologia e feng-shui. Sobre este tema Allan Novaes em seu artigo “Ciência em crise, jornalismo em queda?” mostra que de 2000 a 2004, 75% das capas da revista Superinteressante, maior revista de seu gênero no Brasil, foram sobre ciências sociais ou humanas e 42% foram de temas religiosos, místicos ou pseudocientíficos. Aqui, a crise do jornalismo científico se confunde a tal ponto com a questão da infiltração da pseudociência nas universidades que fica difícil distinguir causa e efeito.
Há outros motivos por que pseudociências e misticismos encontraram um terreno fértil nas universidades. O Brasil é um país que respira religiosidade, e onde existe uma mistura, talvez única no mundo, de religiões, cultos e seitas. Projetos de pesquisa e extensão como os que a UnB, UFRJ e UFRGS vêm realizando são populares porque mostram uma aproximação entre ciência e espiritualidade que muitos acreditam ser saudável. A idéia de que a ciência deveria dar as mãos à religião em uma espécie de “retorno às origens”, e que deste casamento forçado entre o materialismo e o espiritualismo nasceria o melhor dos dois mundos é muito promovida pelas ciências humanas e bastante apreciada pelo público leigo.
Condenar esta promiscuidade científico-místico-religisosa, modernamente camuflada por palavras como “interdisciplinaridade” e “multidisciplinaridade”, tem soado cada vez mais politicamente incorreto, e os cientistas não raro o evitam. Some-se a este quadro a natureza do povo brasileiro, hábil em conciliar o inconciliável – por exemplo, no sincretismo religioso que mescla os cultos africanos com o cristianismo – e sua aversão a qualquer tipo de confrontamento que possa ser levemente confundido com intolerância religiosa.
O que nos leva a maior de todas as causas para disseminação da pseudociência nas universidades: o Relativismo. O Relativismo é a idéia de que todos os saberes são apenas questão de opinião, fruto do seu contexto histórico e social. O relativista acredita que todos os pontos de vista são igualmente válidos e vê a ciência apenas como mais uma maneira de representar o mundo, em pé de igualdade com a não-ciência. A verdade científica, nesta onda relativista, é vista apenas como um produto social, uma questão democrática, de consenso da maioria. Desta maneira as teorias mais exóticas tornam-se irrepreensíveis e passam a ser escudadas por bordões como: “Você tem a sua opinião, eu tenho a minha” ou “tudo é relativo”. Novamente torna-se uma imperdoável intolerância criticar qualquer saber, por mais primitivo e desligado da realidade que seja. Francamente impulsionado pelas ciências humanas e sociais, esse relativismo paralisante não reconhece como final nenhum conhecimento científico (o que rigorosamente falando não é mesmo), mas tampouco descarta nenhuma alegação extraordinária; tudo pode ser, como pode não ser. Se a ciência ainda não comprovou a eficácia daquela “técnica milenar”, o problema é da ciência; dê-lhe mais alguns milênios e ela chegará lá.
CONCLUSÃO (temporária)
Não se propõe com este trabalho nenhum tipo de censura à produção universitária, mesmo em se tratando de fenômenos supostamente paranormais, místicos ou esotéricos; pelo contrário este trabalho propõe o acirramento da discussão sobre estes fenômenos, mas definindo o escopo e o valor da Ciência, que parece ter se esmaecido em algum lugar do passado.
Acima de tudo este trabalho propõe o estabelecimento de políticas vindas de dentro dos comitês universitários, que restrinjam o impacto de pesquisas levianas, sejam elas naquilo que hoje se considera pseudociência ou não. Este trabalho propõe que núcleos de pesquisa de borda, como o NEFP e o NIETE, sejam julgados periodicamente por sua produção científica, publicada em revistas indexadas e que isso determine seu subsidiamento pela universidade pública; isto sempre foi sinônimo de pesquisa de qualidade em qualquer área e a pesquisa em fenômenos paranormais não deve ser exceção. E finalmente este trabalho sugere que cursos de extensão e pós graduação em terapias médicas alternativas promovidas pelas ciências da saúde, sejam julgados e aprovados por comitês multidisciplinares (similares aos comitês de ética normalmente requeridos para aprovar estudos que trabalham com populações) que possam atestar a cientifidade e segurança das técnicas ensinadas. No mínimo isso servirá para mover estas terapias alternativas para fora do escopo da ciência.”
(Widson Porto Reis é formado em engenharia metalúrgica, com mestrado em ciência dos materiais, ambos pelo Instituto Militar de Engenharia (IME). Atualmente trabalha em uma empresa de consultoria em engenharia e é um dos responsáveis pelo Projeto Ockham (http://www.projetoockham.org/))
da revista Veja - Religião -
Como a fé resiste à descrença
André Petry
Desde que se espalhou a notícia extraída do censo demográfico do IBGE de 2000, Nova Ibiá, vilarejo de 7 000 habitantes no interior da Bahia, ganhou um estigma e uma obsessão. Como os números do censo mostravam que 59,85% dos seus habitantes diziam não ter religião alguma, Nova Ibiá passou a conviver com o estigma de ser a cidade mais atéia do Brasil. Em nenhuma outra, em ponto algum do país, tanta gente dizia não ter filiação religiosa. A segunda cidade com a maior tropa de sem-religião era Pitimbu, no interior da Paraíba, mas com números mais modestos – 42,44%. Desde então, a obsessão de Nova Ibiá é livrar-se do estigma do ateísmo. "Conheço dois ou três ateus, e só. Isso não é verdade", diz Raimundo Santana, bispo da Igreja Batista, atualmente ocupado em preparar os festejos do ano que vem, quando sua igreja completará 100 anos na região. "Não acredito nisso, nunca ninguém aqui me disse que não tem religião", reforça Albervan da Silva Cruz, o primeiro padre a residir em Nova Ibiá. "A cidade mais atéia? Não é verdade", sentencia o prefeito José Murilo Nunes de Souza, de 41 anos, com a autoridade de quem confessa, meio a contragosto, que se criou católico, mas não tem religião.
Os porta-vozes de Nova Ibiá, um povoado que fica nos confins da falida zona cacaueira da Bahia, estão em harmoniosa sintonia com a maioria dos brasileiros. No maior país católico do planeta, no país do sincretismo religioso, no país onde católicos têm benzedeira e evangélicos vão a sessões espíritas, no país que alega, num misto de gracejo e esperança, ser a terra natal de Deus, o Todo-Poderoso, quase nada é pior do que ser ateu. Uma pesquisa encomendada por VEJA, realizada pela CNT/Sensus, mostra que 84% dos brasileiros votariam em um negro para presidente da República, 57% dariam o voto a uma mulher, 32% aceitariam votar em um homossexual, mas – perdendo de capote – apenas 13% votariam em um candidato ateu (veja quadro). Pior que isso só o capeta. O levantamento mostra que, entre os grupos populacionais que se convencionou chamar de minorias – racial, sexual ou de gênero –, a minoria mais rejeitada é a religiosa, ou a anti-religiosa. No Brasil de São Frei Galvão, portanto, ser temente a Deus é mais do que uma marca nacional – chega a ser, informa a pesquisa, um imperativo social.
Às vésperas do Natal, quando 2,1 bilhões de cristãos vão comemorar os 2 007 anos do nascimento de Jesus Cristo, os católicos brasileiros seguem diminuindo ano após ano, como vem acontecendo desde 1940, mas ainda formam uma estupenda multidão: são quase 74% da população brasileira – o que equivale a mais de 130 milhões de fiéis. Com alguns disciplinados e praticantes e muitos displicentes e relapsos, os católicos do Brasil, com seu número espetacular, mostram o vigor da crença divina, a pujança da fé, a robustez de Deus – uma potência curiosamente dotada de todas as qualidades inversas às da humanidade, que é criada (e Deus é incriado), que é limitada (e Deus é ilimitado) e que é mortal (e Deus é imortal). Os números da fé no Brasil talvez sirvam como explicação para dois fenômenos. Explicam a resistência da religiosidade em um mundo marcado pela descrença e, ao mesmo tempo, o notável preconceito da maioria dos brasileiros em relação aos ateus. Faz sentido rejeitar alguém apenas porque não acredita em Deus?
"Faz todo o sentido", afirma a historiadora Eliane Moura Silva, professora da Universidade Estadual de Campinas e especialista em religião, ela própria uma atéia. "O brasileiro ainda entende o ateu como alguém sem caráter, sem ética, sem moral." É um entendimento que parece espalhar-se de modo mais ou menos homogêneo por todas as classes sociais. Recentemente, a historiadora deu duas aulas sobre ateísmo na Casa do Saber, instituição criada para eliminar lacunas intelectuais dos endinheirados de São Paulo, e a platéia teve uma reação adversa, quase hostil, às idéias ateístas. Antes, a neurocientista Silvia Helena Cardoso, doutora em psicobiologia pela Universidade da Califórnia, em Los Angeles, publicou um artigo num jornal de Campinas discutindo se os santos seriam esquizofrênicos, dada a freqüência com que tinham visões – ou alucinações. Recebeu tantas ameaças que resolveu abandonar o assunto. O professor Antônio Flávio Pierucci, da Universidade de São Paulo, especialista em sociologia da religião, explica o fenômeno: "Os brasileiros não estão habituados a se confrontar com a realidade do ateu". É o que leva os políticos – antes, durante e depois da eleição – a sempre dizer que ninguém é mais temente a Deus do que eles.
DO SANGUE E DA FÉ
Católicos se reúnem na Praça de São Pedro, em Roma (acima), e muçulmanos se encontram em Meca, na Arábia Saudita: os ateus nasceram junto com a primeira religião e, hoje, denunciam que, por trás da crença em Deus, há um rastro de violência e barbárie
Reuters
Em maio passado, o instituto Datafolha fez uma pesquisa sobre religiosidade por ocasião da visita ao país do papa Bento XVI. A pesquisa relevou a dimensão impressionante da fé brasileira: 97% disseram acreditar na existência de Deus, 93% informaram crer que Jesus Cristo ressuscitou depois de morrer crucificado e 86% concordaram que Maria deu à luz sendo virgem. Com números tão possantes, não há dúvida de que o Brasil figura entre os países mais crédulos do mundo – e isso abre um paradoxo. São cada vez mais abundantes as descobertas científicas sobre a origem do universo e das espécies. Se a credulidade não se abala diante disso, é lícito questionar que talvez nenhuma prova científica, por mais sólida e contundente, seja capaz de reduzir a pó o teísmo, a crença no divino (veja reportagem) "O último deus desaparecerá com o último dos homens", diz o filósofo francês Michel Onfray, em seu Tratado de Ateologia, sucesso retumbante com mais de 200.000 exemplares vendidos na França. E, ateu convicto, ele alfineta: "E com o último dos homens desaparecerão o temor, o medo, a angústia, essas máquinas de criar divindades".
Antes que o último homem se vá, percebem-se aqui e ali sinais de que a religião, em que pese seu vigor, começa a perder público – no Brasil, inclusive. De 1940 a 1970, a turma dos brasileiros sem religião ficou praticamente do mesmo tamanho, atolada em menos de 1% da população. Nas últimas três décadas, saltou de 1,6% para 7,3% (veja gráficos e mapa). Os sem-religião já são o terceiro maior grupo, atrás de católicos e de evangélicos. Pelos dados do último censo, os sem-religião eram 12,5 milhões, mais que um Portugal inteiro. Não são todos ateus, é claro. Entre eles, há agnósticos, secularistas, céticos e até quem acredita em Deus, mas não pratica nenhuma religião. O IBGE não pergunta aos entrevistados se são ateus ou não. Calcula-se, no entanto, que os ateus sejam uns 2%. Nos Estados Unidos, eles oscilam nessa faixa, mas os sem-religião de lá chegam aos 15%. No mundo, os ateus são uns 4%. São poucos, sobretudo se comparados aos bilhões de cristãos, muçulmanos e judeus, para ficar apenas nas três grandes religiões monoteístas, mas é uma massa crescente, principalmente nos países desenvolvidos. Na Espanha, Alemanha e Inglaterra, menos da metade da população acredita em Deus. Na França, os crentes não chegam a 30%.
Entre os brasileiros sem religião, a maior curiosidade está na Bahia de Todos os Santos, terra onde frei Henrique de Coimbra rezou a mítica primeira missa, em 26 de abril de 1500. A Bahia, que abriga Nova Ibiá e seu esquadrão de sem-religião, é o terceiro estado com o maior contingente de brasileiros sem filiação religiosa. E Salvador, entre as capitais, é a campeã nacional: 18% dos soteropolitanos não têm religião. Considerando-se o país todo, os sem-religião são mais numerosos entre os homens e entre os brasileiros com menos de 55 anos. Não se sabe de onde eles vêm. É provável que venham do rebanho de católicos desgarrados. O Rio de Janeiro, por exemplo, é o estado menos católico do país e, simultaneamente, tem o maior pelotão de sem-religião. Também é certo que boa parte dos católicos está virando neopentecostal. Nas duas últimas décadas, à queda acentuada de católicos correspondeu uma alta igualmente acentuada de evangélicos – em especial da Igreja Universal do Reino de Deus, que, sendo uma voraz sugadora de fiéis e dízimos, se transformou em potência divina e comercial.
A raiz do fenômeno que irriga o crescimento de evangélicos e de sem-religião faz parte da mesma genealogia: os laços étnicos e culturais de boa parte dos brasileiros estão se desfazendo como resultado da modernidade – do que a modernidade traz de positivo, como o aumento da escolarização e a crescente profissionalização de certas camadas sociais, e do que traz de negativo, como a desestruturação das famílias e a favelização das metrópoles. "É a religião atuando como solvente", diz o professor Flávio Pierucci, da USP. Seus números apóiam sua percepção. Um laço étnico que se desfaz: entre os adeptos do candomblé, credo de origem africana, 40% são brancos. Outro: nos cultos afro-brasileiros há cerca de 100.000 negros, e nos cultos evangélicos os negros já são 1,7 milhão. Mais um: os brasileiros que trocam o catolicismo pelo neopentecostalismo estão dissolvendo um laço cultural e histórico, substituindo a religião fundadora do Brasil, herança que vem do fundo do passado colonial, por uma novidade na cena religiosa do país. É aí, nesse processo de dissolução, que crescem os ateus e os sem-religião.
Por razões distintas, o ateísmo também é crescente lá fora. Nos Estados Unidos, o embate entre religiosos e sem-fé ficou mais intenso depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, praticados por dezenove muçulmanos, e da eleição do presidente George W. Bush, o astro da direita cristã que se julga interlocutor de Deus. Com os cristãos conservadores exercendo notável influência em tribunais e escolas, os Estados Unidos são um caso único entre os países ricos e democráticos. Nenhum outro tem grau tão elevado de religiosidade – e de radicalismo. Em 2001, os mais fanáticos líderes religiosos americanos, em vez de condenar os atentados, disseram que eram uma punição contra um país que aceitava o aborto e o homossexualismo... Nesse ambiente, a literatura sobre o ateísmo tem feito barulho e sucesso, como é o caso do biólogo inglês Richard Dawkins, autor de Deus, um Delírio, do jornalista inglês Christopher Hitchens, que mora em Washington e escreveu Deus Não É Grande, e do filósofo americano Sam Harris, autor de Carta a uma Nação Cristã, um manifesto cortante em defesa do ateísmo.
Ainda que sua história seja pouco conhecida, o ateísmo nasceu junto com a primeira religião, mas só entrou no cardápio das idéias abertamente debatidas com o advento do iluminismo, no século XVIII. Assim como os crentes, que se dividem em uma miríade de correntes e denominações, os ateus de hoje divergem em muitos pontos, mas há alguns consensos. Um deles é que a moralidade não depende das religiões, e, portanto, um ateu pode ser ético e bom. A favor da tese está a neurociência, cujas descobertas já provaram que até os chimpanzés têm noções morais, sentimentos de empatia e solidariedade – e não rezam nem crêem em Deus. Outro ponto em que todos os autores sobre ateísmo concordam é que as religiões produziram (e ainda produzem) notável rastro de sangue. Além dos exemplos clássicos das Cruzadas dos cristãos ou da expansão islâmica à base da espada, há exemplos contemporâneos. Na Irlanda do Norte, protestantes lutam contra católicos. Na Caxemira, são muçulmanos contra hindus. No Sudão, cristãos contra muçulmanos, que também se confrontam na Etiópia, na Costa do Marfim, nas Filipinas... Crentes de diferentes religiões ou denominações guerreiam no Irã, no Iraque, no Cáucaso, no Sri Lanka, no Líbano, na Índia, no Afeganistão...
É evidente que a moralidade não é mesmo resultado da religião, mas também não é resultado de sua ausência. Adolf Hitler (1889-1945), que planejou dizimar um povo inteiro, se dizia religioso. Josef Stalin (1879-1953), cujas vítimas fatais podem chegar a 20 milhões de soviéticos, se dizia ateu. Os religiosos também concordam que a fé já provocou guerras e violência. Em outubro passado, o papa Bento XVI, num encontro em Nápoles com lideranças multiconfessionais, conclamou a todos para "reiterar que a religião nunca poderia ser um veículo do ódio". Mas também se sabe que as religiões já contribuíram para a paz e desempenham um valoroso trabalho missionário nas áreas mais miseráveis do planeta. Ninguém pode afirmar que os deuses, os livros sagrados e as preces são uma criação do homem, sem nenhuma intervenção divina. Também ninguém pode garantir o contrário. Sendo assim, enquanto a idéia de Deus, a imagem do menino Jesus na manjedoura ou o espírito do Natal servirem para confortar e congregar milhares, milhões, bilhões de seres humanos, é bom que a fé possa seguir contribuindo para levar paz a homens e mulheres. Incluindo os moradores da pequena Nova Ibiá.
ONDE FORAM PARAR OS
ATEUS DE NOVA IBIÁ?
SEM PADRE
Sem a presença do padre, católicos fazem a leitura da Bíblia: convite para recrutar mais fiéis
No caminho para Nova Ibiá, a cidade baiana onde 60% da população diz não ter nenhuma religião, há uma igreja abandonada. Cercada por um mato alto e paredes descascando, a Igreja Nossa Senhora de Lourdes, onde se celebrava uma missa mensal, não abre mais as portas. Lília Lisboa, que cuidava do prédio, mudou-se para Salvador e ninguém se interessou em tomar conta do templo. Quinze quilômetros à frente, já no centro de Nova Ibiá, diante da praça central, fica a modesta Igreja de São José, o principal templo católico do vilarejo. Ali, numa noite de segunda-feira, dezoito pessoas escutavam a leitura da Bíblia sob a luz tênue de uma vela grande e oito velas pequenas. Não havia padre no altar. A leitura da Bíblia era feita por uma beata, sentada no primeiro banco de madeira. À entrada da igreja, um cartaz conclamava: "Toda a igreja está feliz com sua vinda. Quando voltar, traga um convidado".
Apresentada assim, com igreja abandonada e campanha de recrutamento de fiéis, Nova Ibiá parece fazer jus à fama de a cidade mais atéia do Brasil. Mas há algo que não se encaixa. Tudo em Nova Ibiá recende a religião. O município não tem agência bancária, médico, hospital nem juiz, mas tem três lan houses – e nada menos que doze igrejas. São três católicas e nove templos evangélicos, além de um terreiro de candomblé. "Também", diz o prefeito, José Murilo de Souza, "é mais fácil abrir uma igreja do que um comércio." Na Igreja de São José, cujo santo é o padroeiro do povoado, as missas de domingo reúnem 150 fiéis. Dobrando a esquina, a Igreja Batista de Nova Ibiá, fundada em 1908, recebe 400 pessoas nos dias mais concorridos – uma enormidade para um vilarejo de 7 000 habitantes. O altar é um móvel de compensado, custou 180 reais logo ali, na Paloma Móveis, mas o sistema de som, para não perder um único aleluia, é coisa de 25 000 reais. "Aqui, ou é crente ou é católico", diz o bispo Raimundo Santana, negro corpulento de 51 anos, casado, quatro filhos, todos batistas e um já missionário, que há 28 anos comanda a Igreja Batista de Nova Ibiá.
COM O BISPO
O bispo Raimundo, em seu templo: o altar é de compensado, custou 180 reais, mas o som é de primeira
Onde estão os ateus, os agnósticos, os sem-religião de Nova Ibiá? Há algo que não se encaixa. Em 1991, o censo do IBGE descobriu que havia 6,35% de pessoas sem religião na cidadezinha e que 83,35% da população dizia ser católica. Em 2000, no novo censo, a realidade havia virado de ponta-cabeça: 59,85% afirmavam não ter religião e apenas 16,02% diziam-se católicos. Tamanha mudança só se justificaria com uma rebelião de católicos, mas ninguém tem notícia de um movimento dessa natureza. Ao contrário. Até fevereiro do ano passado, o padre não morava em Nova Ibiá. Ia à cidade de vez em quando, para celebrar a missa, e partia. Agora, o padre Albervan da Silva Cruz mora na cidade e reza muita missa. Na Igreja Matriz, há missa no domingo, na terça, na primeira sexta de cada mês e, de quinze em quinze dias, no sábado. Na Igreja de São Roque, a missa é na quinta. Na Igreja de São Francisco, na zona rural, a missa é rezada duas vezes por mês, sempre aos domingos. Aos 30 anos, o padre Albervan é o primeiro pároco de Nova Ibiá, e Nova Ibiá é a primeira paróquia do padre Albervan. Ali, ele já fez dez casamentos e dá aula de filosofia para quinze turmas da 5ª à 8ª série da escola pública local.
O cenário religioso de Nova Ibiá é um retrato em miniatura da realidade brasileira: os evangélicos crescem, enquanto os católicos lutam para que seu rebanho não se disperse – ainda assim, a queda vertiginosa de 83,35% para 16,02% de católicos em nove anos é inexplicável. O padre, rival dos evangélicos, tem uma explicação conspiratória. Diz que ouviu falar que os pesquisadores do IBGE eram protestantes e, quando um católico dizia ser católico, mas não praticante, eles cravavam "sem religião" por conta própria. "Não sei se é verdade", afirma. É improbabilíssimo que seja, mas é certo que os evangélicos estão ganhando terreno. De 1991 para 2000, saltaram de 9,69% para 23,65%. O pulo, conforme o bispo Raimundo Santana, deu-se em 1998, quando a Igreja Batista resolveu "renovar-se", ou seja, passou a acreditar em dons espirituais e curas divinas. "Eu mesmo não acreditava, mas hoje acredito", diz ele. "Depois da renovação, a igreja cresceu muito." De dízimo, ela recolhe entre 3 000 e 4 000 reais mensais.
O comerciante Idevaldo Prazeres da Silva, de 50 anos, é um dos convertidos. Era católico, há nove anos virou evangélico, tem um irmão pastor e está lendo a Bíblia pela quarta vez. Veste uma camiseta na qual se lê: "Em Deus tenho posto minha confiança". Da loja de material de construção de Idevaldo da Silva, sobe-se uma ladeira para chegar à casa do único ateu identificado de Nova Ibiá. Ateu? Não, ele diz que não, que é católico há anos e perdeu a conta do tempo que freqüenta a igreja. Com a barba por fazer, mãos levemente trêmulas, o ateu enrustido – ou o católico caluniado – diz que só conhece gente de fé em Nova Ibiá. O bispo Raimundo Santana, com sua experiência de quase três décadas pregando, garante que há outros dois ateus no vilarejo, mas não os identifica. Porque um está indo a um centro espírita e abandonando o ateísmo. O outro está dando os primeiros passos para aderir à igreja do bispo. Ele não quer estragar essa peregrinação rumo à fé revelando quem são. Acredita que em breve Nova Ibiá não terá nem ateus nem materialistas – e explica, com sua metafísica peculiar, a diferença entre um e outro: "Ateu não acredita em nada, materialista só acredita no que pega e vê".
(Todos os livros mencionados nesta reportagem estão publicados no Brasil.)
André Petry
Desde que se espalhou a notícia extraída do censo demográfico do IBGE de 2000, Nova Ibiá, vilarejo de 7 000 habitantes no interior da Bahia, ganhou um estigma e uma obsessão. Como os números do censo mostravam que 59,85% dos seus habitantes diziam não ter religião alguma, Nova Ibiá passou a conviver com o estigma de ser a cidade mais atéia do Brasil. Em nenhuma outra, em ponto algum do país, tanta gente dizia não ter filiação religiosa. A segunda cidade com a maior tropa de sem-religião era Pitimbu, no interior da Paraíba, mas com números mais modestos – 42,44%. Desde então, a obsessão de Nova Ibiá é livrar-se do estigma do ateísmo. "Conheço dois ou três ateus, e só. Isso não é verdade", diz Raimundo Santana, bispo da Igreja Batista, atualmente ocupado em preparar os festejos do ano que vem, quando sua igreja completará 100 anos na região. "Não acredito nisso, nunca ninguém aqui me disse que não tem religião", reforça Albervan da Silva Cruz, o primeiro padre a residir em Nova Ibiá. "A cidade mais atéia? Não é verdade", sentencia o prefeito José Murilo Nunes de Souza, de 41 anos, com a autoridade de quem confessa, meio a contragosto, que se criou católico, mas não tem religião.
Os porta-vozes de Nova Ibiá, um povoado que fica nos confins da falida zona cacaueira da Bahia, estão em harmoniosa sintonia com a maioria dos brasileiros. No maior país católico do planeta, no país do sincretismo religioso, no país onde católicos têm benzedeira e evangélicos vão a sessões espíritas, no país que alega, num misto de gracejo e esperança, ser a terra natal de Deus, o Todo-Poderoso, quase nada é pior do que ser ateu. Uma pesquisa encomendada por VEJA, realizada pela CNT/Sensus, mostra que 84% dos brasileiros votariam em um negro para presidente da República, 57% dariam o voto a uma mulher, 32% aceitariam votar em um homossexual, mas – perdendo de capote – apenas 13% votariam em um candidato ateu (veja quadro). Pior que isso só o capeta. O levantamento mostra que, entre os grupos populacionais que se convencionou chamar de minorias – racial, sexual ou de gênero –, a minoria mais rejeitada é a religiosa, ou a anti-religiosa. No Brasil de São Frei Galvão, portanto, ser temente a Deus é mais do que uma marca nacional – chega a ser, informa a pesquisa, um imperativo social.
Às vésperas do Natal, quando 2,1 bilhões de cristãos vão comemorar os 2 007 anos do nascimento de Jesus Cristo, os católicos brasileiros seguem diminuindo ano após ano, como vem acontecendo desde 1940, mas ainda formam uma estupenda multidão: são quase 74% da população brasileira – o que equivale a mais de 130 milhões de fiéis. Com alguns disciplinados e praticantes e muitos displicentes e relapsos, os católicos do Brasil, com seu número espetacular, mostram o vigor da crença divina, a pujança da fé, a robustez de Deus – uma potência curiosamente dotada de todas as qualidades inversas às da humanidade, que é criada (e Deus é incriado), que é limitada (e Deus é ilimitado) e que é mortal (e Deus é imortal). Os números da fé no Brasil talvez sirvam como explicação para dois fenômenos. Explicam a resistência da religiosidade em um mundo marcado pela descrença e, ao mesmo tempo, o notável preconceito da maioria dos brasileiros em relação aos ateus. Faz sentido rejeitar alguém apenas porque não acredita em Deus?
"Faz todo o sentido", afirma a historiadora Eliane Moura Silva, professora da Universidade Estadual de Campinas e especialista em religião, ela própria uma atéia. "O brasileiro ainda entende o ateu como alguém sem caráter, sem ética, sem moral." É um entendimento que parece espalhar-se de modo mais ou menos homogêneo por todas as classes sociais. Recentemente, a historiadora deu duas aulas sobre ateísmo na Casa do Saber, instituição criada para eliminar lacunas intelectuais dos endinheirados de São Paulo, e a platéia teve uma reação adversa, quase hostil, às idéias ateístas. Antes, a neurocientista Silvia Helena Cardoso, doutora em psicobiologia pela Universidade da Califórnia, em Los Angeles, publicou um artigo num jornal de Campinas discutindo se os santos seriam esquizofrênicos, dada a freqüência com que tinham visões – ou alucinações. Recebeu tantas ameaças que resolveu abandonar o assunto. O professor Antônio Flávio Pierucci, da Universidade de São Paulo, especialista em sociologia da religião, explica o fenômeno: "Os brasileiros não estão habituados a se confrontar com a realidade do ateu". É o que leva os políticos – antes, durante e depois da eleição – a sempre dizer que ninguém é mais temente a Deus do que eles.
DO SANGUE E DA FÉ
Católicos se reúnem na Praça de São Pedro, em Roma (acima), e muçulmanos se encontram em Meca, na Arábia Saudita: os ateus nasceram junto com a primeira religião e, hoje, denunciam que, por trás da crença em Deus, há um rastro de violência e barbárie
Reuters
Em maio passado, o instituto Datafolha fez uma pesquisa sobre religiosidade por ocasião da visita ao país do papa Bento XVI. A pesquisa relevou a dimensão impressionante da fé brasileira: 97% disseram acreditar na existência de Deus, 93% informaram crer que Jesus Cristo ressuscitou depois de morrer crucificado e 86% concordaram que Maria deu à luz sendo virgem. Com números tão possantes, não há dúvida de que o Brasil figura entre os países mais crédulos do mundo – e isso abre um paradoxo. São cada vez mais abundantes as descobertas científicas sobre a origem do universo e das espécies. Se a credulidade não se abala diante disso, é lícito questionar que talvez nenhuma prova científica, por mais sólida e contundente, seja capaz de reduzir a pó o teísmo, a crença no divino (veja reportagem) "O último deus desaparecerá com o último dos homens", diz o filósofo francês Michel Onfray, em seu Tratado de Ateologia, sucesso retumbante com mais de 200.000 exemplares vendidos na França. E, ateu convicto, ele alfineta: "E com o último dos homens desaparecerão o temor, o medo, a angústia, essas máquinas de criar divindades".
Antes que o último homem se vá, percebem-se aqui e ali sinais de que a religião, em que pese seu vigor, começa a perder público – no Brasil, inclusive. De 1940 a 1970, a turma dos brasileiros sem religião ficou praticamente do mesmo tamanho, atolada em menos de 1% da população. Nas últimas três décadas, saltou de 1,6% para 7,3% (veja gráficos e mapa). Os sem-religião já são o terceiro maior grupo, atrás de católicos e de evangélicos. Pelos dados do último censo, os sem-religião eram 12,5 milhões, mais que um Portugal inteiro. Não são todos ateus, é claro. Entre eles, há agnósticos, secularistas, céticos e até quem acredita em Deus, mas não pratica nenhuma religião. O IBGE não pergunta aos entrevistados se são ateus ou não. Calcula-se, no entanto, que os ateus sejam uns 2%. Nos Estados Unidos, eles oscilam nessa faixa, mas os sem-religião de lá chegam aos 15%. No mundo, os ateus são uns 4%. São poucos, sobretudo se comparados aos bilhões de cristãos, muçulmanos e judeus, para ficar apenas nas três grandes religiões monoteístas, mas é uma massa crescente, principalmente nos países desenvolvidos. Na Espanha, Alemanha e Inglaterra, menos da metade da população acredita em Deus. Na França, os crentes não chegam a 30%.
Entre os brasileiros sem religião, a maior curiosidade está na Bahia de Todos os Santos, terra onde frei Henrique de Coimbra rezou a mítica primeira missa, em 26 de abril de 1500. A Bahia, que abriga Nova Ibiá e seu esquadrão de sem-religião, é o terceiro estado com o maior contingente de brasileiros sem filiação religiosa. E Salvador, entre as capitais, é a campeã nacional: 18% dos soteropolitanos não têm religião. Considerando-se o país todo, os sem-religião são mais numerosos entre os homens e entre os brasileiros com menos de 55 anos. Não se sabe de onde eles vêm. É provável que venham do rebanho de católicos desgarrados. O Rio de Janeiro, por exemplo, é o estado menos católico do país e, simultaneamente, tem o maior pelotão de sem-religião. Também é certo que boa parte dos católicos está virando neopentecostal. Nas duas últimas décadas, à queda acentuada de católicos correspondeu uma alta igualmente acentuada de evangélicos – em especial da Igreja Universal do Reino de Deus, que, sendo uma voraz sugadora de fiéis e dízimos, se transformou em potência divina e comercial.
A raiz do fenômeno que irriga o crescimento de evangélicos e de sem-religião faz parte da mesma genealogia: os laços étnicos e culturais de boa parte dos brasileiros estão se desfazendo como resultado da modernidade – do que a modernidade traz de positivo, como o aumento da escolarização e a crescente profissionalização de certas camadas sociais, e do que traz de negativo, como a desestruturação das famílias e a favelização das metrópoles. "É a religião atuando como solvente", diz o professor Flávio Pierucci, da USP. Seus números apóiam sua percepção. Um laço étnico que se desfaz: entre os adeptos do candomblé, credo de origem africana, 40% são brancos. Outro: nos cultos afro-brasileiros há cerca de 100.000 negros, e nos cultos evangélicos os negros já são 1,7 milhão. Mais um: os brasileiros que trocam o catolicismo pelo neopentecostalismo estão dissolvendo um laço cultural e histórico, substituindo a religião fundadora do Brasil, herança que vem do fundo do passado colonial, por uma novidade na cena religiosa do país. É aí, nesse processo de dissolução, que crescem os ateus e os sem-religião.
Por razões distintas, o ateísmo também é crescente lá fora. Nos Estados Unidos, o embate entre religiosos e sem-fé ficou mais intenso depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, praticados por dezenove muçulmanos, e da eleição do presidente George W. Bush, o astro da direita cristã que se julga interlocutor de Deus. Com os cristãos conservadores exercendo notável influência em tribunais e escolas, os Estados Unidos são um caso único entre os países ricos e democráticos. Nenhum outro tem grau tão elevado de religiosidade – e de radicalismo. Em 2001, os mais fanáticos líderes religiosos americanos, em vez de condenar os atentados, disseram que eram uma punição contra um país que aceitava o aborto e o homossexualismo... Nesse ambiente, a literatura sobre o ateísmo tem feito barulho e sucesso, como é o caso do biólogo inglês Richard Dawkins, autor de Deus, um Delírio, do jornalista inglês Christopher Hitchens, que mora em Washington e escreveu Deus Não É Grande, e do filósofo americano Sam Harris, autor de Carta a uma Nação Cristã, um manifesto cortante em defesa do ateísmo.
Ainda que sua história seja pouco conhecida, o ateísmo nasceu junto com a primeira religião, mas só entrou no cardápio das idéias abertamente debatidas com o advento do iluminismo, no século XVIII. Assim como os crentes, que se dividem em uma miríade de correntes e denominações, os ateus de hoje divergem em muitos pontos, mas há alguns consensos. Um deles é que a moralidade não depende das religiões, e, portanto, um ateu pode ser ético e bom. A favor da tese está a neurociência, cujas descobertas já provaram que até os chimpanzés têm noções morais, sentimentos de empatia e solidariedade – e não rezam nem crêem em Deus. Outro ponto em que todos os autores sobre ateísmo concordam é que as religiões produziram (e ainda produzem) notável rastro de sangue. Além dos exemplos clássicos das Cruzadas dos cristãos ou da expansão islâmica à base da espada, há exemplos contemporâneos. Na Irlanda do Norte, protestantes lutam contra católicos. Na Caxemira, são muçulmanos contra hindus. No Sudão, cristãos contra muçulmanos, que também se confrontam na Etiópia, na Costa do Marfim, nas Filipinas... Crentes de diferentes religiões ou denominações guerreiam no Irã, no Iraque, no Cáucaso, no Sri Lanka, no Líbano, na Índia, no Afeganistão...
É evidente que a moralidade não é mesmo resultado da religião, mas também não é resultado de sua ausência. Adolf Hitler (1889-1945), que planejou dizimar um povo inteiro, se dizia religioso. Josef Stalin (1879-1953), cujas vítimas fatais podem chegar a 20 milhões de soviéticos, se dizia ateu. Os religiosos também concordam que a fé já provocou guerras e violência. Em outubro passado, o papa Bento XVI, num encontro em Nápoles com lideranças multiconfessionais, conclamou a todos para "reiterar que a religião nunca poderia ser um veículo do ódio". Mas também se sabe que as religiões já contribuíram para a paz e desempenham um valoroso trabalho missionário nas áreas mais miseráveis do planeta. Ninguém pode afirmar que os deuses, os livros sagrados e as preces são uma criação do homem, sem nenhuma intervenção divina. Também ninguém pode garantir o contrário. Sendo assim, enquanto a idéia de Deus, a imagem do menino Jesus na manjedoura ou o espírito do Natal servirem para confortar e congregar milhares, milhões, bilhões de seres humanos, é bom que a fé possa seguir contribuindo para levar paz a homens e mulheres. Incluindo os moradores da pequena Nova Ibiá.
ONDE FORAM PARAR OS
ATEUS DE NOVA IBIÁ?
SEM PADRE
Sem a presença do padre, católicos fazem a leitura da Bíblia: convite para recrutar mais fiéis
No caminho para Nova Ibiá, a cidade baiana onde 60% da população diz não ter nenhuma religião, há uma igreja abandonada. Cercada por um mato alto e paredes descascando, a Igreja Nossa Senhora de Lourdes, onde se celebrava uma missa mensal, não abre mais as portas. Lília Lisboa, que cuidava do prédio, mudou-se para Salvador e ninguém se interessou em tomar conta do templo. Quinze quilômetros à frente, já no centro de Nova Ibiá, diante da praça central, fica a modesta Igreja de São José, o principal templo católico do vilarejo. Ali, numa noite de segunda-feira, dezoito pessoas escutavam a leitura da Bíblia sob a luz tênue de uma vela grande e oito velas pequenas. Não havia padre no altar. A leitura da Bíblia era feita por uma beata, sentada no primeiro banco de madeira. À entrada da igreja, um cartaz conclamava: "Toda a igreja está feliz com sua vinda. Quando voltar, traga um convidado".
Apresentada assim, com igreja abandonada e campanha de recrutamento de fiéis, Nova Ibiá parece fazer jus à fama de a cidade mais atéia do Brasil. Mas há algo que não se encaixa. Tudo em Nova Ibiá recende a religião. O município não tem agência bancária, médico, hospital nem juiz, mas tem três lan houses – e nada menos que doze igrejas. São três católicas e nove templos evangélicos, além de um terreiro de candomblé. "Também", diz o prefeito, José Murilo de Souza, "é mais fácil abrir uma igreja do que um comércio." Na Igreja de São José, cujo santo é o padroeiro do povoado, as missas de domingo reúnem 150 fiéis. Dobrando a esquina, a Igreja Batista de Nova Ibiá, fundada em 1908, recebe 400 pessoas nos dias mais concorridos – uma enormidade para um vilarejo de 7 000 habitantes. O altar é um móvel de compensado, custou 180 reais logo ali, na Paloma Móveis, mas o sistema de som, para não perder um único aleluia, é coisa de 25 000 reais. "Aqui, ou é crente ou é católico", diz o bispo Raimundo Santana, negro corpulento de 51 anos, casado, quatro filhos, todos batistas e um já missionário, que há 28 anos comanda a Igreja Batista de Nova Ibiá.
COM O BISPO
O bispo Raimundo, em seu templo: o altar é de compensado, custou 180 reais, mas o som é de primeira
Onde estão os ateus, os agnósticos, os sem-religião de Nova Ibiá? Há algo que não se encaixa. Em 1991, o censo do IBGE descobriu que havia 6,35% de pessoas sem religião na cidadezinha e que 83,35% da população dizia ser católica. Em 2000, no novo censo, a realidade havia virado de ponta-cabeça: 59,85% afirmavam não ter religião e apenas 16,02% diziam-se católicos. Tamanha mudança só se justificaria com uma rebelião de católicos, mas ninguém tem notícia de um movimento dessa natureza. Ao contrário. Até fevereiro do ano passado, o padre não morava em Nova Ibiá. Ia à cidade de vez em quando, para celebrar a missa, e partia. Agora, o padre Albervan da Silva Cruz mora na cidade e reza muita missa. Na Igreja Matriz, há missa no domingo, na terça, na primeira sexta de cada mês e, de quinze em quinze dias, no sábado. Na Igreja de São Roque, a missa é na quinta. Na Igreja de São Francisco, na zona rural, a missa é rezada duas vezes por mês, sempre aos domingos. Aos 30 anos, o padre Albervan é o primeiro pároco de Nova Ibiá, e Nova Ibiá é a primeira paróquia do padre Albervan. Ali, ele já fez dez casamentos e dá aula de filosofia para quinze turmas da 5ª à 8ª série da escola pública local.
O cenário religioso de Nova Ibiá é um retrato em miniatura da realidade brasileira: os evangélicos crescem, enquanto os católicos lutam para que seu rebanho não se disperse – ainda assim, a queda vertiginosa de 83,35% para 16,02% de católicos em nove anos é inexplicável. O padre, rival dos evangélicos, tem uma explicação conspiratória. Diz que ouviu falar que os pesquisadores do IBGE eram protestantes e, quando um católico dizia ser católico, mas não praticante, eles cravavam "sem religião" por conta própria. "Não sei se é verdade", afirma. É improbabilíssimo que seja, mas é certo que os evangélicos estão ganhando terreno. De 1991 para 2000, saltaram de 9,69% para 23,65%. O pulo, conforme o bispo Raimundo Santana, deu-se em 1998, quando a Igreja Batista resolveu "renovar-se", ou seja, passou a acreditar em dons espirituais e curas divinas. "Eu mesmo não acreditava, mas hoje acredito", diz ele. "Depois da renovação, a igreja cresceu muito." De dízimo, ela recolhe entre 3 000 e 4 000 reais mensais.
O comerciante Idevaldo Prazeres da Silva, de 50 anos, é um dos convertidos. Era católico, há nove anos virou evangélico, tem um irmão pastor e está lendo a Bíblia pela quarta vez. Veste uma camiseta na qual se lê: "Em Deus tenho posto minha confiança". Da loja de material de construção de Idevaldo da Silva, sobe-se uma ladeira para chegar à casa do único ateu identificado de Nova Ibiá. Ateu? Não, ele diz que não, que é católico há anos e perdeu a conta do tempo que freqüenta a igreja. Com a barba por fazer, mãos levemente trêmulas, o ateu enrustido – ou o católico caluniado – diz que só conhece gente de fé em Nova Ibiá. O bispo Raimundo Santana, com sua experiência de quase três décadas pregando, garante que há outros dois ateus no vilarejo, mas não os identifica. Porque um está indo a um centro espírita e abandonando o ateísmo. O outro está dando os primeiros passos para aderir à igreja do bispo. Ele não quer estragar essa peregrinação rumo à fé revelando quem são. Acredita que em breve Nova Ibiá não terá nem ateus nem materialistas – e explica, com sua metafísica peculiar, a diferença entre um e outro: "Ateu não acredita em nada, materialista só acredita no que pega e vê".
(Todos os livros mencionados nesta reportagem estão publicados no Brasil.)
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