segunda-feira, 31 de maio de 2010

Sobre a Ontologia

Alasdair MacIntyre e Keith Campbell
Tradução de Desidério Murcho

O termo ontologia foi introduzido pelos autores escolásticos no séc. XVII. Rudolf Goclenius, que mencionou a palavra em 1636, poderá ter sido o primeiro a fazê-lo, mas o termo era de tal modo natural em latim e começou a surgir tão regularmente que as disputas sobre quem detém a prioridade da sua introdução são vãs. Alguns autores, como Abraham Calovius, usavam o termo sem o distinguir de metafísica; outros, usavam-no como nome de uma subdivisão da metafísica. Johannes Clauberg (1622-1665), um cartesiano, introduziu em seu lugar o termo ontosofia. No tempo de Jean-Baptiste Duhamel (1624-1706), a ontologia distinguia-se claramente da teologia natural. As outras subdivisões da metafísica são a cosmologia e a psicologia, das quais a ontologia também se distingue. Assim, o termo ontologia, enquanto termo técnico, já existia quando foi finalmente canonizado por Christian Wolff (1679-1754) e Alexander Gottlieb Baumgarten (1714-1762).
Wolff

Para os autores mencionados, a ontologia trata do ser enquanto ser. O termo “ser” era entendido univocamente, como se tivesse um só sentido. A ontologia pode consequentemente reivindicar ter como precursores João Duns Escoto e Guilherme de Ockham, e não Tomás de Aquino. No caso do próprio Wolff, Gottfried Wilhelm Leibniz foi mais influente do que a escolástica, mas na sua Philosophia Prima Sive Ontologia, Wolff refere explicitamente Francisco Suárez. Segundo Wolff, o método da ontologia é dedutivo. O princípio principal que se aplica a tudo o que é é o da não contradição, que sustenta que uma propriedade do próprio ser é que não pode conjuntamente ter e não ter uma dada característica ao mesmo tempo. Daqui, pensava Wolff, seguia-se o princípio da razão suficiente, nomeadamente, que em todos os casos tem de haver alguma razão suficiente para explicar por que qualquer ser existe em vez de não existir. O universo é uma colecção de seres, cada um dos quais tem uma essência que o intelecto é capaz de apreender como ideia clara e distinta. O princípio da razão suficiente é invocado para explicar por que a algumas essências foi concedida a existência e a outras não. As verdades sobre os seres são todas necessárias. Assim, a ontologia nada tem a ver com a ordem contingente do mundo.

A influência da escolástica tardia (ou o que Étienne Gilson chama “essencialismo”) na metafísica racionalista foi paga na mesma moeda, pois a divisão da metafísica em ontologia, cosmologia e psicologia reentrou nos manuais escolásticos, onde persistiu até muito recentemente. Juntamente com esta divisão, persistiu a perspectiva de que o ser constitui um tópico independente para lá dos tópicos das ciências especiais. A persistência desta perspectiva explica-se talvez por factores culturais e não intelectuais. Nos séculos XVIII e XIX a escolástica encontrava-se apenas em seminários, até o Papa Leão XIII ter reintroduzido o tomismo no debate intelectual. Só deste modo a escolástica conseguiu evitar a némesis (na forma de Immanuel Kant) que esperava a metafísica racionalista.
Kant

No anúncio escrito das lições dadas de 1765 a 1766, Kant tratava a ontologia como uma subdivisão da metafísica, incluindo esta a psicologia racional, mas distinguindo-se, neste caso, da psicologia empírica, da cosmologia e do que Kant chamava a “ciência de Deus e do mundo”: “Então, em ontologia, discuto as propriedades mais gerais das coisas, a diferença entre os seres espirituais e materiais.” Mas quando Kant escreveu a Crítica da Razão Pura, resolveu de uma vez por todas as coisas relativamente à ontologia. As duas passagens nucleares são a discussão da segunda antinomia da razão pura e a refutação do argumento ontológico. Wolff argumentara a priori que o mundo é composto de substâncias simples, que não são percepcionadas nem possuem extensão nem configuração, sendo cada uma delas diferente, sendo os objectos físicos compósitos, colecções de substâncias. Na segunda antinomia, a tese é que “toda a substância compósita no mundo consiste em partes simples, e nada existe em parte alguma que não seja ou simples ou composta de partes simples”; e a prova que Kant apresenta é efectivamente wolffiana. Mas Kant apresenta uma prova igualmente poderosa a favor da antítese, nomeadamente, que “nenhuma coisa composta do mundo consiste de partes simples, e nada existe seja onde for que seja simples.” Ao expor a falácia comum às duas provas, Kant tornou possível aceitar uma vez mais a ontologia como um corpo dedutivo de verdades necessárias aparentado à geometria, na sua configuração, mas tendo o ser como objecto de estudo. A sua análise da existência na sua refutação do Argumento Ontológico é uma contraparte a isto.

A partir de Kant, o uso mais influente do termo ontologia, para lá dos manuais de escolástica, tem sido nos escritos de Martin Heidegger e W. V. Quine. Ambos foram saudados pelos autores escolásticos por se entregarem essencialmente à mesma tarefa que eles, adoptando o Padre D. A. Drennen esta perspectiva de Heidegger, fazendo o Padre Bochenski o mesmo no que respeita a Quine.
Heidegger

Com respeito à ontologia de Heidegger, o Padre Drennen tem talvez parcialmente razão. Heidegger queria explicar que carácter tem o ser de ter para que a consciência humana seja o que é. Começa por ter uma rixa com o princípio da razão suficiente na forma que assumiu em Leibniz e Wolff. Isto, afirma, é um ponto de partida inadequado para a ontologia porque a pergunta “Por que há algo em vez de nada?” pressupõe que já sabemos o que são o ser e o nada. Heidegger tratava o “Ser” e o “Nada” como nomes de poderes contrastantes e opostos cuja existência está pressuposta em todos os nossos juízos. Nos juízos negativos, por exemplo, falar do que não se verifica é referir implicitamente o Nada. A ontologia de Heidegger, contudo, não tinha configuração dedutiva nem sequer sistemática. Procede por vezes por meio da exegese da poesia ou dos fragmentos mais aforísticos dos filósofos pré-socráticos, sendo assim muito diferente da ontologia escolástica.
Quine

No caso de Quine, o nome ontologia tem de facto sido dado a um conjunto bastante diferente de preocupações. Quine preocupou-se com duas perguntas intimamente relacionadas: A crença numa dada teoria compromete-nos com a existência de que tipo de coisa? E quais são as relações entre a lógica intensional e extensional? A sua resposta à primeira pergunta é que ser é ser o valor de uma variável: temos de admitir a existência daquela gama de entidades possíveis cujos nomes podem ocorrer como valores daquelas variáveis sem as quais não podemos formular as nossas crenças. A sua resposta à segunda pergunta é que as lógicas intensionais e extensionais envolvem a admissão não apenas de tipos diferentes de entidade, mas também de tipos incompatíveis de entidade. “Os dois tipos de entidade só podem ser acomodados na mesma lógica com o género de restrições de Church, que servem para não os misturar, e isto é quase uma questão de ter duas lógicas separadas com um universo para cada” (From a Logical Point of View, p. 157).

É claro que as preocupações de Quine são de facto relevantes para Wolff e para os escolásticos apenas no sentido em que uma compreensão das investigações de Quine nos impediriam de tentar construir uma ontologia dedutiva à maneira de Suárez ou Wolff.
Problemas da ontologia

A ontologia é a ciência ou estudo mais geral do Ser, Existência ou Realidade. Um uso informal do termo significa o que, em termos gerais, um filósofo considera que o mundo contém. Assim, diz-se que Descartes propôs uma ontologia dualista, ou que não há deuses na ontologia de d’Holdbach. Mas no seu significado mais formal, a ontologia é o aspecto da metafísica que visa caracterizar a Realidade identificando todas as suas categorias essenciais e estabelecendo as relações que mantém entre si.
Ser enquanto ser

A existência, a mais compreensiva categoria de todas, deve abranger membros que têm o mínimo em comum. Contudo, a filosofia ocidental procura há muito um conteúdo substancial comum que esteja presente em seja o que for unicamente em virtude de existir. A história destas tentativas para identificar o carácter comum do ser enquanto ser não é encorajante.

No Sofista, o Estrangeiro Eleata de Platão propõe que um papel na rede causal do mundo é uma condição necessária e suficiente da existência, que “o Poder é a marca do Ser.” Esta ideia tem tido alguma circulação no séc. XX, particularmente no trabalho de David Lewis (1986) e D. M. Armstrong (1978, 1989, 1997). Este princípio eleático é um teste atraente da realidade no mundo natural, pois seja o que for que for real na natureza deve ser capaz de fazer qualquer diferença. Pode ser necessário enfraquecer a exigência, admitindo um espaço-tempo passivo que forneça a arena na qual actuam os seres activos. Mesmo assim, o princípio eleático parece que é na melhor das hipóteses um aspecto contingente do mundo porque não parece haver qualquer impossibilidade envolvida na ideia de um ser completamente inerte. E é também uma petição de princípio contra entidades abstractas como os números, ou pontos geométricos, ou conjuntos, que, se existirem, estão fora do nexo causal.

Para Samuel Alexander (1920), ser é ser o ocupante exclusivo de um volume de espaço-tempo. Isto elimina não apenas entidades abstractas, mas até uma teoria dos campos do mundo natural, pois os campos de forças ocupam regiões do espaço-tempo mas não se excluem entre si.

J. M. E. McTaggart (1921-1927) argumentou que a marca do ser é estar numa correspondência de determinação com todas as suas partes infinitas. Uma correspondência de determinação assegura que de uma descrição suficiente de algo se pode derivar uma descrição suficiente de qualquer das suas partes. Esta exigência acarreta que o espaço, o mundo natural, e a maior parte dos conteúdos das mentes, são irreais. Desta consequência a conclusão a retirar é que a marca do ser proposta por McTaggart é excessivamente exigente.

O problema de um conteúdo substancial para o ser enquanto ser reflecte-se no comportamento idiossincrático do verbo “existir.” Considere-se negativas singulares: “Aristóteles não fala espanhol” é verdadeira porque o predicado “não fala espanhol” se aplica ao item referido pelo termo sujeito. Mas “Pégaso não existe” não pode ser verdadeiro em virtude de o predicado se aplicar ao item referido pelo termo sujeito. Se o termo sujeito refere seja o que for, esse item existe, o que tornaria toda a frase falsa.

Ficou famosa a declaração de Kant de que a existência não é uma propriedade, e esta perspectiva tornou-se amplamente aceite. A lógica moderna que descende de Gottlob Frege e de Principia Mathematica (1910-1913) de Alfred North Whitehead e Bertrand Russell substitui todas as expressões “existe” por “há.” Assim, “Os leões existem” torna-se “Há leões,” ao passo que “Os dragões não existem” se torna “Não há dragões.”

Em termos técnicos, este processo substitui qualquer afirmação de existência por uma afirmação que usa um quantificador que abrange um domínio (o mundo), de modo que existir se torna uma questão não de possuir uma propriedade especial, a existência, mas de possuir alguma outra propriedade corriqueira. A determinação de reformular todas as afirmações de existência ou inexistência com “Há…” e “Não há…” é expressa pelo dictum de W. V. Quine: “Ser é ser o valor de uma variável.”

Se a existência não é uma propriedade, não pode ser uma perfeição. Isto anula aquelas versões do argumento ontológico a favor da existência de Deus que dependem de a existência ser uma das perfeições. Uma resposta recente consistiu em argumentar que, mesmo não sendo a existência uma propriedade, a existência necessária é-o (Plantinga, 1974, 1975; van Inwagen 1993).
Realidade e efectividade

É a existência tudo o que há, ou devemos reconhecer categorias ainda mais vastas do que a do Ser? Em Platão, e mesmo antes, encontra-se uma distinção entre Realidade (O que é) e a Aparência (O que não é nada, e no entanto apenas parece Ser). Aristóteles distingue o existente completo (Ser), do que está ainda em formação (Tornar-se). Estas distinções vêem-se talvez melhor como uma maneira de advogar que há diferentes graus de realidade no seio da categoria do Ser.

Aristóteles distinguia também o completamente Real (Acto) do que pode ser (Potência). Esta distinção antecipa uma corrente forte em ontologia que reconhece mundos possíveis para lá do mundo efectivo, aquele que habitamos. Nos neoplatónicos, e mais tarde em Alexius Meinong, ao domínio do existente soma-se o do subsistente, que abrange o que não existe apesar de poder ter existido, como acontece com as montanhas douradas.

Uma ontologia completa deste género, na qual o domínio da Essência é mais lato do que o da Existência, foi apresentada por James K. Feibleman em 1951. No trabalho de Richard Sylvan (1980), isto alarga-se ainda mais. No seu sistema, as variáveis individuais abrangem não apenas o efectivo e o possível, mas também o impossível.

Mundos possíveis. Gottfried Wilhelm Leibniz foi o primeiro a fazer um uso sistemático da ideia de que se pode considerar que todas as possibilidades formam mundos — cada um dos quais é um domínio internamente consistente que pode combinar alguns elementos iguais aos do mundo efectivo e outros diferentes. O mundo efectivo é um dos mundos possíveis, distinguindo-se de todos os outros pelo facto de que nenhum dos seus elementos é meramente possível. Se podermos referir-nos a mundos possíveis, é fácil definir seres necessários, que de outro modo são tão difíceis de caracterizar, como aqueles seres que estão em todos os mundos possíveis (ver mais à frente).

Realismo modal. Os mundos possíveis põem à nossa disposição explicações de poderes causais, de condicionais contrafactuais, de disposições inexercidas e de propriedades reais ininstanciadas. Estas vantagens levaram David Lewis (1986) a abraçar o realismo modal, que afirma a realidade literal de todos os mundos possíveis.

Outros filósofos, apesar de valorizarem estas vantagens, recuam perante a expansão aparentemente infinita da ontologia que isto exige, o que conduziu a explicações em termos de sucedâneos de mundos possíveis: Rudolf Carnap, entre outros, propôs que um mundo possível é um conjunto maximamente consistente de frases. Armstrong, entre outros, desenvolveu a ideia de Wittgenstein de que um mundo possível é uma recombinação inefectiva dos elementos deste mundo. Peter Lopston (2001) defende um realismo redutivo, que expande o tipo de propriedade atribuída no mundo efectivo de modo a incluir características que poderia-ter-tido. O sucesso destas abordagens é tema actual de controvérsia.

Pluralidade de mundos na teoria quântica. A noção de que o mundo em que vivemos não é o único foi também recentemente esboçada na interpretação de alguns paradoxos da física quântica, que de outro modo são desconcertantes. Nestas explicações, o mundo não é uma entidade única e unificada, mas antes algo sujeito a bifurcações contínuas, um processo que gera um número cada vez maior de mundos. As perspectivas deste género que defendem a pluralidade de mundos são diferentes, numa acepção importante, do realismo modal: todos estes mundos quânticos são supostamente efectivos, mas mutuamente inacessíveis.
As categorias do ser

A principal tarefa da ontologia é fornecer um inventário das categorias, as divisões mais gerais da Realidade. As mais importantes são as seguintes:

Substâncias. Uma substância individual ou particular é um objecto, uma coisa por direito próprio. As coisas comuns do quotidiano, como tijolos e camas, fornecem um modelo para a categoria da substância. Exige-se que as substâncias tenham várias características básicas, apesar de não ser claro que estas características sejam compatíveis entre si.

Particularidade e individualidade. Uma substância é simultaneamente um particular e um indivíduo; não é apenas um pato qualquer, mas precisamente este pato. Um objecto é da categoria que é (um pato) em virtude das suas propriedades. Mas se estas propriedades são universais, partilhadas por muitos particulares, não podem por si conferir particularidade. Alguns filósofos, o mais influente dos quais foi Locke, propuseram um constituinte das substâncias que desempenhariam este papel, um substrato que conferiria particularidade e individualidade. Um substrato seria um particular bruto, um item inerentemente particular e individual, mas sem qualquer outra característica. É difícil ver como esses particulares brutos poderiam distinguir-se entre si, mas se os particulares brutos são todos exactamente parecidos entre si, como poderia qualquer um deles individualizar a sua própria substância? Mais em geral, os particulares brutos entram em conflito com o dictum de Aristóteles de que o mínimo de ser, a menor coisa que pode ser, é um “isto-tal”, um particular que tem uma propriedade.

Outra proposta é que se individua as substâncias pela sua localização. As localizações — pontos de espaço-tempo e regiões — são em si particulares únicos; se puderem ter particularidade primitiva, isso levanta a questão de saber por que razão os outros particulares requerem um substrato ou outro particularizador. Há também outras dificuldades com a localização: a localização não individua campos de forças ou outras entidades físicas que não monopolizam o seu espaço. Não funciona também para quaisquer itens de tipo imaterial.

Ou a individualidade — e portanto a particularidade — é primitiva, ou há particulares brutos, ou cada substância tem uma propriedade especial, chamada ecceidade ou istidade, que pode conceder particularidade e individualidade ao seu portador. Para uma discussão deste problema veja-se o capítulo quinze de From an Ontological Point of View, de John Heil (2003).

Indivisibilidade. As substâncias têm de ser distintas dos compostos, de modo que uma substância única tem de ser indivisível, no sentido de não ter partes que sejam elas mesmas substâncias. Isto elimina as coisas comuns, que não podem ser substâncias. Esta exigência de simplicidade é muito enfatizada na doutrina de Tomás de Aquino sobre Deus. Leva em Leibniz à monadologia e em Roger Joseph Boscovich à doutrina dos pontos materiais.

Persistência. As substâncias distinguem-se das suas propriedades porque têm a capacidade de persistir, isto é, retêm a sua identidade passando por pelo menos algumas mudanças. Um carro dos bombeiros pode mudar de cor, e no entanto continuar a ser o carro dos bombeiros que sempre foi. As substâncias compostas comuns da vida quotidiana têm alguma persistência, mas não podem sobreviver a todas as mudanças. Um carro dos bombeiros desmontado e reduzido a sucata já não é um carro dos bombeiros. A persistência completa pertence apenas às substâncias fundamentais.

Independência. Qualquer substância poderia ser a única coisa em existência. Se esta independência for interpretada causalmente, nenhum objecto comum é uma substância, pois todos são postos em existência, e por isso a sua existência depende das suas causas. O espaço-tempo e os seus campos poderiam considerar-se substâncias, mas mesmo estes dependem, nos sistemas teístas, da actividade criadora de Deus. Assim, no tomismo, Deus é a substância por excelência, mas o mundo natural inclui substâncias criadas, que dependem de Deus mas que, noutros aspectos, existem por si. Espinosa, insistindo na independência absoluta, concluiu que só pode haver uma substância, a totalidade omniabrangente, Deus-ou-Natureza.

Se tomarmos a independência das substâncias num sentido lógico e não causal, uma substância é seja o que for que, em princípio, pode subsistir sozinha. Esta era a exigência de David Hume, e seja o que for que lhe obedecer é uma substância humiana. Para compostos, a exigência é que a coisa, incluindo todas as suas partes, poderia existir sozinha. Esta exigência é muito menos rigorosa do que a independência causal e não exige persistência.

Teorias da ausência de substância. Tem-se tentado eliminar as substâncias. Russell propôs que um objecto concreto comum não é mais do que um feixe de todas as suas propriedades. Mas há sempre a questão de saber o que agrega o feixe. Além disso, dado que as propriedades são universais, esta teoria acarreta que nenhumas duas coisas podem ter uma parecença exacta.

Na versão de Donald Williams da teoria dos feixes (1966), as propriedades são instâncias particulares ou tropos (ver mais à frente). Isto evita o problema da possibilidade de haver dois objectos com uma parecença exacta, mas exige que todos os membros do feixe estejam “co-presentes” — exige que estejam todos no mesmo lugar do espaço-tempo. Há dificuldades em tratar uma localização no espaço-tempo como se fosse apenas mais um tropo no feixe, mas se lhe for dado um tratamento especial torna-se um substrato substancializante.

Russell defendeu também uma ontologia de eventos como uma perspectiva de ausência de substância. Russell usava “evento” para a ocorrência de uma propriedade num dado lugar e num dado momento do tempo; tais eventos não são aconteceres, mas antes estados de coisas (veja-se mais à frente). Propôs que as substâncias comuns, e as suas partes mais fundamentais, são sequências de agregados de tais eventos.

Os elementos básicos nestas ontologias podem não ser simples nem indivisíveis, e não têm persistência. Contudo, estes estados de coisas ou eventos são substâncias humianas. Na verdade, a menos que não exista coisa alguma, algo tem de ser uma substância humiana e, nesse sentido, qualquer teoria da ausência de substância tem de estar errada.

Propriedades e relações. As propriedades são as características intrínsecas das coisas, que lhes pertencem quando as consideramos individualmente. As relações, envolvendo dois ou mais termos, são os modos sob os quais as coisas estão perante outras. Em muitos aspectos, as propriedades e as relações podem ser tratadas conjuntamente.

Propriedades como universais. As propriedades são habitualmente concebidas como universais que podem caracterizar um número infinito de instâncias. Só há uma Torre Eiffel, mas a altura da torre, o peso e a constituição de ferro são características que tem em comum com muitas outras coisas. O Problema dos Universais é o problema de explicar como poderia uma qualquer entidade real existir, total e completamente, em muitas instâncias diferentes. Este problema atraiu três propostas de solução: nominalismo, conceptualismo e realismo. O nominalismo e o conceptualismo negam, ambos, que as propriedades sejam genuinamente universais. Segundo o nominalismo, o único elemento comum a todas as coisas de ferro é poderem todas ser descritas usando o predicado “de ferro,” ou serem todas membros da classe das coisas de ferro, ou serem todas parecidas a alguns objectos de ferro típicos. Segundo o conceptualismo, o elemento universal consiste num impulso das nossas mentes para agrupar várias coisas. Estas teorias reducionistas têm tido partidários desde o tempo de Platão e foram especialmente prevalecentes entre os empiristas britânicos e os seus descendentes. O nominalismo e o conceptualismo foram explicitamente postos em causa por Russell nos Problemas da Filosofia (1912). A argumentação mais exaustiva contra tais perspectivas foi apresentada por D. M. Armstrong, Universals and Scientific Realism (1978).

O realismo com respeito aos universais é pelo menos tão velho quanto Platão. A sua teoria das Formas apresenta um realismo consumado que atribui às propriedades genuínas quer existência real, num domínio próprio, quer um estatuto superior a quaisquer instanciações que delas possam existir neste mundo. As Formas existem ante rem — isto é, estejam ou não instanciadas. Considera-se tradicionalmente que Aristóteles sustenta um realismo modificado, segundo o qual as propriedades são reais, e universais, mas só podem existir in rebus, enquanto propriedades de instâncias concretas. Encontra-se aqui uma vez mais a sua perspectiva de que o mínimo “susceptível de ser” é um isto-tal, uma união de um particular com um universal.

O realismo encontrou sempre duas objecções principais. Primeiro, que não é económico, especialmente na sua forma platonista. A questão da economia é um tema actual na filosofia da ciência, dado que pelo menos aparentemente as nossas melhores teorias físicas e químicas envolvem propriedades não instanciadas. A segunda objecção é que não consegue fornecer uma explicação coerente da ligação entre uma propriedade e a substância que é sua portadora, sendo esta a relação de inerência. A inerência não pode ser uma relação normal, porque nesse caso é apenas mais um universal que precisa de uma ligação de inerência entre os seus termos, a substância e a propriedade original. Mas se isto não é uma relação no sentido comum, é o quê? O problema da inerência dá sustentação a versões do realismo nas quais as propriedades são particulares.

Propriedades como particulares. Mesmo que a propriedade de ferro seja universal, o caso particular de ser de ferro que ocorre na Torre Eiffel pertence apenas à torre e é tão particular quanto a própria torre. A teoria dos tropos, tal como foi pela primeira vez desenvolvida por Donald Williams, trata a instância não como uma entidade dependente que emerge da instanciação de um universal, mas como uma substância humiana de pleno direito.

Quando se combina esta abordagem com uma explicação das substâncias comuns com muitas características em termos de feixes ou co-presença, o problema da relação de inerência desaparece. Há também outra economia significativa, pois não é preciso ter uma categoria separada para substâncias. Estas possibilidades são exploradas no livro Abstract Particulars, de Keith Campbell (1990).

Relações. Quando Russell reanimou o debate sobre o realismo deu às relações um estatuto inteiramente igual ao das propriedades inerentes. Na verdade, foram as suas reflexões sobre o papel das relações nos fundamentos da matemática e da lógica que o conduziram ao realismo. O realismo de Armstrong assume a mesma forma.

Há, contudo, uma longa tradição que atribui primazia às propriedades intrínsecas. Aristóteles sustentava que as relações são “a menor das coisas que são”; Hobbes, entre outros, sustentava que a existência de relações depende de um acto mental de comparação; e a perspectiva de Leibniz era que toda a relação se fundamenta numa característica intrínseca de um dos seus termos, ou de ambos. Este programa reducionista é exposto em Campbell (1990).

As relações são aparentemente dependentes, no sentido em que têm de ter substâncias como termos, e estas substâncias têm de ter propriedades intrínsecas. Assim, a menos que existam propriedades intrínsecas não poderá haver relações, mas não vice-versa. As teorias dos feixes, aplicadas a coisas comuns, dizem respeito apenas às propriedades intrínsecas. Incluir relações nos feixes conduz a problemas quanto ao lugar a dar às relações, o que por sua vez induz uma tendência a favor de um monismo como o de Francis Herbert Bradley, no qual as substâncias comuns são absorvidas numa totalidade única omniabrangente.

Poderes. Algumas propriedades, como quadrado, parecem pertencer ao modo de ser do objecto. Outras, como ser um solvente, parecem referir ao que um objecto pode fazer. Esta é a distinção entre propriedades categoriais e disposicionais. Uma linha de investigação retoma o princípio eleático e identifica as propriedades reais com as que conferem ao seu portador uma disposição para agir ou para ser objecto de actuação. Tais disposições são poderes; uma metafísica dos poderes é avançada no livro Powers, de George Molnar (2003) e em Scientific Essentialism, de Brian Ellis (2001).

Complexos. Substância e propriedade são categorias básicas. Em combinação, podem fornecer uma ontologia mais rica.

Estados de coisas. Um estado de coisas básico consiste num particular que tem uma propriedade, ou em duas (ou mais) particulares que estão numa dada relação. Uma propriedade única que inere num só particular é um mínimo “isto-tal.” O Tractatus Logico-Philosophicus (1921) de Wittgenstein apresentou uma ontologia na qual o mundo é composto de estados de coisas relacionais mínimos: os que efectivamente ocorrem são factos, restando além destes os meramente possíveis. Estes temas — que as categorias básicas só ocorrem em combinação, e que estas combinações constituem a realidade — são retomadas por D. M. Armstrong, no livro A World of States of Affairs (1997).

Eventos e processos.Um estado de coisas é estático. Dar conta dos aspectos dinâmicos do mundo exige uma explicação da mudança. Isto pode fazer-se usando sequências de estados de coisas: a estabilidade consiste em estados de coisas sucessivos muitíssimo parecidos entre si, ao passo que a mudança consiste em estados de coisas que a dada altura são substituídos por outros sistematicamente diferentes. Um evento é uma mudança singular, envolvendo um par de estados de coisas; um processo é uma série mais complexa de eventos.

Whitehead, em Process and Reality (1929), deu prioridade ao dinamismo; todas as substâncias que persistem aparentemente são efectivamente processos que se dão muito lentamente. O estatuto do espaço-tempo é controverso. Pode ser uma substância humiana; contudo, algumas explicações da matéria atribuem-lhe um lugar enquanto processo, uma sequência de relações mutáveis complexas entre particulares.
Objectos abstractos

O pensamento humano, especialmente na matemática e na lógica, parece envolver entidades que não têm aparentemente lugar no mundo espácio-temporal. Admitir tais itens é um desafio ao princípio da economia; contudo, é difícil conseguir reduções bem-sucedidas.

Números e conjuntos. Porque se pode representar todos os números na teoria de conjuntos, não é preciso admitir conjunto e números. Russell propôs-se eliminar os conjuntos a favor de funções proposicionais, mas isto revelou-se impossível de aplicar a mais do que um fragmento da matemática (Goodman e Quine 1947, Quine 1969). Porque as variáveis da teoria de conjuntos têm conjuntos como valores, e porque ser é ser o valor de uma variável, estamos comprometidos com a sua realidade — e isto é platonismo quanto a conjuntos e números. O tentativa mais importante de evitar o platonismo é o de Hartry Field (1980, 1989).

Objectos geométricos. Diferentemente de seja o que for que ocorra no mundo natural, os objectos da geometria — cubos euclidianos, por exemplo — são concebidos como perfeitos, imutáveis, intemporais e sem poderes físicos causais. Além disso, há geometrias, e objectos geométricos correspondentes, com muitas mais dimensões do que as que este mundo tem. Um espaço geométrico pode dividir-se e subdividir-se numa infinidade de configurações de diferentes dimensões. O platonismo na geometria envolve assim uma expansão infinita na ontologia.

Uma abordagem a esta questão é considerar que os objectos geométricos são abstraídos, isto é, tirados do seu contexto. Deste ponto de vista, todo o cubo é apenas um fragmento espacial particular de espaço-tempo e todo o triângulo é um fragmento de uma das superfícies espaciais do espaço-tempo. Um problema desta abordagem é que nem todas as formas estarão disponíveis. Se o nosso espaço-tempo está longe de ser perfeitamente euclidiano, não haverá cubos reais euclidianos. Podemos tratar estes objectos inexistentes como variações imaginárias das que efectivamente existem, e considerar que as geometrias que quantificam sobre tais coisas não são literalmente verdadeiras.

Lógica. A filosofia da lógica faz referência a proposições, operadores, funções e inferências. Estas são entidades abstractas, que se relacionam com o raciocínio aproximadamente do mesmo modo que os números se relacionam com a contagem e a medição. Os problemas e possibilidades de sucesso de um tratamento reducionista destas entidades são igualmente paralelos.
Seres necessários

Considera-se habitualmente que as coisas comuns existem contingentemente; isto é, existem, mas poderiam não existir. Tivessem as leis da natureza do nosso mundo sido diferentes, ou as condições iniciais, e haveria um grupo diferente de seres contingentes. Mas algumas coisas parecem imunes aos caprichos causais e do acaso; situando-se fora da rede causal, não podem ser trazidos à existência e não podem ser destruídos. São “seres necessários.” Se o platonismo estiver correcto com respeito a quaisquer objectos abstractos, haverá seres necessários e até, paradoxalmente, a classe vazia.

Para Aristóteles, seja o que for que exista ao longo de um tempo infinito é necessário porque ele defendia que ao longo de um tempo infinito todas as possibilidades acabariam por se efectivar. Para Plotino, qualquer ser divino estaria fora do tempo, e como tal não poderia mudar, não poderia deixar de existir e consequentemente seria um ser necessário. Para Tomás de Aquino, a necessidade de Deus deriva da sua simplicidade: a essência de Deus e a sua existência são idênticas; deste modo, Deus é um tipo de ser que tem de existir. Para Espinosa, toda a substância genuína é causa sui, contendo em si a explicação suficiente do seu próprio ser, e portanto pode garantir a sua própria existência sob todas as condições possíveis.

Duns Escoto, e depois Descartes, ligou o ser necessário à lógica: um ser necessário é aquele cuja inexistência seria auto-contraditória. “Os feijões reais não existem” é auto-contraditória mas apenas trivialmente porque a existência foi inserida na definição do sujeito. Isto não faz dos feijões feijões necessários. Se a existência não for inserida na definição do termo sujeito, é duvidoso que qualquer negação de existência seja auto-contraditória. A melhor discussão da noção de ser necessário é a de Alvin Plantinga (1974, 1975).

Alasdair MacIntyre e Keith Campbell
Bibliografia histórica
Fontes primárias

* Baumgarten, Alexander Gottlieb. Metaphysica. Halle, 1740.
* Clauberg, Johannes. Opera Omnia, edited by J. T. Schalbruch. 2 vols., 281. Amsterdam, 1691.
* Duhamel, Jean-Baptiste. De Consensu Veteris et Novae Philosophiae. Paris, 1663.
* Duns Scotus, John. Opera Omnia. 12 vols. Paris, 1891-1895. Vol. III, Quaestiones Subtillissimae Super Libros Metaphysicorum Aristotelis.
* Heidegger, Martin. Being and Time. Trad. John Macquarrie e Edward Robinson. New York: Harper, 1962.
* Heidegger, Martin. Existence and Being. Trad. D. Scott, R. Hall, e A. Crick. Chicago: Regnery, 1949.
* Kant, Immanuel. Critique of Pure Reason. Trad. Norman Kemp Smith. London: Macmillan, 1929.
* Quine,Willard Van Orman. From a Logical Point of View. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1953.
* Wolff, Christian. Philosophia Prima Sive Ontologia. Frankfurt and Leipzig, 1729.
* Wolff, Christian. Philosophia Rationalis, Sive Logica Methodo Scientifica Pertractata et ad Usum Scientiarum Atque Vitae Aptata. Frankfurt and Leipzig, 1728.

Fontes secundárias

* Bochenski, I. M. Philosophy—An Introduction. Dordrecht, Netherlands, 1962.
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Retirado de Encyclopedia of Philosophy, org. Donald M. Borchert (Macmillan Reference, 2006)

Aos iniciantes em Filosofia que se interessem por: "O que é metafísica"

Metafísica, ramo da filosofia que trata da natureza da realidade última. Está dividida em:
ontologia, que trata dos inúmeros tipos fundamentais de entidades que compõem o universo,
e a metafísica propriamente dita, que se preocupa com a apreensão dos traços mais gerais da realidade.

Esta última pode atingir um alto grau de abstração. A ontologia, ao contrário, está mais relacionada com o plano físico da experiência humana...
*

A metafísica é o saber acerca do "diáfano" das coisas.
*

A metafísica é o saber acerca do "transcendental" das coisas.
*

A metafísica é o saber acerca do "primário" das coisas.
*

A metafísica é o saber acerca do "metafísico" das coisas.

http://www.zubiri.org/outlines_syllabi/metaphysics98.htm
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... outros pressupostos da metafísica leibniziana:

*

a irreversibilidade do tempo,
*

a infinita divisibilidade da matéria
*

e a impossibilidade de a alma se desfazer inteiramente de suas percepções passadas, adequam-se melhor ao modelo de um progresso infinito de todas as substâncias e do mundo como um todo.

... embora através de períodos muitas vezes longos e de regressos. (De

affectibus, 1679) (Ver: A busca da perfeição, Reencarnação e Evolução da matéria)

É uma verdade certa que cada substância deve alcançar toda a perfeição de que é capaz, e que se encontra já nela como envolvida. … É por isso que elas avançam e amadurecem perpetuamente, como o próprio mundo de que são as imagens; pois, como não há nada fora do universo que possa impedi-lo, é preciso que o universo avance continuamente e se desenvolva. (carta a Sofia, 4 nov 1696).



http://calvados.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/doispontos/article/viewFile/1953/1622
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O que é Metafísica?

Richard Taylor

É costume dizer-se que cada um tem sua Filosofia e até que todos os homens têm opiniões metafísicas. Nada poderia ser mais tolo. É verdade que todos os homens têm opiniões, e que algumas delas - tais como as opiniões sobre religião, moral e o significado da vida - confinam com a Filosofia e a Metafísica, mas raros são os homens que possuem qualquer concepção de Filosofia e ainda menos os que têm qualquer noção de Metafísica.

William James definiu algures a Metafísica como "apenas um esforço extraordinariamente obstinado para pensar com clareza". Não são muitas as pessoas que assim pensam, exceto quando seus interesses práticos estão envolvidos. Não têm necessidade de assim pensar e, daí, não sentem qualquer propensão para o fazer. Excetuando algumas raras almas meditativas, os homens percorrem a vida aceitando como axiomas, simplesmente, aquelas questões da existência, propósito e significado que aos metafísicos parecem sumamente intrigantes. O que sobretudo exige a atenção de todas as criaturas, e de todos os homens, é a necessidade de sobreviver e, uma vez que isso fique razoavelmente assegurado, a necessidade de existir com toda a segurança possível. Todo pensamento começa aí, e a sua maior parte cessa aí. Sentimo-nos mais à vontade para pensar como fazer isto ou aquilo. Por isso a engenharia, a política e a indústria são muito naturais aos homens. Mas a Metafísica não se interessa, de modo algum, pelos "comos" da vida e sim apenas pelos "porquês", pelas questões que é perfeitamente fácil jamais formular durante uma vida inteira.

Pensar metafisicamente é pensar, sem arbitrariedade nem dogmatismo, nos mais básicos problemas da existência. Os problemas são básicos no sentido de que são fundamentais, de que muita coisa depende deles. A religião, por exemplo, não é Metafísica; e, entretanto, se a teoria metafísica do materialismo fosse verdadeira, e assim fosse um fato que os homens não têm alma, então grande parte da religião soçobraria diante desse fato. Também a Filosofia Moral não é Metafísica e, entretanto, se a teoria metafísica do determinismo, ou se a teoria do fatalismo fossem verdadeiras, então muitos dos nossos pressupostos tradicionais seriam refutados por essas verdades. Similarmente, a Lógica não é Metafísica e, entretanto, se se apurasse que, em virtude da natureza do tempo, algumas asserções não são verdadeiras nem falsas, isso acarretaria sérias implicações para a Lógica tradicional.

Isto sugere, contrariamente ao que em geral se supõe, que a Metafísica vê um alicerce da Filosofia e não o seu coroamento. Se for longamente exercido. o pensamento filosófico tende a resolver-se em problemas metafísicos básicos. Por isso o pensamento metafísico é difícil. Com efeito, seria provavelmente válido afirmar que o fruto do pensamento metafísico não é o conhecimento, mas o entendimento. As interrogações metafísicas têm respostas e, entre as várias respostas concorrentes, nem todas poderão ser verdadeiras, por certo. Se um homem enuncia uma teoria de materialismo e um outro a nega, então um desses homens está errado; e o mesmo acontece a todas as outras teorias metafísicas. Contudo, só muito raramente é possível provar e conhecer qual das teorias é a verdadeira. 0 entendimento, porém - e, por vezes, uma profundidade muito considerável do mesmo resulta de vermos as persistentes dificuldades em opiniões que freqüentemente parecem, em outras bases, ser muito obviamente verdadeiras. É por essa razão que um homem pode ser um sábio metafísico sem que, não obstante, sustente suas opiniões e juízos em conceitos metafísicos. Tal homem pode ver tudo o que um dogmático metafísico vê, e pode entender todas as razões para afirmar o que outro homem afirma com tamanha confiança. Mas, ao invés do outro, também vê algumas razões para duvidar e, assim, ele é, como Sócrates, o mais sábio, mesmo em sua profissão de ignorância. Advirta-se o leitor, neste particular, de que quando ouvir um filósofo proclamar qualquer opinião metafísica com grande confiança, ou o ouvir afirmar que determinada coisa, em Metafísica, é óbvia, ou que algum problema metafísico gravita apenas em torno de confusões de conceitos ou de significados de palavras, então poderá estar inteiramente certo de que esse homem está infinitamente distante do entendimento filosófico. Suas opiniões parecem isentas de dificuldades apenas porque ele se recusa obstinadamente a ver dificuldades.

Um problema metafísico é indispensável dos seus dados, pois são estes que, em primeiro lugar, dão origem ao problema. Ora o datum, ou dado, significa literalmente algo que nos é oferecido, posto à nossa disposição. Assim, tomamos como dado de um problema certas convicções elementares do senso comum que todos ou a maioria dos homens estão aptos a sustentar com alguma persuasão íntima, antes da reflexão filosófica, e teriam relutância em abandonar. Não são teorias filosóficas. pois estas são o produto da reflexão filosófica e, usualmente, resultam da tentativa de conciliar certos dados entre si. São, pelo contrário, pontos de partida para teorias, as coisas por onde se começa, visto que, para que se consiga alguma coisa, devemos começar por alguma coisa, e não se pode gastar o tempo todo apenas começando. Observou Aristóteles: "Procurar a prova de assuntos que já possuem evidência mais clara do que qualquer prova pode fornecer é confundir o melhor com o pior, o plausível com o implausível e o básico com o derivativo," (Física, Livro VIII, Cap. 3 ) . Exemplos de dados metafísicos são as crenças que todos os homens possuem, independentemente da Filosofia, de que existem, de que tem um corpo, de que lhes cabe algumas vezes uma opção entre cursos alternativos de ação, de que por vezes deliberam sobre tais cursos, de que envelhecem e morrerão algum dia etc. Um problema metafísico surge quando se verifica que tais dados não parecem concordar entre si, que têm. aparentemente, implicações que não se revestem de coerência entre si. A tarefa, então, é encontrar alguma teoria adequada à remoção desses conflitos.

Talvez convenha observar que os dados, como os considero, não são coisas necessariamente verdadeiras nem evidentes em si mesmas. De fato, se o conflito entre certas convicções do senso comum não for tão-só aparente, mas real, então algumas dessas convicções estão fadadas a ser falsas, embora possam, não obstante, ser tidas na conta de dados até que sua falsidade se descubra. É isso o que torna excitante, por vezes, a Metafísica; nomeadamente o fato de sermos coagidos, algumas vezes, a abandonar certas opiniões que sempre havíamos considerado óbvias. Contudo, a Metafísica tem de começar por alguma coisa e, como não pode começar, obviamente, pelas coisas que já estão provadas, deve começar pelas coisas em que as pessoas acreditam; e a confiança com que uma pessoa sustenta suas teorias metafísicas não pode ser maior do que a confiança que deposita nos dados em que aquelas repousam.

Ora, o intelecto do homem não é tão forte quanto a sua vontade, e os homens, geralmente, acreditam no que querem acreditar, particularmente quando essas crenças refletem o mérito próprio entre os homens e o valor de seus esforços. A sabedoria não é, pois, o que os homens buscam em primeiro lugar. Procuram, outrossim, uma justificação para aquilo em que crêem seja o que for. Não surpreende, portanto, que os principiantes em Filosofia, e mesmo os que já não são principiantes, tenham uma acentuada inclinação para se apegarem a alguma teoria que os atrai, em face de dados conflitantes, e neguem por vezes a veracidade dos dados, apenas por aquela razão. Tal atitude dificilmente se pode considerar propícia à sabedoria. Assim, não é incomum encontrarmos pessoas que, dizem elas, querem ardentemente acreditar na teoria do determinismo e que, partindo desse desejo, negam, simplesmente, a verdade de quaisquer dados que com ela colidam. Os dados, por outras palavras, são meramente ajustados à teoria, em vez da teoria aos dados. Mas deve-se insistir ainda que é pelos dados, c não pela teoria, que se terá de começar; pois se não partirmos de pressupostos razoavelmente plausíveis, onde irmos obter a teoria, diferente de se esposar apenas aquilo que os nossos corações desejam'? Mais cedo ou mais tarde poderemos ter de abandonar alguns dos dados do nosso senso comum, mas, ao fazê-lo, será em consideração a certas outras crenças do senso comum que relutamos ainda mais em abandonar e não em deferência pelas teorias filosóficas que nos atraem.

0 leitor é exortado. portanto, ao acompanhar os pensamentos que se seguem, a suspender os seus juízos sobre as verdades finais das coisas, uma vez que, provavelmente, nem ele nem qualquer outra pessoa sabe quais são essas verdades, e a contentar-se com a apreciação dos problemas da Metafísica. este é o primeiro e sempre o mais difícil passo. 0 resto da verdade, se alguma vez tiver a boa fortuna de receber uma parte dela, chegar-lhe-á do seu próprio íntimo, se acaso chegar, e não da leitura de livros.

0 ensaio que se segue constitui uma introdução - literalmente, um "encaminhamento à" Metafísica. Não é uma análise das concepções predominantes, e o leitor buscará em vão os nomes dos grandes pensadores ou o resumo das opiniões que eles defenderam. Os problemas metafísicos vão sendo trazidos à tona, e o leitor é simplesmente convidado a pensar neles de acordo com as diretrizes sugeridas. É por essa razão que, ao desenvolver os problemas mais estreitamente associados com o eu ou pessoa e seus poderes, particularmente nos primeiros três capítulos, a estilisticamente discutível primeira pessoa do singular, "Eu'', é empregada com freqüência, à maneira das Meditações de Descartes. 0 leitor compreenderá que as idéias dessa forma apresentadas têm por intuito significar as suas próprias e não quaisquer reflexões autobiográficas do autor.

Sobre a Dialética

DIALÉTICA


Dialética: gr. s.f. 1. Arte do diálogo para atingir a verdade. 2. Desenvolvimento do pensamento por tese, antítese e síntese. 3. Método de análise que procura evidenciar as contradições da realidade social e resolvê-las no curso do desenvolvimento histórico.
Lao Tsé, autor do livro Tao tö King (o livro do Tao), 7 séculos a.C., "autor" da dialética.
Heráclito de Éfeso. Para ele a realidade é um constante devir. Prevalece a luta dos opostos: frio/calor, vida/morte, bem/mal... não é possível banhar-se duas vezes no mesmo rio, pois nem o rio já é o mesmo e nem nós também somos os mesmos.
Parménedes de Eléia. Segundo ele, o movimento é uma ilusão, tudo é imutável.
Para PLATÃO a dialética é um método de ascensão ao inteligível, método de dedução racional das idéias. "O conhecimento deveria nascer desse encontro (perguntas e respostas), da reflexão coletiva, da disputa e não do isolamento" (GADOTTI, 1995, P.16)
Para ARISTÓTELES a dialética é apenas auxiliar da filosofia. Atividade crítica. Não é um método para se chegar à verdade,é apenas uma aparência da filosofia. Para ele o método dialético não conduz ao conhecimento, mas à disputa, à probabilidade, à opinião. Conseguiu conciliar os pensamentos de Heráclito e Parmênides com a teoria sobre o ato e a potência: as mudanças existem, mas são apenas atualizações de potencialidades que já preexistiam.
PLOTINO a considera uma parte da filosofia e não apenas um método. Mas o sentido "método" predominou na Idade Média, ao lado da retórica e gramática e foi considerada uma arte liberal, a maneira de discernir o verdadeiro do falso.
No início da Idade Moderna a dialética foi julgada inútil, justificando que Aristóteles já havia dito tudo sobre a lógica. A dialética limitar-se-ia ao silogismo, uma lógica das aparências. (Kant e Descartes). Em Discurso do Método, Descartes propõe regras para a análise, para atingir cada elemento do objeto estudado e a síntese ou reconstituição do conjunto.
HEGEL concebe o processo racional como um processo dialético no qual a contradição não é considerada como "ilógica", "paradoxal", mas como o verdadeiro motor do pensamento. O pensamento não é estático, mas procede por contradições superadas, da tese (afirmação) à antítese (negação) e daí à síntese (conciliação). Uma proposição (tese) não existe sem oposição a outra proposição (antítese). A primeira será modificada nesse processo de oposição e surgirá uma nova. A antítese está contida na própria tese que é, por isso, contraditória. A conciliação existente na síntese é provisória na medida em que ela própria se transforma numa nova tese.
Para HEGEL, a dialética é uma aplicação científica da conformidade às leis inerentes à natureza e ao pensamento, a via natural própria das determinações do conhecimento, e de tudo que é finito. É o momento negativo de toda realidade, aquilo que tem a possibilidade de não ser. A possibilidade de negar-se a si mesma. Hegel chega ao real, ao concreto, partindo do abstrato: a razão domina o mundo e tem por função a unificação, a conciliação, a manutenção da ordem do todo. Essa razão é dialética, pois procede por unidade e oposição dos contrários. Hegel assim retoma Heráclito.
Para MARX, a dialética não é um método apenas para se chegar à verdade, é uma concepção do ser humano, da sociedade e da relação ser humano-mundo. Tanto Marx como Hegel sustentam a tese de que o movimento se dá pela oposição dos contrários - pela contradição.
Na dialética materialista expressa em O Capital, Marx afirma que não existem fatos em si, é o próprio ser humano que figura como ser produzindo-se a si mesmo. Pela sua própria atividade, pelo modo de produção da vida material. A condição para que o Ser Humano se torne Ser Humano é o trabalho, a construção da sua história. A mediação entre ele e o mundo é a atividade material. - Mao Tsetung resume o pensamento de Marx: "a concepção materialista-dialética entende que, no estudo do desenvolvimento dum fenômeno deve partir-se do seu conteúdo interno, das suas relações com os outros fenômenos, (...), deve-se considerar o desenvolvimento dos fenômenos como sendo o seu movimento próprio, necessário, interno, encontrando-se, alias, cada fenômeno no seu movimento, em ligação e interação com outros fenômenos que o rodeiam. A causa fundamental do desenvolvimento dos fenômenos não é externa, mas interna; ela reside no contraditório do interior dos próprios fenômenos. No interior de todo fenômeno há contradições, daí o seu movimento e desenvolvimento".
MARX não nega o valor e a necessidade da subjetividade no conhecimento. O mundo é sempre uma "visão"do mundo para o Ser Humano, o mundo refletido. A dialética não é um movimento espiritual que se opera no interior do entendimento humano. Existe uma determinação recíproca entre as idéias da mente e as condições reais de sua existência "o essencial é que a análise dialética compreenda a maneira pela qual se relacionam, encadeiam-se e determinam-se reciprocamente, as condições de existência social e as distintas modalidades de consciência.
Diz HENRI LEFÈBVRE: "o método marxista insiste muito mais claramente do que as metodologias anteriores, ... a realidade a atingir pela análise, a reconstituir pela exposição (síntese), é sempre uma realidade em movimento". A dialética considera cada objeto com suas características próprias, o seu devir, as suas contradições. Não existem regras universais fixas. Ponto de vista marxista de George Politzer: A dialética focaliza as coisas e suas imagens conceituais em suas conexões, em seu encadeiamento, em sua dinâmica, em seu processo de gênese e envelhecimento", observa as coisas e os fenômenos, (...) no seu movimento contínuo, na luta de seus contrários.
Para LEFÈBVRE: "A contradição dialética é uma inclusão dos contraditórios um no outro e, ao mesmo tempo, uma exclusão ativa." O método dialético busca captar a ligação, a unidade, o movimento que engendra os contraditórios, que os opõe, que faz com que se choquem, que os quebra ou os supera.
O materialismo dialético não considera a matéria e o pensamento como princípios isolados, mas com aspectos de uma mesma natureza que é indivisível, duas formas diferentes: uma material e outra ideal; a vida social, una e indivisível se exprime em duas formas diferentes: uma material e outra ideal. O materialismo dialético considera a forma das idéias tão concretas quanto a forma da natureza. O método dialético tem duplo objetivo:
1º) como dialético, estuda as leis mais gerais do universo, leis comuns de todos os aspectos da realidade, desde a natureza física até o pensamento, passando pela natureza viva e pela sociedade.
2º) como materialismo, é uma concepção científica que pressupõe que o mundo é uma realidade material (natureza e sociedade), onde o Ser Humano está sempre presente e pode conhecê-la e transformá-la.
A dialética marxista não separa teoria (conhecimento) e prática (ação). "A teoria não é um dogma mas um guia para a ação." A questão de saber se cabe ao pensamento humano uma verdade objetiva não é uma questão teórica, mas prática. É na práxis que o Ser Humano deve demonstrar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o caráter terreno de seu pensamento. A Dialética é uma unidade de contrários
Com ROUSSEAU, a concepção dialética da história, oposta à concepção metafísica, da Idade Média, começa a criar forma. Para ele todas as pessoas nascem livres e só uma organização democrática da sociedade levará os indivíduos a se desenvolverem plenamente. O indivíduo é condicionado pela sociedade.
ENGELS em a A Dialética da Natureza - formulou três leis gerais da dialética, a saber:
1ª - Lei da conversão da quantidade em qualidade: significa que na natureza, as variações qualitativas podem ser obtidas somente acrescentando-se tirando-se matéria ou movimento por meio de variações quantitativas;
2ª - Lei da interpenetração dos opostos, esta é a lei da unidade e da luta dos contrários, que garante a unidade e a continuidade da mudança incessante na natureza e nos fenômenos;
3ª - Lei da negação da negação, que garante que cada síntese é a tese de uma nova antítese, reproduzindo indefinidamente o processo.
Alguns princípios gerais ou características da Dialética são hoje aceitos:
1º Tudo se relaciona (Princípio da totalidade) - a natureza se apresenta como um todo coerente, onde objetos e fenômenos são ligados entre si, condicionando-se reciprocamente. "A compreensão dialética se encontra em relação de intensa interação e conexão entre si e com o todo, mas também que o todo não pode ser petrificado na abstração situada por cima das partes, visto que o todo se cria a si mesmo, na interação das partes" (Karel Kosik, Dialética do concreto, p. 42, citado por Gadotti)
2º Tudo se transforma (princípio do movimento) Devir. A afirmação engendra a sua negação, porém a negação não prevalece como tal: tanto a afirmação como a negação são superadas e o que prevalece é uma síntese, é a negação da negação. O calor só pode ser entendido em função do frio.
3º Mudança qualitativa - dá-se pelo acúmulo de elementos quantitativos que num dado momento produzem o qualitativamente novo.
4º Unidade e luta dos contrários (Princípio da contradição) - A transformação das coisas só é possível porque, no seu próprio interior coexistem forças opostas tendendo simultaneamente à unidade e à oposição.

*
A contradição é a essencia, a lei fundamental da dialética;
*
Os elementos contraditórios coesistem numa realidade estruturada, um não podendo existir sem o outro.
*
A existência dos contrários não é um absurdo lógico, ela se funda no real.

A Dialética pode ser subdividida em "três níveis"(Mandel)
1º Dialética da Natureza - objetiva - independente da existência de projetos, de intenções ou de motivações do homem, que não age diretamente sobre a história humana;
2º A Dialética da História - Projetos humanos nas lutas das classes sociais - a realização desses projetos estão ligados a condições materiais, objetivos, pré-existentes e independentes da vontade dos homens.
3º A Dialética do Conhecimento - "que é uma dialética sujeito-objeto, o resultado de uma interação constante entre os objetos a conhecer e a ação dos sujeitos que procuram compreendê-los".
LÓGICA FORMAL E LÓGICA DIALÉTICA
(Alvaro V. Pinto) "a lógica formal é a lógica da metafísica, assim como a lógica dialética é a lógica da dialética. O princípio que as distingue fundamentalmente é a contradição. A lógica dialética parte do princípio (ou lei) da contradição, a lógica formal parte do seu oposto, da lei da não contradição". Para a primeiraos objetos e fenômenos estão em constante movimento e para a segunda, os objetos e fenômenos estão estáticos.
DIALÉTICA: REGRAS PRÁTICAS

1.
Dirigir-se à própria coisa - análise objetiva;
2.
Apreender o conjunto das conexões internas da coisa, de seus aspectos; o desenvolvimento e o movimento (devir) da coisa.
3.
Apreender os aspectos e movimentos contraditórios, a coisa como totalidade e unidade dos contrários
4.
Analisar a luta, o conflito interno das contradições, o movimento, a tendência (o que tende a ser e o que tende a cair no nada)
5.
Não esquecer: tudo está ligado a tudo; - uma interação insignificante, negligenciável num momento pode tornar-se essencial e importante em outro.
6.
Não esquecer também de captar as transições dos aspectos e contradições; passagens de uns nos outros, transições no devir.
7.
Não esquecer ainda que o processo de aprofundamento do conhecimento que vai do fenômeno à essência e da essência menos profunda à mais profunda é infinito. Jamais estar satisfeito com o obtido.
8.
Penetrar mais fundo do que a simples coexistência observada. Penetrar sempre mais profundamente na riquesa do conteúdo, apreendendo conexões e movimento.
9.
Em certas fases do próprio pensamento, este deverá transformar-se, superar-se: modificar ou rejeitar sua forma, remanejar seu conteúdo - retomar seus momentos superados, revê-los, repeli-los, mas apenas aparentemente, com o objetivo de aprofundá-los mediante um passo atrás rumo às suas etapas anteriores e, por vezes, até mesmo rumo ao seu ponto de partida, etc.(op.cit. p.33) transcrevendo Lefebvrè "Logica formal, lógica dialética

DIALÁTICA E VERDADE:
Que garantias pode nos dar a dialética de que estamos no caminho certo para a verdade?
Marx afirma: "A dialética mistificada tornou-se moda na Alemanha, porque parecia sublimar a situação existente. Mas, na sua forma racional, causa escândalo e horror à burguesia e aos porta-vozes de sua doutrina, porque sua concepção do existente, afirmando-o, encerra, ao mesmo tempo, o reconhecimento da negação e da necessária destruição dele; porque apreende, de acordo com seu caráter transitório, as formas em que se configura o devir; porque enfim, por nada se deixa impor, e é na sua essência, crítica e revolucionária. (O Capital vol. I p. 17)
A dialética é também uma teoria engajada. Ao contrário da metafísica, é questionadora, contestadora. Exige constantemente o reexame da teoria e a crítica da prática. Não existe nenhum critério de relevância (nem científico, social, teórico, nem prático) que possa determinar que um ponto de vista é relativamente mais válido que outro. O professor pensador de sua práxis, deverá manter uma crítica e uma autocrítica constante, uma dúvida levada à suspeita, e a humildade de que fala PAULO FREIRE, para reconhecer cotidianamente as limitações do pensamento e da teoria.
Concluindo, a dialética opõe-se ao dogmatismo, ao reducionismo, portanto, é sempre aberta, inacabada, superando-se constantemente.

Você é um dialético? Thiago Maia

Você é um dialético? Thiago Maia

De começo, todos somos dialéticos, pois a consciência individual é formada a partir de um processo dialético, a saber, pela aquisição e pela confrontação de valores culturais pré-estabelecidos. Somente através da existência de um outro pode ocorrer a necessária auto-afirmação e a consequente diferenciação que nos caracteriza enquanto indíviduos em contínua formação.

No entanto, num sentido mais restrito, dialéticos são aqueles que compreendem, aceitam e sabem usar a seu favor as leis da dialética. Os dialéticos usam essas leis tanto como método para conquistar a verdade, tanto como instrumentos para mudar o mundo e a si mesmos. Poderíamos definir a Dialética como uma espécie de sistema metafísico dualista que explica a realidade a partir da luta de contrários. Porém ela é mais do que isso, ela é a própria realidade no seu desdobramento espácio-temporal. Em suma, a Dialética é uma fenomenologia.

EXEMPLOS DE DIALÉTICOS

Considerado uns dos iniciadores da dialética, Heráclito de Éfeso dizia em um dos fragmentos que restaram de sua obra que "tudo se faz por contraste; da luta dos contrários nasce a mais bela harmonia". Expressava-se de maneira contraditória, com o intuito de descrever o movimento dialético do mundo, no qual tudo é mutável e fluídico. Já Platão, discípulo de Sócrates, tentou unir a concepção heraclitiana de ser como móvel e múltiplo, com a concepção de Parmenides, que via o ser como imóvel e unificado. Estabelece-se em Platão, uma síntese dialética das idéias dos filósofos anteriores, ao afirmar que o ser é ao mesmo tempo móvel e imóvel e também que este é múltiplo e unificado. Em suma, uma concepção de ser que englobou a sua contrariedade. Plotino, uns dos principais neoplatônicos, vê a dialética como uma maneira de purificar a alma e chegar ao conhecimento das idéias eternas. Nos tempos modernos, Hegel fez de toda a história da Filosofia um movimento dialético que culminaria no seu sistema filosófico. Tese, antítese e síntese são os elementos principais do sistema idealista hegeliano. A tese é a idéia inicial, a antítese, a sua negação e a síntese decorre da resolução desta contradição numa nova idéia que englobe elementos das duas anteriores. Karl Marx, juntamente com Friedrich Engels, será o fundador de materialismo dialético, o qual inverterá o sistema idealista hegeliano, postulando que não é o pensamento que determina as condições materiais, mas as condições materiais que determinam o pensamento. Karl Marx faz da dialética um instrumento de análise e crítica social, com a finalidade não de interpretar o mundo, mas de transformá-lo. A luta de classes representaria uma constante tensão social que moveria as sociedades humanas através da história. A partir dela, Marx desenvolve uma série de conceitos, tais como ideologia, alienação, superestrutura. Somente uma sociedade sem classes, poderia ser uma sociedade justa e pacífica. Vemos uma continuação do projeto crítico nas obras dos chamados teóricos de Frankfurt, (Benjamin, Adorno, Horkheimer e Habermas) os quais utilizam as categorias marxianas na crítica da sociedade contemporânea.

CONCLUSÃO

Se você não é um dialético, torne-se um: confronte de maneira crítica e imparcial, as idéias dos filósofos anteriores e monte o seu próprio sistema filosófico. Por fim, estude e aplique as leis da dialética e será capaz de compreender ao próximo e a si mesmo.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

RELIGIÕES NA ÍNDIA E NA CHINA

RELIGIÕES NA ÍNDIA E NA CHINA Entre as religiões que se professam, hoje em dia, têm destaque o cristianismo, o islamismo e o budismo. O conjunto de seus seguidores, pelo menos nominais, forma um grupo que reúne aproximadamente a metade da população mundial. Mas há outras religiões de que pouco se fala, embora numericamente congreguem um grande número de fiéis. Lembramos, aqui, o hinduísmo, um termo genérico que engloba as correntes religiosas tradicionais da Índia com vários componentes que se inspiram em elementos próprios das antigas religiões nativas e nas que os invasores arianos impuseram a partir do segundo milênio antes de Cristo. A sua origem se perde na Antigüidade, foi continuamente enriquecido com aprofundamentos e visões novas, manifesta-se numa riquíssima simbologia, numa arte genial e em livros sagrados - os Vedas - estudados e interpretados ao longo dos séculos. Corresponde às exigências múltiplas e aos dons religiosos da espiritualidade dos indianos, um povo que se expressou especialmente por meio da religião. Mais de 700 milhões de pessoas na Índia, Bangladesh e Nepal seguem esta religião. A suprema aspiração do fiel hindu é a união com Brahman, a Unidade, o Absoluto, a Totalidade, ‘O que é’. “Todas as coisas, todas as pessoas são transformações - por emanação do Absoluto. Quanto mais elas se afastam de sua origem, tanto menos são ‘o que (a Totalidade) é’.” A fusão do espírito da pessoa (Atman) com o Brahman se realiza, porém, somente depois da morte, se a alma estiver totalmente purificada. O caminho da purificação é longo e difícil e só se alcança a fusão com o Brahman depois de uma série de reencarnações (ou transformações samsâra), durante as quais, pela lei do karman, cada um deve espiar as suas culpas e receber o prêmio pelas boas obras, reencarnando-se em condições de vida diferentes. Pouco se fala no hinduísmo no mundo ocidental. Não é uma religião barulhenta, não inspira nacionalismo ou reivindicações. É vista, superficialmente, como ignorância, porque levam os indianos a não matar as vacas e comer sua carne e impõe a divisão social em castas (o que, na verdade, é fruto das invasões e das vicissitudes históricas da Índia, embora justificada, a posteriori, pela religião). Há, porém, uma certa influência do hinduísmo em nossa cultura. Há sempre mais pessoas que acreditam no karma - aqui e agora - e o invocam sempre que se sentem injustiçadas ou injuriadas, como uma ‘rogação de praga’ automática. Outros sentem-se atraídos por esse Brahman, o Absoluto, no qual se perdem e vislumbram na Nova Era do Aquário os novos tempos em que isso se torna realizável. A reencarnação é crença comum entre bom número de brasileiros espíritas ou que declaram pertencer a outras denominações. A Índia, enfim, atrai por sua cultura milenar e por sua incessante procura do Infinito. É o que reconhecia também o papa Paulo VI, em Bombain, em 1964, ao afirmar que a Índia é uma terra sagrada, na qual está a origem das mais antigas culturas e a fonte de grandes religiões. É a casa de um povo que viu Deus com seu incansável desejo de descobri-lo através de profundas meditações e silêncios. Poucas vezes o desejo de Deus tem sido expresso com palavras tão repletas do espírito do Advento como em seus livros sagrados, escritos muitos anos antes da vida de Jesus Cristo: ‘do irreal leve-me à luz; da morte leve-me à imortalidade’. Na China, entre as religiões que têm um grande número de adeptos (embora, depois da experiência comunista e suas investidas contra a religião, não se conheça com clareza a situação) há o confucionismo e o taoísmo. Calculam-se em cerca de trezentos milhões os taoístas. As duas religiões nasceram quase contemporaneamente no século V a.C. Para os chineses antigos, é por intermédio da natureza que o homem descobre também o conceito de Deus. Os fenômenos naturais, dos quais dependem a boa ou a má sorte da existência, levam à idéia de um ‘dominador superior’, que os chineses chamam de ‘céu’ (tien). Para seguir o Tao (o ‘caminho’, ou a lei, a verdade) e chegar à felicidade, nesta vida, Kung Fu-Tse (nome chinês de Confúcio, que é uma forma ocidentalizada) propõe uma ética individual e uma ética das relações sociais. Confúcio não se importava com o ‘Tao-caminho do céu’, queria ser um intérprete e continuador dos antigos sábios, firmando princípios ético-políticos que estão na vida familiar, social e política chinesa. O tempo e os seguidores se encarregaram de dar ao confucionismo características religiosas. Ao contrário de Kunf Fu-Tse, Lao-Tse foi um anárquico, que abandonou o ofício de bibliotecário-arquivista da corte, cansado da corrupção, para iniciar uma longa viagem para o Oeste. No sistema filosófico que foi elaborado valendo-se dele, o taoísmo, o Tao está fora da natureza, absoluto e transcendente. Enquanto o confucionismo aceita os valores da sociedade e procura educar as pessoas, o taoísmo considera negativas as manifestações da natureza e da sociedade e propõe a fuga do mundo como caminho que conduz o homem ao Tao absoluto. Ao longo dos séculos, as duas filosofias sofreram profundas influências até serem transformadas em religiões institucionais. É o que aconteceu com os grandes líderes religiosos. Apresentam um ideal (ou uma utopia) e geram um movimento espiritual que sobrevive a sua morte. Os seguidores formam um grupo - geralmente com as características de uma seita - que, primeiro, por uma organização embrionária e, depois, formalizado, retransmite a mensagem em conexão com as necessidades diárias, os embates e as situações concretas pelas quais passam. Chega-se, enfim, à institucionalização do grupo, à igreja organizada com hierarquia, rituais, dogmas. A instituição oferece segurança - e controle - de conduta aos seus membros nas relações sociais e dá estabilidade à cultura do grupo. Ao se enrijecer e querendo preservar a todo custo certas prerrogativas e elementos considerados essenciais, pode dificultar mudanças necessárias, frustar personalidades e diminuir a responsabilidade social. Disso tudo, nasce a necessidade, em todas as instituições, especialmente as religiosas, do aparecimento de novos líderes - no judaísmo e no cristianismo considerados ‘profetas’- que, mantendo o ideal da mensagem inicial, levam às mudanças necessárias para que a utopia original não fique enterrada debaixo de montes de lixo ‘institucional’. É por isso que os profetas não são benquistos pelos hierarcas detentores e ciumentos de seu poder. Mas, lembramos, também, a utopia estéril de querermos construir uma vida social sem instituições: a natureza social do homem exige instituições - (in)felizmente. É a dialética constante de nossa vida social.

POR QUE SOU AGNÓSTICO - 1896 -ENSAIOS DE ROBERT G. INGERSOLL

ENSAIOS DE ROBERT G. INGERSOLL POR QUE SOU AGNÓSTICO - 1896 Tradução: Afonso M. C. Amorim Fonte: http://www.no-god.org/words/essays/ingersoll/why_i_am_agnostic.ixi ----------------------------------------- I Na maior parte das vezes nós herdamos nossas opiniões. Nós somos herdeiros de hábitos e atividades mentais. Nossas crenças, como os costumes nas nossas roupas, dependem de onde nós nascemos. Fomos moldados e formados pelo nosso ambiente. O ambiente é um escultor -- um pintor. Se tivéssemos nascido em Constantinopla, a maioria de nós iria dizer: "Não há nenhum Deus além de Alá, e Maomé é seu profeta." Se nossos pais tivessem nascido nas margens do Ganges, nós poderíamos ser adoradores de Shiva, esperando pela chegada ao céu de Nirvana. Em geral, crianças amam seus pais. Acreditam no que eles ensinam. E têm grande orgulho em dizer que a religião da mãe é adequada para elas. A maioria das pessoas amam a paz. Eles não gostam de ser diferentes dos vizinhos. Pessoas gostam de companhia. Elas são sociais. Elas gostam de viajar na estrada com a multidão. Elas odeiam caminhar sozinhas. Os escoceses são calvinistas porque seus pais eram. Os irlandeses, católicos porque seus pais eram. Os ingleses, episcopais, porque seus pais eram. E os americanos são divididos em centenas de seitas porque seus pais eram. Esta é a regra geral, para a qual, existem numerosas exceções. Filhos às vezes são superiores aos seus pais, modificam suas regras, alteram seus costumes, chegam a diferentes conclusões. Mas isto é tão gradual que as mudanças são fracamente percebidas, e aqueles que mudam usualmente continuam a insistir que permanecem seguindo os passos dos pais. É dito pelos historiadores cristãos que a religião de uma nação foi, repentinamente vítima de um processo de mudança, e que milhões de pagãos teriam se transformado em cristão sob o comando de um rei. Filósofos não concordam com esses historiadores. Nomes foram mudados, altares foram substituídos, mas as crenças continuaram as mesmas. Um pagão, diante da espada ameaçadora de um cristão iria provavelmente mudar sua visão religiosa.. Um cristão, com uma cimitarra em sua cabeça, tornar-se-ia um maometano. Mas em essência, ambos continuariam exatamente o que eram antes, mudando apenas o discurso. Crença não é sujeita à vontade. Homens pensam como podem. Crianças não, elas acreditam exatamente no que lhes é ensinado. Elas não são exatamente como seus pais. Elas diferem em temperamento, em experiência, em capacidade, nas circunstâncias. Então há uma contínua e quase imperceptível mudança. Há desenvolvimento, consciente e inconsciente crescem, e comparando grandes intervalos de tempo, nós percebemos que o velho foi abandonado, quase substituído pelo novo. O homem não pode permanecer estacionado. A mente não pode ser ancorada num local seguro. Se não avançarmos, andaremos para trás. Se não crescermos, decairemos. Se não nos desenvolvermos, atrofiaremos e morreremos. Como a maioria de vocês, eu cresci no meio de pessoas que sabiam -- os que tinham certeza. Eles não usavam a razão ou a investigação. Eles não duvidavam. Eles sabiam que tinham a verdade. Em sua crenças não havia nenhum "eu acho", nenhum "talvez". Eles tinham tido a revelação de Deus. Eles conheciam o início das coisas. Eles sabiam que Deus havia começado a criação numa segunda-feira pela manhã, quatro mil e quatro anos antes de Cristo. Eles sabiam que na eternidade -- antes daquela manhã Ele não tinha feito nada. Eles sabiam que Ele tinha passado seis dias para fazer o mundo -- todas as plantas, todos os animais, toda a vida, e todos os globos que giram no espaço. Eles sabiam exatamente o que Deus havia feito em que dia, e quando Ele descansou. Eles sabiam a origem, as causas do mal, de todos os crimes, de todas as doenças, da morte. Eles sabiam não só o início, mas também o fim. Eles sabiam que a vida tinha ou um caminho ou uma estrada. Eles sabiam que o caminho, estreito, coberto por pedras e espinhos, infestado de víboras, molhado de lágrimas, manchado de pés sangrantes, levava ao céu. A estrada, larga, lisa, ladeada por frutas e flores, cheia de risadas, música, e de toda a felicidade do amor humano, levava direto ao inferno. Eles sabiam que Deus estava fazendo todo o esforço para que nós seguíssemos pelo caminho, e que o diabo fazia todo tipo de truques e artimanhas para que percorrêssemos a estrada. Eles sabiam que se travava uma terrível batalha entre as forças do mal e as do bem pela posse das almas humanas. Eles sabiam que há muitos séculos atrás Deus desceu do seu trono e nasceu criança neste pobre mundo -- que Ele sofreu e morreu pelo bem dos humanos -- sofreu para salvar alguns. Eles sabiam também que os corações humanos eram depravados, que os homens estavam apaixonados pelo mal e odiavam Deus com todas as suas forças. Ao mesmo tempo eles sabiam que Deus criara o homem à sua imagem e semelhança e estava plenamente satisfeito com seu trabalho. Eles sabiam também que o homem havia sido tentado pelo demônio, que com suas mentiras e sutilezas enganara o primeiro ser humano. Sabiam que em conseqüência disto, Deus castigou todos nós: o homem, com o trabalho e a mulher com a escravidão e a dor, e ambos com a morte. E que Ele castigou a própria terra com espinhos, venenos e urtigas. Todas essas coisas abençoadas eles sabiam. Eles sabiam também de tudo o que Deus fazia para purificar e elevar a espécie humana. Eles sabiam tudo sobre o dilúvio; que Deus, com exceção de oito, afogou todos os seus filhos, os jovens e os velhos, desde o velho patriarca até os bebês. O jovem, a donzela, a mãe amorosa, a criança sorridente -- porque Sua misericórdia dura para sempre. Eles sabiam também que Deus afogou as bestas e os pássaros, tudo o que anda, rasteja e voa, porque seu infinito amor atinge toda a criatura. Sabiam que Deus, para civilizar seus filhos, matou vários com terremotos, destruiu muitos com tempestades de fogo, matou inúmeros com raios, milhões de fome, com epidemias, sacrificou muitos milhões nos campos da guerra. Eles sabiam que era necessário acreditar nestas coisas para amar Deus. Eles sabiam que não haveria salvação outra além da fé e do sangue reparador de Jesus Cristo. Todos os que negassem e duvidassem estariam perdidos. Viver uma vida honesta e moral, tomar conta da mulher e das crianças -- formar um lar feliz -- ser um bom cidadão, um patriota, ou simplesmente um homem sábio, tudo isso era uma maneira respeitável de ir para o inferno. Deus não recompensava homens pela honestidade, generosidade, bravura, mas pelos atos de fé. Sem fé, todas as chamadas virtudes eram pecados. E todos os homens que praticassem essas virtudes sem fé, mereceriam o sofrimento eterno. Todas estas coisas reconfortantes e racionais eram ensinadas pelos ministros em seus púlpitos -- por professores em salas de aula, e pelos pais, em casa. As crianças eram as vítimas. Elas ficavam assaltadas de pavor -- nos braços da mãe. Na época, os professores levavam adiante uma guerra contra o sentido natural das crianças, e todos os livros que elas liam eram cheios dessas verdades impossíveis. As pobres crianças eram desesperançadas. A atmosfera que respiravam era envenenada com mentiras -- mentiras que penetravam no seu sangue. Naqueles dias os ministros usavam os cultos para salvar almas e reformar o mundo. No inverno, estando a navegação interrompida, negócios eram quase totalmente suspensos. As estradas de ferro não funcionavam e os principais meios de transporte eram barcos e carruagens. As vezes as condições das estradas eram tão precárias que carruagens eram abandonadas. Não havia óperas, teatro ou diversões, além de festas e bailes. As festas eram tidas como mundanas, e os bailes, perniciosos. Para a alegria virtuosa e real, as boas pessoas dependiam dos cultos. Os sermões eram quase sempre sobre dores e agonias do inferno, sobre alegrias e êxtase do céu, salvação pela fé e a eficácia do arrependimento. As pequenas igrejas, nas quais os cultos aconteciam, eram mal ventiladas, excessivamente quentes. Os sermões emocionais, as canções tristes, os améns histéricos, a esperança do céu, provocavam em muitos a perda da pouca razão que possuíam. Eles se tornavam substancialmente insanos. Nessas condições eles sentavam no "banco das lamentações" rezavam orações de fé, tinham estranhas sensações, choravam e pensavam que tinham "nascido de novo". Então eles contavam sua história. Como tinham sido maus. Como tinham tido maus seus pensamentos, seus desejos, e como tinham mudado repentinamente. Eles relatavam a história de uma velha mulher que, contando sua experiência, disse: "Antes de me converter, de dar meu coração a Deus, eu costumava mentir e roubar. Mas agora, graças ao sangue de Jesus Cristo eu me livrei disso tudo". Obviamente, nem todos pensavam desta maneira. Havia alguns que ridicularizavam. E uma vez ou outra, alguém tinha coragem suficiente de dar gargalhadas das ameaças do padre e de escarnecer do inferno. Alguns falavam de não crentes que haviam vivido e morrido em paz. Quando era criança ouvi um deles falar de um velho fazendeiro em Vermont. Ele estava morrendo. O ministro estava na beira de sua cama e perguntou se era cristão. Se estava preparado para morrer. O velho respondeu que não havia feito nenhuma preparação. Não era cristão -- que em sua vida não fizera mais que trabalhar. O padre respondeu que não poderia lhe dar qualquer esperança a não ser que acreditasse em Cristo, e que se não tivesse nenhuma fé, sua alma estaria perdida. O velho não estava amedrontado. Estava perfeitamente calmo. Com sua voz fraca e entrecortada ele disse: "Sr. Reverendo, eu acho que o senhor conhece minha fazenda. Minha mulher e eu viemos para cá há mais de cinqüenta anos. Éramos recém-casados. Lá só tinha mato e a terra era coberta de pedras. Eu cortei o mato, queimei os galhos, tirei as pedras e aplainei o terreno. Minha mulher costurava e tecia, e trabalhava o tempo todo. Criamos e educamos nossas crianças. Esquecemos de nós mesmos. Durante todos esses anos minha mulher nunca possuiu um vestido ou um chapéu decente. Eu nunca tive uma roupa boa. Vivíamos para comer. Nossas mãos e corpos ficaram deformados pelo trabalho. Nunca tivemos férias. Nós nos amamos e amamos nossos filhos. É o único luxo que temos. Agora estou perto da morte e o senhor vem perguntar se estou preparado. Senhor Reverendo, eu não tenho nenhum medo do futuro, nem terror de outros mundos. Pode até existir lugar como o inferno -- mas se existe, o senhor nunca vai me fazer acreditar que seja pior do que nosso velho Vermont". Então me contaram de um homem que comparava a si próprio com um cachorro: "Meu cão," ele dizia, "só sabe latir e brincar. Tem tudo o que quer para comer. Ele nunca trabalha. Não tem qualquer preocupação com negócios. Dentro de pouco tempo morrerá e isso é tudo. Eu trabalho com todo meu esforço. Não tenho tempo para diversões. Tenho problemas todos os dias. Em pouco tempo, morrerei, e então irei para o inferno. Preferia ter nascido um cão". Então, quando a estação do frio terminava, enquanto a neve desaparecia, os cultos continuavam, quando o silvar dos barcos a vapor era ouvido, quando o frio ia embora, os negócios reiniciavam, as almas recém-convertidas retornavam à sua vida habitual. Mas no inverno seguinte estavam eles novamente prontos para "nascer de novo". Eles pareciam um elenco de teatro, representando os mesmos papéis a cada temporada. Os ministros que pregavam nos cultos eram sérios. Eram sinceros e cuidadosos. Não eram filósofos. Para eles Ciência representava uma distante ameaça. Um inimigo perigoso. Não sabiam muita coisa mas tinham muitas convicções: para eles, o inferno era uma realidade. Podiam até ver as chamas e a fumaça. O diabo era uma figura real. Era uma pessoa de fato, um rival de Deus, um inimigo da Humanidade. Acreditavam que o grande objetivo da vida era salvar nossas almas. E todos deveriam resistir, e desprezar os prazeres dos sentidos e manter o olhar fixo nas portas de ouro da Nova Jerusalém. Eram impassíveis, emotivos, histéricos, odiosos, fanáticos, amorosos e insanos. Eles realmente acreditavam que a Bíblia era a palavra de Deus. Um livro sem erros nem contradições. Eles chamavam suas crueldades de justiça. Seus absurdos, mistérios. Seus milagres, fatos. E suas passagens idiotas, profundamente espirituais. Eles descreviam os sofrimentos, a infinita agonia dos perdidos, e mostravam como era fácil evitar tudo isso, como o céu seria facilmente obtido. Eles pediam aos ouvintes que acreditassem, que tivessem fé, que dessem seus corações a Deus, seus pecados a Cristo, que iriam expiar seus pecados e deixar sua almas mais brancas que a neve. Em tudo isso os clérigos realmente acreditavam. Eles estavam absolutamente certos. Em suas mentes o diabo havia tentado em vão semear as sementes da dúvida. Em ouvi centenas desses sermões evangélicos. Ouvi centenas das mais assustadoras e terríveis descrições das torturas e aflições no inferno, do horrível estado dos perdidos. Eu supunha que aquilo que ouvia era verdade mas não acreditava naquilo. Eu dizia: "É verdade!". E logo depois, pensava: "não pode ser!". Esses sermões deixaram lembranças permanentes na minha memória. Mas não me convenciam. Eu não tinha qualquer desejo de ser "convertido". Não queria um "novo coração" e não queria "nascer de novo". Mas um dia ouvi um sermão que tocou meu coração: deixou uma marca, como uma cicatriz no meu cérebro. Um dia fui com meu irmão assistir a uma pregação de um pastor batista. Era um homem alto, vestido como um fazendeiro, mas era um grande orador: poderia pintar um quadro com palavras. Ele tomou para seu texto a parábolas do "rico e Lázaro". Descreveu Dives, o homem rico, sua maneira de viver, seus excessos, que ele ridicularizou, suas extravagâncias, suas noitadas, suas roupas de tecido fino, suas festas, seus vinhos e suas belas mulheres. Então ele descreveu Lázaro e sua pobreza, seus trapos, sua feiúra, seu pobre corpo comido pelas doenças, as crostas e escaras a devorarem-no, até os cães tinham piedade dele. Ele descreveu sua vida solitária, sua morte sem amigos. Então, mudando seu tom de voz de piedade para triunfo, de lágrimas para gritos de exaltação, de derrota para vitória, ele descreveu a gloriosa companhia dos anjos, que com suas brancas asinhas carregaram a alma do miserável para o Paraíso, para o seio de Abraão. Então, mudando sua voz para escárnio e raiva, ele descreveu a morte do rico. Ele estava num palácio deitado no seu sofá, o ar perfumado, o quarto preenchido por serviçais e médicos. Seu ouro então, não tinha qualquer valor. Ele não podia comprar uma outra vida. Ele morreu e no inferno abriu os olhos, em tormento. Então, assumindo uma atitude dramática, o Pastor colocou sua mão direita no ouvido e cochichou: "Ouçam! Eu ouço a voz do homem rico. O que ele diz? Ouçam! - Pai Abraão, pai Abraão! Eu peço a ti que mande Lázaro molhar seu dedo em água e umedecer meus lábios secos! Porque eu estou sofrendo nestas chamas!" "Oh, meus ouvintes, o rico está fazendo este pedido há mais de mil e oitocentos anos. E em milhões de anos esses lamentos ainda atravessarão o abismo que separa os salvos e os perdidos e ainda serão ouvidos: "Pai Abraão! Pai Abraão! Eu peço a ti que mande Lázaro molhar seu dedo em água e umedecer meus lábios secos! Porque eu estou sofrendo nestas chamas!" Pela primeira vez entendi o dogma do sofrimento eterno. Pela primeira vez tive noção da profundidade e extensão do horror cristão. E eu disse: Isto é uma mentira e eu odeio tua religião! Se isto é verdade, odeio também teu Deus!" Desde aquele dia deixei de ter medos ou dúvidas. Para mim, naquele dia as chamas do inferno se extinguiram. A partir daquele dia passei a detestar todo o tipo de crença ortodoxa. II Desde minha infância liam para mim ou eu mesmo lia a Bíblia. De manhã e à noite o livro sagrado era aberto e rezávamos. A Bíblia foi minha primeira história e os Judeus, meu primeiro povo, e os fatos narrados por Moisés e outros escritores inspirados, e aquelas descrições dos profetas eram tudo coisas importantes. Em outros livros eram descritos os pensamentos e sonhos de homens, mas a Bíblia continha a verdade de Deus. Entretanto, apesar do meu ambiente, da minha educação, eu não amava Deus. Ele era tão sem misericórdia, tão generoso em assassinatos, tão sedento de matanças, tão disposto a destruir, que eu O odiava com todo o meu coração. Sob seu comando, bebês eram despedaçados, mulheres violadas, e os cabelos brancos de velhos trêmulos, manchados de sangue. Esse Deus visitava famílias com epidemias, cobria as ruas de mortos e moribundos, deixou bebês passar fome agarrados aos seios vazios de suas mães, ouvia seus choros, via suas lágrimas, as bochechas murchas, os olhos sem visão, via as covas recentemente abertas, e continuou tão impiedoso como as pestes. Esse Deus suspendeu as chuvas, semeou a fome, viu os olhos tristes dos famintos, suas formas esquálidas, seus lábios pálidos, viu mães devorando bebês, e permaneceu tão feroz como a fome. Parece-me impossível para o homem civilizado amar ou adorar ou respeitar o Deus do Velho Testamento. Um homem realmente civilizado, uma mulher realmente civilizada deve encarar esse Deus com horror e desprezo. Mas nos velhos tempos as boas pessoas justificavam Jeová no seu tratamento aos infiéis. Os hereges assassinados eram idólatras, não merecedores da vida. De acordo com a Bíblia, Deus nunca se revelou a esses povos e sabia que sem sua revelação eles não poderiam saber qual o verdadeiro Deus. Como classificá-los então como hereges? Os cristãos afirmam que Deus tinha o direito de matá-los porque os tinha criado. Então, para que os criou? Ele sabia, quando os criou que eles seriam alimento para a espada. Ele sabia que teria o prazer de vê-los ser assassinados. Como uma última resposta, como uma desculpa, os adoradores de Jeová afirmam que todas aquelas coisas horríveis aconteceram sob "velha ordem", sob lei inevitável, e justiça absoluta, mas agora, sob "nova ordem", tudo já estaria mudado, a espada da justiça já estaria embainhada, o amor tinha assumido. No Velho Testamento, eles diziam, Deus era o Juiz. Mas no Novo, Cristo é piedoso. Mas na verdade, o Novo Testamento é infinitamente pior que o Velho. No Velho não há qualquer ameaça de sofrimento eterno. Jeová não possuía uma prisão eterna. Nenhum fogo eterno. Suas maldades terminavam na sepultura. Sua vingança estava satisfeita logo que o inimigo estivesse morto. No Novo Testamento a morte não é o fim, mas o início de uma punição sem fim. No Novo Testamento a malícia de Deus é infinita e a fome de vingança, eterna. O Deus ortodoxo, quando vestido em carne humana, disse a seus discípulos para resistir à maldade, amar seus inimigos, e quando esbofeteado numa face, que oferecessem a outra. E nós sabemos que esse mesmo Deus, com esses mesmos lábios ternos, exclamou estas cruéis e impiedosas palavras: "Apartai-vos de mim, malditos. Danai-vos no fogo eterno. Preparai-vos para o diabo e seus anjos". (Mat. 25:41). Estas são as palavras do "amor eterno". Nenhum ser humano tem imaginação suficiente para conceber esse infinito horror. Tudo o que a espécie humana tem sofrido na guerra, na fome, nas epidemias, no fogo e nas enchentes, Todas as desgraças de todas as dores e de todas as doenças, isto tudo é nada se comparado às agruras do sofrimento eterno da alma. Este é o consolo da religião Cristã. Esta é a justiça de Deus. A misericórdia de Cristo. Este dogma assustador, esta mentira infinita, fez de mim um inimigo implacável do Cristianismo. A verdade é que a crença na dor eterna tem sido o verdadeiro perseguidor. Ela criou a Inquisição, forjou as correntes, construiu as estacas das fogueiras. Ela escureceu as vidas de milhões. E fez os berços tão terríveis como os esquifes. Escravizou nações e derramou o sangue de muitos milhares. Sacrificou os mais sábios, os mais corajosos, os melhores. Subverteu a idéia de justiça, tirou o perdão do coração, transformou homens em maus e baniu a razão de seus cérebros. Como uma serpente venenosa ela rasteja, enrosca-se e silva em todo credo ortodoxo. Transformou o homem numa eterna vítima e Deus num eterno carrasco. Este é um infinito terror. Em toda igreja o que se ensina é uma maldição bíblica. Todo o Pastor que a prega é um inimigo da Humanidade. Abaixo dos dogmas cristãos, selvageria não existe. É uma infinidade de malícia, ódio e vingança. Nada poderia ser pior que o horror do inferno do que o seu criador, Deus. Enquanto eu viver, enquanto eu respirar, eu negarei com todas as minhas forças. E odiarei até a última gota de meu sangue esta mentira infinita. Nada me dá tanta alegria do que esta crença no sofrimento eterno está-se tornando mais fraca a cada dia. Que milhares de Pastores se envergonham disso. Isto me dá alegria em saber que a Cristandade está se tornando piedosa. Tão piedosa que o fogo do inferno está queimando mais brando. Tremula mais fraco e isto indica que logo se extinguirá para sempre. Por séculos o Cristianismo era uma casa de loucos. Papas, Cardeais, Bispos, Padres, Monges e hereges. Eram todos insanos. Apenas alguns -- quatro ou cinco num século, tinham cérebro e corações em ordem. Apenas alguns, apesar dos rugidos e do barulho, apesar dos choros, ouviam a voz da consciência. Apenas alguns, na fúria selvagem da ignorância, medo e fervor, permaneciam perfeitamente calmos, como a sabedoria manda. Nós avançamos. Em poucos anos o Cristianismo estará -- assim esperamos -- humano e sensível o suficiente para negar os dogmas que enchem anos sem fim com a dor. Eles têm que saber que esses dogmas são inconsistentes com a sabedoria, a justiça, com a bondade do seu Deus. Eles devem saber que sua crença no inferno leva ao Espírito Santo -- a pomba -- o bico de um abutre, e enche a boca do cordeiro de Deus com as presas de uma víbora. III Em minha juventude lia livros religiosos -- livros sobre Deus, sobre o arrependimento -- sobre a salvação pela fé e sobre outros mundos. Fiquei familiar com os comentadores -- com Adam Clark, que achava que a serpente havia seduzido nossa mãe Eva, e era de fato o pai de Caim. Ela também acreditava que os animais, quando na arca, mudaram suas naturezas de tal modo que consumiam palha e conviveram alegremente todos juntos -- então, prenunciando o milênio abençoado. Li Scott, que era um Teólogo tão natural que acreditava na história de Phaeton -- dos cavalos selvagens voando pelos céus -- e corroborando a história de Josué parando o sol e a lua. Então li Henry e MacNight e descobri que Deus amava tanto o mundo que despertou Sua mente para destruir a maioria dos seres humanos. Li Cruden que fez a grande Concordância e fez os milagres tão pequenos e prováveis como pôde. Lembro-me que ele explicava o milagre de alimentar os judeus andarilhos com codornizes, afirmando que nesse mesmo dia o céu no Mar Vermelho foi cruzado por milhares de codornizes. E que as que se encontravam cansadas, pousavam sobre barcos em tão grande número que alguns barcos afundavam. O fato de que a explicação é tão difícil de acreditar quanto o milagre não fez qualquer diferença para o devoto Cruden. Depois li as regras de Calvino, um livro calculado para produzir em qualquer mente natural, considerável respeito pelo diabo. Li as evidências de Paley e entendi a evidência da ingenuidade em produzir o mal, em planejar a dor, era tão menos real que a evidência de tender a mostrar o uso da inteligência na criação do que chamamos o bem. Você sabe que o argumento do relógio foi o maior esforço de Paley. Um homem acha um relógio e o acha tão maravilhoso que conclui que ele tem que ter um relojoeiro. Ele encontra o relojoeiro e conclui que este é tão maravilhoso que tem que ter também um Criador. Então ele encontra Deus, o Criador do homem. E Ele é tão mais maravilhoso que o homem que não pode ter um Criador. Isto é o que os advogados chamam de 'desistência na apelação'. De acordo com Paley, não pode haver criação sem criador -- mas pode haver um Criador sem ter sido criado. A maravilha do relógio, sugere o relojoeiro. A maravilha do relojoeiro, sugere o criador. E a maravilha do criador demonstra que Ele não foi criado. Mas era sem causa e eterno. Tivemos Edward em "A vontade", em que o reverendo autor lembra que a necessidade não tem efeito na explicabilidade -- e quando Deus cria um ser humano, no mesmo momento determina o que aquele ser deverá fazer e ser, o ser humano é responsável, e Deus, na sua infinita justiça e misericórdia tem o direito de torturar a alma deste ser humano para sempre. E então Edward afirma que ama Deus. O fato é que se você acredita num Deus infinito e também na punição eterna, você deve admitir que Edward e Calvino estavam absolutamente certos. Não há como escapar de suas conclusões se você aceitar suas premissas. Eles eram infinitamente cruéis, suas premissas infinitamente absurdas, seu Deus infinitamente cruel, e sua lógica, perfeita. E eu tenho a ternura e a candura suficiente para dizer que Calvino e Edward eram ambos insanos. Nós temos abundância de literatura teológica, Houve Jenkin e o arrependimento, que demonstrou a sabedoria de Deus em permitir uma maneira na qual o sofrimento de inocência poderia justificar a culpa. Ele tentou mostrar que crianças poderiam ser punidas pelos pecados dos seus ancestrais, e que os homens, se tiverem fé poderão ser com justiça ter crédito com a virtudes dos outros. Nada poderia ser mais ortodoxo, devotado e idiota. Mas nem toda a Teologia foi escrita em prosa. Nós tivemos Milton com sua celestial milícia com seu Deus desajeitado e seu diabo ardiloso. Suas guerras entre imortais, e todo o sublime absurdo que a religião forjou no cérebro de um homem cego. A Teologia ensinada por Multon era querida para um coração puritano. Foi aceita na Nova Inglaterra e envenenou as almas e arruinou as vidas de milhares. O gênio de Shakespeare não poderia fazer a Teologia de Milton poética. Na literatura do mundo não há nada, fora os "livros sagrados", tão perfeitamente absurdo. Nós temos os "Pensamentos noturnos" de Young e suponho que o autor era um devoto e amava os seguidores do Senhor. Entretanto, Young tinha grande desejo de se tornar Bispo, e para conseguir este intento, ele se aproximou da senhora do rei. Em outras palavras, era um grande hipócrita. Em "Pensamentos noturnos" não há uma linha genuinamente honesta. É fingimento, do início ao fim. Ele não escreveu o que pensava, mas o que ele achava que devia pensar. Nós temos o "Curso do tempo" de Pollock, com seus vermes que nunca morrem. Com suas chamas infindáveis, agonias intermináveis, demônios espreitando, seu Deus sádico. Este poema assustador poderia ter sido escrito num hospício. Nele você ouve todos os choros e gemidos dos maníacos, quando eles rasgam as carnes uns dos outros. É tão diabólico, tão sem coração, tão horrível como o capítulo trinta e dois do Deuteronômio. Nós todos conhecemos o belo hino começando com: "ouçam das tumbas, um som lúgubre". Nada mais apropriado para crianças. É para se ter um esquife onde deveria estar um berço. Quando uma mãe acalenta seu filho, é como se um túmulo se abrisse a seus pés. Isto tornaria seu bebê sério, reflexivo, religioso e infeliz. Deus odeia a risada e despreza a alegria. Para se sentir livre, despreocupado, alegre, para esquecer a morte, para se sentir preenchido pelo sol, e sem medo da noite, para esquecer o passado e ter o pensamento no futuro, sem sonhos com Deus, ou céu, ou inferno, ser intoxicado com o presente, ser consciente apenas do abraço e do beijo daqueles que você ama, estes são os pecados contra o Espírito Santo. Mas temos os poemas de Cowper. Este era sincero. Era o oposto de Young. Tinha um olho observador, um coração gentil, e um senso artístico. Simpatizava com todos os que sofriam. Com os prisioneiros, escravos, os excluídos. Amava o belo. Mesmo assim, a crença na punição eterna fez desta alma adorável também um insano. Mesmo com ele, as "Boas novas da alegria" extinguiu a grande estrela da esperança e deixou seu coração partido na escuridão do desespero. Temos muitos volumes de sermões ortodoxos cheios de ódio e terror do julgamento que virá -- sermões que foram proferidos pelos santos selvagens. Temos o livro dos mártires, mostrando que os cristãos imitaram por muitos séculos o Deus que eles adoravam. Temos a história dos Waldenses. Da reforma da Igreja. Temos o progresso do Peregrino, o chamado de Baxter, a analogia de Butler. Para usar a frase ocidental da salvação, descobri que Bispo Butler criou mais serpentes do que matou. Sugeriu mais dificuldades do que resolveu. Mais dúvidas do que explicações. Entre esses livros, minha juventude se passou. Todas essas sementes da Cristandade -- da superstição, eram semeadas em minha mente, e cultivadas com muita diligência e cuidado. IV Em todo esse tempo, não sabia nada de ciência. Nada sobre o outro lado. Nada das objeções que eram necessárias contra as Sagradas Escrituras, ou contra o perfeito Credo Congregacional. Claro que tinha ouvido o pastor falar de blasfemadores, de maus infiéis, de gente debochada que ria das coisas sagradas. Eles não respondiam seus argumentos, mas eles retalhavam seu caráter com fúria que eles faziam o trabalho do diabo. E então, apesar de tudo o que eu tinha ouvido, tudo que havia lido, eu não podia acreditar. Meu cérebro e coração diziam não. Em pouco tempo eu deixei os sonhos, as insanidades, as ilusões, os pesadelos da Teologia. Estudei um pouco de Astronomia -- só um pouco. Examinei os mapas do céu, aprendi os nomes de algumas constelações e de algumas estrelas. Entendi seus tamanhos e as velocidades com as quais giram, obtendo algumas noções dos espaços astronômicos. Descobri que muitas estrelas estão a uma distância tão gigantesca que sua luz, viajando a uma velocidade de trezentos mil quilômetros por segundo, demoraria muitos anos para atingir nosso pequeno mundo. Descobri que, comparado às grandes estrelas, nosso mundo não é mais que um pequeno grão de areia, ou um átomo, descobri que as velhas crenças que os donos do céu haviam criado para nós na terra eram o mais infinito absurdo. Comparei o que realmente se conhecia a respeito das estrelas com o que se sabia da criação contada no Gênesis. Descobri que os inspirados escritores sagrados não sabiam nada de Astronomia. Que eram tão ignorantes como um chefe dos Choctaw. Ou como um esquimó que conduz cães. Alguém imagina que o autor do Gênesis tivesse algum conhecimento sobre o sol? Sobre seu tamanho? Tinha conhecimentos sobre Sirius, a Estrela Polar, Capela? Ou sobre as galáxias, tão distantes de nós que sua luz passa milhões de anos para visitar nossos olhos? Se eles soubesse destes fatos, iriam afirmar que Jeová criou este mundo em seis dias, e que em apenas numa parte da tarde do quarto dia Ele fez o sol, a lua e todas as estrelas? E mesmo assim, milhões de pessoas insistem que esse escritor do Gênesis era inspirado pelo Criador de todos os mundos. Agora, homens inteligentes que não têm pavor, cujos cérebros não foram paralisados pelo medo, sabem que a história sagrada foi escrita por um selvagem ignorante. Eu admito que esse desconhecido fosse sincero, que ele escreveu o que achava que fosse a verdade. Que fez o melhor que pôde. Ele não afirmou ser inspirado -- não fingiu que a historia tivera sido contada a ele por Jeová. Ele apenas contou os "fatos" como ele os entendia. Depois que aprendi um pouco sobre as estrelas, concluí que este escritor, que este escriba "inspirado" enganou-se através de mitos e lendas, que ele não sabia mais sobre a criação do que os Teólogos dos nossos dias. Em outras palavras, ele não sabia absolutamente nada. E agora, vou dizer que aqueles Clérigos me que respondem estão mirando suas armas na direção errada. Esses Reverendos deveriam atacar os Astrônomos. Deveriam amaldiçoar e vilificar Kepler, Newton, Herschel e Laplace. Esses homens foram os verdadeiros destruidores das histórias sagradas. Então, depois de livrar-se deles, deveriam iniciar uma guerra contra as estrelas, e contra o próprio Deus, por deixar pistas que depõem contra a verdade desse livro. Então estudei Geologia. Não muito, só noções. Só o suficiente para encontrar uma maneira geral de como os fatos foram descobertos, e algumas das conclusões a que chegaram. Aprendi alguma coisa sobre a ação do fogo. Da água, sobre a formação das ilhas e continentes. Sobre os sedimentos e rochas, sobre as medições com carbono, sobre as encostas calcárias os recifes de corais, sobre os depósitos feitos pelos rios, sobre os efeitos dos vulcões, o gelo glacial, e todo o mar circundante; só o suficiente para saber que as rochas são muitos milhões de anos mais antigas que a grama abaixo dos meus pés. O suficiente para saber que nosso globo vem girando continuamente ao redor do sol, entre sombra e luz por centenas de milhões de anos, o suficiente para saber que aquele escritor "inspirado" não sabia nada sobre a história da terra, nada sobre as forças da natureza, do vento, das ondas, do fogo, forças que eram construídas de destruídas continuamente durante um tempo incalculável. E deixem-me dizer aos sacerdotes que eles não deveria perder seu tempo respondendo a mim. Deveriam atacar os Geólogos. Deveriam negar os fatos que foram descobertos. Deveriam lançar suas maldições sobre os mares blasfemantes. E bater suas cabeças contra rochas infiéis. Então, estudei Biologia -- não muito -- só o suficiente para saber das formas animais, saber que na época das rochas laurencianas a vida já existia. Que ferramentas de pedra, ferramentas produzidas por mãos humanas, haviam sido encontradas junto de ossadas de animais extintos. Ossos que haviam sido esmigalhados por aquelas ferramentas. E que esses animais haviam sido extintos centenas de milhares de anos da criação de Adão e Eva. Então eu fiquei certo de que as escrituras "inspiradas" eram falsas. Que milhões de pessoas vinham sendo enganadas e que tudo o que era ensinado sobre a origem do mundo era pura mentira. Senti que sabia que o Velho Testamento era o trabalho de homens ignorantes -- que era uma mistura de verdades e erros, de sabedoria e idiotice, de crueldade e bondade, de Filosofia e absurdos -- que ela continha alguns pensamentos elevados, alguma poesia, um bom número de ditos solenes e lugares-comuns, -- alguns histéricos, outros suaves, algumas orações maldosas, algumas previsões insanas, algumas alucinações, e alguns sonhos caóticos. É claro que os Teólogos lutaram contra os fatos descobertos pelos Geólogos, pelos Cientistas, e tentaram sustentar as Sagradas Escrituras. Tentaram confundir ossos de mastodontes com os de seres humanos, alegando orgulhosamente que eram gigantes que existiam naqueles tempos. Alguns afirmaram que os ossos haviam sido ali colocados por Deus para testar nossa fé, ou que o diabo havia imitado o trabalho do Criador. Responderam aos Geólogos afirmando que no Gênesis os dias eram longos períodos de tempo, e que na verdade o dilúvio poderia der sido um fenômeno local. Disseram aos Astrônomos que o sol e a lua havia sido não realmente, mas só aparentemente parados. E que a aparência se devia a fenômenos de reflexo e refração da luz. Desculparam a escravidão e a poligamia, as pilhagens e assassinatos acontecidos no Velho Testamento dizendo que aquelas pessoas eram tão degradadas que Jeová tinha sido obrigado a por fim à sua ignorância e maldade. A todo momento os Clérigos tentaram evadir-se dos fatos, escamotear a verdade e preservar a fé. No princípio eles simplesmente negavam os fatos -- depois os diminuíam -- depois se harmonizavam com eles. Depois negavam que os haviam negado. Então eles modificaram o significado dos livros "inspirados" para se adaptar aos fatos. No início afirmaram que se os fatos relatados fossem verdadeiros, a Bíblia seria falsa e o Cristianismo seria uma superstição. Depois admitiram que os fatos, eram verdadeiros e que eles comprovavam, acima de qualquer dúvida a inspiração da Bíblia e a origem divina da religião ortodoxa. Qualquer coisa da qual não podiam se esquivar, engoliam. E qualquer coisa que não engoliam, esquivavam-se. Desisti de acreditar no Velho Testamento por causa de seus erros, de seus absurdos, sua ignorância, suas crueldades. Desisti de acreditar no Novo porque ele testemunhava a verdade do Velho. Desisti do Novo devido aos seus milagres, suas contradições, porque Cristo e seus discípulos acreditavam em demônios -- conversavam e barganhavam com eles, expulsavam-nos de pessoas e animais. Isto, por si só já diz tudo. Sabemos que demônios não existem. Cristo nunca os expulsou. E se fingiu fazê-lo, ele era ou ignorante, desonesto ou insano. Essas histórias sobre demônios atestam a origem humana e supersticiosa do Novo Testamento. Rejeito o Novo Testamento porque ele recompensa a credulidade, castiga homens bravos e honestos, e porque ele ensina o infinito horror do castigo eterno. V Tendo passado minha juventude lendo livros religiosos -- sobre a "ressurreição" -- a desobediência dos nossos pais primitivos, o arrependimento, a salvação pela fé, a maldade do prazer, as conseqüência degradante do amor, a impossibilidade de atingir o céu de pessoas honestas e generosas, tornando-me cansado dos pensamentos confusos e esfarrapados, você pode imaginar a satisfação que senti ao ler os poemas de Robert Burns. Eu estava familiar com as escrituras dos devotos e mentirosos, os piedosos e petrificados, os puros e impiedosos. Aqui estava um homem naturalmente honesto. Já conhecia os escritos dos homens que consideravam a natureza depravada, que encaravam o amor como testemunha perpétua do pecado original. Aqui estava um homem que tirava alegria da lama, fazia mulheres caipiras deusas, e entronizava o homem honesto. Aquele que, com simpatia, braços aconchegantes, abraçava toda forma sofredora de vida, que odiava escravidão de qualquer tipo, que era tão natural como o azul do céu, com humor tão suave como o outono, com uma inteligência tão aguçada como a lança de Ithuriel, com uma irreverência tão devastadora como o fôlego de Simão. Um homem que amava seu mundo, sua vida, as coisas do dia-a-dia, e colocava acima de tudo a êxtase excitante do amor humano. Eu li e li novamente com alegria, lágrimas e sorrisos , sentimentos que um grande coração era revelado entre as linhas. Os poetas religiosos, lúgubres, artificiais, espirituais foram esquecidos ou permaneceram como fragmentos da parte lembradas dos horrores dos sonhos monstruosos ou distorcidos. Tinha encontrado afinal o homem que desprezava a crença cruel do seu povo, e que era corajoso e sensível o suficiente para dizer: "todas as religiões são histórias da carochinha, mas o homem honesto não tem o que temer nem neste mundo nem em mundos do futuro". Um homem que teve a generosidade de escrever a Oração de São Willie, um poema que crucificava os calvinistas, e trespassou seus corações impiedosos com a lança do bom senso. Um poema que fez de qualquer crença alimento para a galhofa, um motivo para gargalhadas. Burns teve suas, fraquezas, seus defeitos. Era intensamente humano. Entretanto, preferia aparecer no "Banco dos réus" bêbado e ser capaz de dizer que sou o autor de "para que serve o homem" a ser perfeitamente sóbrio e admitir que passei a vida como um escocês plesbiteriano. Li Byron -- li seu Caim no qual, como no Paraíso perdido, o diabo parece ser o melhor deus -- li suas lindas, sublimes e amargas linhas -- li seu prisioneiro de Chillon -- seu melhor -- um poema que encheu meu coração de ternura, de piedade, e com um ódio eterno à tirania. Li a Rainha Mab de Shelley -- poema cheio de beleza, coragem, pensamento, simpatia, lágrimas e ironia, na qual uma alma corajosa derruba os muros de uma prisão e preenche suas celas com luz. Li sua Andorinha -- uma chama alada -- apaixonada como sangue -- suave como lágrimas -- pura como a luz. Li Keats, "cujo nome estava escrito na água" -- Li St. Agendes Eve, uma história escrita com tão pouca arte que este pobre mundo parece ser uma terra maravilhosa -- um vaso grego que enche a alma com todo o vívido amor, com todo o êxtase da música imaginada -- a cotovia -- a melodia na qual há memória da manhã -- a melodia que morre na escuridão e lágrimas, impingindo os sentidos com sua perfeição. E então li Shakespeare, as peças, os sonetos, os poemas -- li tudo. Senti um novo céu e uma nova terra. Shakespeare, que conhecia o cérebro e o coração do homem -- as esperanças e medos, os amores e ódios, os vícios e virtudes da espécie humana: cuja imaginação leu as imagens borradas de lágrimas, as páginas manchadas de sangue de todo o passado, viu caindo sobre os pergaminhos espalhados, a luz da esperança e do amor; Shakespeare, que sondou toda a profundidade, enquanto os picos mais altos sentiram a sombra das suas asas. Comparo as peças com os livros "inspirados" -- Romeu e Julieta com a Canção de Salomão, rei Lear com Jó, e os sonetos com os Salmos e descobri que Jeová não conhecia a arte do discurso. Comparei as mulheres de Shakespeare -- sua mulheres perfeitas -- com as mulheres da Bíblia. Percebi que Jeová não era um escultor, nem um pintor nem um artista, que ele não tinha o poder de transformar barro em carne, a arte, o sentido plástico que molda a forma perfeita -- o alento que dá a vida livre e alegre -- o gênio que cria a culpa. Os livros sagrados de todo o mundo são escórias inúteis e pedras sem valor comparadas com o ouro brilhante e as pedras preciosas de Shakespeare. VI Até então não tinha lido nada contra nossa abençoada religião exceto o que tinha encontrado em Burns, Byron e Shelley. Quase por acaso li Volney que mostrou que todas as religiões são e foram estabelecidas da mesma maneira -- que todas tinham seus Cristos, seus apóstolos, milagres e livros sagrados, e que perguntou como seria possível decidir qual seria o verdadeiro. Uma questão que ainda espera uma resposta. Li Gibbon, o maior de todos os historiadores, que moldou seus fatos tão inteligentemente como César moldou suas legiões, e aprendi que Cristianismo é apenas mais um sinônimo de Paganismo -- para as velhas religiões, tosadas da sua beleza -- que alguns absurdos têm sido substituídos por outros -- que alguns deuses foram mortos -- uma grande multidão de diabos criados, e que o inferno foi ampliado. E então li "A idade da razão" de Thomas Paine. Deixe-me falar um pouco deste sublime e elegante homem. Ele veio para este país logo antes da revolução. Ele trazia uma carta de apresentação de Benjamin Franklin, naquela época o maior americano. Em Filadélfia, Paine foi empregado para escrever numa revista, a "Revista da Pensilvânia". Sabemos que ele escreveu pelo menos cinco artigos. O primeiro era contra a escravidão, o segundo contra os duelos, o terceiro sobre o tratamento dos presos -- mostrando que o objetivo deveria ser recuperar, e não punir ou degradar -- o quarto sobre os direitos da mulher, e o quinto, sobre a formação de sociedades para proteção de crianças e dos animais. Daí você vê que ele propunha a grande reforma do nosso século. A verdade é que ele lutou durante toda a sua vida para o bem dos seus semelhantes, e fez tudo o que pode para a fundação da grande república, mais que qualquer outro homem diante da nossa bandeira. Ele deu suas opiniões sobre religião -- sobre as Sagradas Escrituras, e sobre a superstição no seu tempo. Era perfeitamente sincero e o que ele dizia era claro e honesto. A Idade da Razão encheu de ódio os corações daqueles que amavam seus inimigos, e todo o clérigo se tornou, e ainda o é, feroz inimigo de Thomas Paine. Ninguém respondeu -- ninguém quer responder, seus argumentos contra os dogmas da inspiração -- suas objeções contra a Bíblia. Ele não se levantou contra as superstições do seu tempo. Enquanto ele odiava Jeová, ele amava o Deus da Natureza, o criador e mantenedor de tudo. Nisto ele estava errado, porque, como Watson dissera em resposta a Thomas Paine, o Deus da Natureza é tão impiedoso e cruel como o Deus da Bíblia. Mas Paine foi um dos pioneiros -- um dos Titãs, um dos heróis, que orgulhosamente deram sua vida, todos os seus atos e pensamentos, para libertar e civilizar o homem. Li Voltaire. Voltaire, o maior homem deste século, que contribuiu mais para a liberdade de pensamento e de expressão que qualquer outro ser, humano ou "divino". Voltaire, que tirou a máscara da hipocrisia e encontrou abaixo do sorriso pintado as garras do ódio. Voltaire, que atacou a selvageria da lei, as decisões cruéis dos tribunais, resgatou pessoas vítimas das rodas e dos patíbulos. Voltaire, que declarou guerra contra a tirania dos tronos, a ambição e iniqüidade do poder. Voltaire, que encheu as carnes dos padres com a lança pontudas da sua sabedoria, que fez o juiz piedoso que o amaldiçoou em público, rir de si próprios em privado. Voltaire, que se juntou aos oprimidos, resgatou os desafortunados, apoiou o obscuro e o fraco, civilizou juizes, repeliu leis e aboliu a tortura em seu país natal. Em todas as direções, este incansável homem lutou contra o absurdo, o miraculoso, o supersticioso, o idiota, o injusto. Ele não tinha nenhuma reverência pelo antigo. Não tinha qualquer inclinação pela pompa e cerimonial. Pelos crimes da coroa ou pretensão de mitra. Abaixo da coroa ele encontrou um criminoso, abaixo da mitra, um hipócrita. No âmago da sua consciência, da sua razão, ele denunciou o barbarismo e os bárbaros do seu tempo. Denunciou tudo isto e seu julgamento tem sido reafirmado por todo o mundo. Voltaire acendeu a tocha e deu a outros a chama sagrada. E continuará brilhando enquanto o homem amar a liberdade e a verdade. Li Zeno, o homem que disse, séculos antes de Cristo ter nascido, que um homem não podia ser dono de outro homem. "Não importa que você afirme que seu escravo foi comprado ou capturado. Aqueles que afirmam possuir seu semelhante olham para as profundezas e esquecem da justiça que deveria governar o mundo". Tomei conhecimento de Epicurus, que ensinou a religião na utilidade, da temperança, da coragem e sabedoria, e que disse: "Por que eu deveria temer a morte? Se existo, a morte não existe. Quando ela existir, eu não mais estarei aqui. Então, por que eu temeria algo que só existirá quando eu não mais existir?". Li sobre Sócrates, quando em julgamento por sua vida, disse, entre outras coisas, para seus juizes estas maravilhosas palavras: "Não procurei durante minha vida acumular riquezas ou adornar meu corpo, mas procurei enfeitar minha alma com as jóias da sabedoria, paciência, e acima de tudo, com o amor da liberdade." Então, li sobre Diógenes, o filósofo que odiava o supérfluo -- o inimigo do desperdício e da ganância, e que um dia entrou num templo, com reverência aproximou-se do altar, esmagou um piolho entre as unhas dos seus polegares e disse solenemente: "O sacrifício de Diógenes a todos os deuses". Ele parodiou todas as crenças e colocou a essência da religião. Diógenes devia saber sobre as passagens "inspiradas" -- "Sem derramamento de sangue não há remissão dos pecados". Comparo Zeno, Epicuro e Sócrates, três pagãos miseráveis que nunca tinham ouvido falar do Velho Testamento ou dos Dez Mandamentos, com Abraão, Isaac e Jacó, três favoritos de Jeová, e eu seria depravado o suficiente para achar que os pagãos eram superiores aos patriarcas -- e ao próprio Jeová. VII Então, minha atenção se voltou para outras religiões, para os livros sagrados, os credos e cerimônias de outros países -- da Índia, Egito, Assíria, Pérsia, dos povos extintos e ainda existentes. Concluí que todas as religiões tiveram a mesma fundação -- a crença no sobrenatural -- uma força acima da natureza que o homem poderia influenciar pela adoração, sacrifício e oração.. Descobri que as religiões repousam sobre uma compreensão equivocada da natureza -- que a religião de um povo era a ciência desse povo, ou seja, sua explicação sobre o mundo, sobre a vida e morte, sobre a origem e destino. Percebi que todas as religiões tinham substancialmente a mesma origem, e que não havia mais que uma religião no mundo. As ramos e as folhas podiam mudar, mas o tronco era o mesmo. O pobre africano que dedica seu coração a deuses de pedra está no mesmo nível do clérigo bem adornado que suplica a seu Deus. Os mesmos erros, as mesmas superstições, junta os joelhos e atinge os olhos de ambos. Ambos anseiam por ajuda sobrenatural e nenhum dos dois tem a menor noção da uniformidade da natureza. Parece provável que o primeiro cerimonial religioso tenha sido a adoração do sol. O sol era o "pai do céu", o que "via tudo", a fonte de vida, o lado flamejante do mundo. O sol era considerado o deus que combatia a escuridão, a força do mal, o inimigo do homem. Houve muitos deuses-sóis e eles pareciam ser a principal divindade das antigas religiões. Eles foram adorados em muitas regiões, muitos povos que já atingiram a extinção. Apolo era um deus-sol que combateu e conquistou a serpente da noite. Baldur era um deus-sol. Era apaixonado pela manhã, uma donzela. Krishna era um deus-sol. Ao seu nascimento, o Ganges foi formado, desde sua nascente até o mar, e todas as árvores, as mortas e as viventes, floresceram em folhas e flores. Hércules era um deus-sol, e também o era Sansão, cuja força estava nos cabelos, ou seja, em sua luz. Foi tosado em sua força por Dalila, a sombra, a escuridão. Osiris, Baco, Mitra, Buda, Quetzalcoalt, Prometeu, Zoroastro, Perseu, Cadom, Lao-tsé, Fo-hi, Horus, Ramsés, eram todos deuses-sóis. Todos estes deuses tinham deus como pai e eram filhos de virgens. O nascimento de quase todos foi anunciado por uma estrela, celebrado por música celestial, e vozes declararam que tinham vindo para abençoar este pobre mundo. Todos eles nasceram em local pobre. Em cavernas, abaixo duma árvore, em hospedarias simples. Tiranos tentaram destruí-los a todos quando ainda eram bebês. Todos estes deuses-sóis nasceram no solstício de inverno. No Natal. Quase todos foram adorados por sábios magos. Todos jejuaram por quarenta dias. Todos ensinaram em parábolas. Todos experimentaram milagres. Todos tiveram uma morte violenta e todos ressuscitaram dos mortos. A história desses deuses é exatamente a história do nosso Cristo. Isto não é uma coincidência, um acidente. Cristo era um deus-sol. Cristo foi um nome novo para uma velha biografia -- uma sobrevivência. O último dos deuses-sóis. Cristo não era um homem, mas um mito. Não uma vida, mas uma lenda. Descobri que nós não apenas pegamos emprestado nosso Cristo. Mas todos os nossos sacramentos, símbolos e cerimônias foi um legado que recebemos de um passado sepultado. Não há nada de original no Cristianismo. A cruz já era um símbolo milhares de anos antes de nossa era. Era um símbolo da vida. Da imortalidade -- do cordeiro de Deus, e era já colocada em tumbas muitas eras antes de uma só linha da Bíblia ser escrita. Batismo é muito mais antigo que o Cristianismo e Judaísmo. Os hindus, egípcios, gregos, batizavam-se muito antes de um católico ter vivido. A eucaristia foi emprestada dos pagãos. Ceres foi uma deusa dos campos. Baco, o do vinho. Nas suas festas eles molhavam o pão no vinho e diziam: "Esta é a carne da deusa". Então, bebiam vinho e choravam: "Este é o sangue do nosso deus". Os egípcios tinham uma trindade. Adoravam Osíris, Ísis e Orus milhares de anos antes que o Pai, o Filho e o Espírito Santo fossem conhecidos. A árvore da vida cresceu na Índia e entre os Astecas muito antes do Jardim do Éden ser plantado. Muito antes da Bíblia ser escrita, outros povos haviam tido seus livros sagrados. Os dogmas da tentação do homem, do arrependimento e a salvação pela fé são muito mais antigos que nossa religião. Em nossos Evangelhos abençoados -- em nosso "esquema divino" -- não há nada novo, nada original. Tudo é velho -- emprestado, remendado, adaptado. Então conclui que todas as religiões foram produzidas naturalmente, e que todas eram variações, modificações de uma. Então senti que eram todas produto do trabalho do homem. VIII Os Teólogos sempre insistiram que seus deuses eram os criadores de todas as coisas vivas -- que as formas, partes, funções, cores e variedades de animais eram expressão se sua vontade, gosto e sabedoria. Que eles foram produzidos exatamente da mesma forma que existem hoje. Que ele inventou barbatanas, pernas e asas, que ele colocou para esses seres armas para o ataque, carapaças para defesa, que os adaptou para tipos de alimento e clima, levando em consideração todos os fatos relacionados com a vida. Insistiram que o homem era um tipo especial de criação, não relacionado com os animais abaixo dele. Eles também afirmaram que todas as formas de vegetação, de plantas pequenas a florestas eram exatamente iguais às formas que tinham na criação. Homens de inteligência, que em sua maior parte eram livres de preconceitos religiosos, examinaram essas coisas -- estavam procurando fatos. Examinaram fósseis de animais e plantas, estudaram formas de animais, seus ossos e músculos, os efeitos do clima e da alimentação, as estranhas modificações pelas quais eles passaram. Humboldt publicou seus estudos, preenchidos por grandes pensamentos, com esplêndidas generalizações, com sugestões que estimulavam o espírito da observação, e com conclusões que satisfaziam a mente. Ele demonstrou a uniformidade da natureza, o parentesco entre todos os seres que vivem e crescem, que respiram e pensam. Darwin, com seu "Origem das Espécies", sua teorias sobre seleção natural, a sobrevivência dos mais adaptados, a influência do ambiente, derramou uma enchente de luz sobre o grande problema das plantas e vida animal. Estas coisas têm sido pensadas, afirmadas, sugeridas por muitos outros, mas Darwin, com infinita paciência, com perfeito cuidado e candura, encontrou os fatos, preencheu as profecias, demonstrou a veracidade dos fatos, suposições e declarações. Ele foi, em meu julgamento, o mais inteligente observador, o melhor julgador dos significados e valores de um fato, o maior naturalista que o mundo já produziu. A visão teológica começou a parecer pequena e vil. Spencer mostrou sua teoria da evolução e sustentou-a através de incontáveis argumentos. Colocou-se em grande altitude, e com visão de filósofo, um profundo pensador, pesquisou o mundo. Ele tem influenciado o pensamento dos mais sábios. Teologia pareceu mais absurda do que nunca. Huxley entrou na lista por Darwin. Nenhum homem tivera melhor espada -- uma melhor bainha. Desafiou o mundo. Os grandes teólogos e os pequenos cientistas -- aquelas que tinham mais coragem que razão, aceitaram o desafio. Seus pobres corpos foram levados embora pelos amigos. Huxley teve inteligência, genialidade, e coragem para expressar suas idéias. Ele era absolutamente leal para o que ele acreditava que fosse verdade. Sem preconceito e sem medo ele seguiu os passos da vida desde as menores formas até as maiores. Teologia parecia menor ainda. Haeckel começou na mais simples célula, foi de mudança a mudança -- de forma em forma -- seguiu a linha do desenvolvimento, o caminho da vida, até atingir a espécie humana. Era tudo natural. Não havia qualquer interferência do exterior. Li os trabalhos desses grandes homens. E muitos outros. E fiquei convencido de que estavam certos, e que todos os teólogos, todos os que acreditavam na "criação especial" estavam absolutamente errados. IX Dei um passo seguinte. O que é matéria -- substância? Pode ser destruída, aniquilada? É possível conceber a destruição do mais simples átomo de substância? Ela pode ser reduzida a pó -- mudada de sólido para líquido -- de líquido a gás, mas tudo isto permanece. Nada é perdido, nada é destruído. Deixe um Deus infinito, se há algum, atacar um grão de areia -- atacá-lo com infinita força. Não poderá ser destruído. Ele não se renderá. Ele desafia todas as forças. Substância não pode ser destruída. Então dei mais um passo. Se matéria não pode ser destruída, não pode ser aniquilada, não pode ter sido criada. O indestrutível tem de ser incriável. Então perguntei a mim mesmo: o que é força? Não podemos conceber a criação da força, ou de sua destruição. Força pode ser mudada de uma forma para outra -- de movimento para calor -- mas não pode ser destruída, aniquilada. Se a força não pode ser destruída, não pode ser criada. É eterna. Outra coisa. Matéria não pode existir separadamente da força. Força não pode existir separadamente da matéria. Matéria e força só podem ser concebidas em conjunto. Isto tem sido mostrado por vários cientistas, mas mais claramente por Buchner. Mente é uma forma de força, portanto ela não poderia formar ou criar matéria. Inteligência é uma forma de força que não poderia existir separadamente da matéria. Sem matéria não poderia existir mente, vontade, força de qualquer tipo, e não poderia existir qualquer substância sem força. Matéria e força não foram criadas. Elas existem desde sempre. Não podem ser destruídas. Não houve, não há nenhum criador. Então, vem a questão; Há um Deus? Haverá um ser de infinita inteligência, força e bondade, que governa o mundo? Pode haver bondade sem muita inteligência. Mas parece-me que infinita bondade e infinita inteligência têm de estar juntas. Na natureza vejo, ou pareço ver, bem e mal -- inteligência e ignorância, bondade e crueldade, cuidado e desprezo, economia e desperdício. Vejo meios que não justificam os fins -- formas que parecem falhar. Parece-me infinitamente cruel que vida se alimente de vida -- criar animais que devorem outros. Os dentes e presas, garras e patas, que amedrontam e aprisionam, enchem-me de horror. O que pode ser mais assustador que um mundo em guerra? Todo local, um campo de batalha. Toda flor um Golgotha -- em toda gota de água, perseguição, captura e morte. Em baixo de qualquer casca de árvore, vida espreitando vida. Em qualquer lâmina de vidro, algo que mata, -- algo que sofre. Em toda a parte o forte vivendo do fraco, o superior no inferior. Em toda a parte, o fraco, o insignificante vivendo no forte, o inferior no superior. O maior, alimento para o menor, homens sacrificados como alimento de micróbios. Assassinatos em todo o universo. Em todo local, dor, doença e morte. Morte que não espera por maturidade ou cabelos brancos, mas que leva bebês e juventude feliz. Morte que leva a mãe da criança desamparada, morte que enche o mundo com tristeza e lágrimas. Como pode o cristão explicar estas coisas? Sei que a vida é boa. Lembro o sol brilhando e a chuva. Então, penso em enchentes e terremotos. Não esqueço a saúde, o lar, o amor. Mas e as epidemias e a fome? Não posso harmonizar todas estas contradições -- estas bênçãos e agonias, com a existência de um Deus infinitamente bom, sábio e poderoso. Os teólogos afirmam que o que chamamos mal é para nosso próprio benefício, que nós fomos colocados neste mundo de tristezas e pecado para desenvolver o caráter. Se isto é verdade, pergunto por que crianças morrem? Milhões e milhões respiram umas poucas vezes e desfalecem para sempre nos braços de suas mães. A estas não é permitido desenvolver o caráter. Teólogos afirmam que serpentes possuem presas para se defender nos inimigos. Por que Deus que as fez, fez também seus inimigos? E por que muitas espécies de serpentes não têm presas? Teólogos dizem que Deus fez os hipopótamos com carapaça de escamas e placas, exceto as partes inferiores para que outros animais não os ataquem. Mas o mesmo Deus fez o rinoceronte com chifres pontiagudos com os quais ele pode estripar um hipopótamo. O mesmo Deus fez a águia, o abutre, o falcão e também suas presas indefesas. Em todo lado parece haver criação para atacar criação. Se Deus criou o homem -- se é o pai de todos nós, por que ele fez os criminosos, os dementes, os deformados, os idiotas? Deverá um homem inferior agradecer a Deus? Deverá uma mãe que carrega nos seus braços uma criança idiota agradecer a Deus? O escravo tem que agradecer a Deus? Teólogos afirmam que Deus governa o vento, a chuva, o relâmpago. Então, o que dizer dos ciclones, enchentes, a seca, o raio que matam? Suponha que haja alguém neste país que controla o vento, a chuva, o relâmpago, e suponha que o elejamos para governar estas coisas, e suponha que ele faça com que todos os estados sequem e que ao mesmo tempo, desperdice água no mar. Suponha que ele permita que o vento destrua cidades e que esmague milhares de homens e mulheres, e que raios fulminem mulheres e crianças. O que diríamos? O que deveríamos achar de tal selvagem? E no entanto, de acordo com teólogos, este é exatamente o curso seguido por Deus. O que achar de um homem, que não quer, apesar de poder, ajudar seus amigos? Entretanto o Deus cristão permitiu que seus inimigos torturassem e queimassem seus amigos e adoradores. Quem terá ingenuidade suficiente para explicar isto? O que um homem, podendo prevenir, permitiria que um inocente fosse aprisionado, jogado em masmorras, para ver esvair-se sua pobre vida naquele lugar? Se Deus governa o mundo, por que a inocência não é uma perfeita proteção? Por que a injustiça triunfa? Quem pode responder estas perguntas? Em resposta, o homem inteligente e honesto deve dizer: Eu não sei. X Este Deu deve ser, se existir, uma pessoa -- um ser consciente. Quem pode imaginar uma personalidade infinita? Este Deus tem que ter força e não é concebível força independente de matéria. Este Deus tem de ser material. Ele tem de ter meios pelos quais ele transforma força no que chamamos pensamento. Quando ele pensa, usa força; força que tem de ser substituída. E nos dizem que ele é infinitamente inteligente. Se é, ele não pensa. Pensamento é uma escada, um processo pelo qual nós atingimos uma conclusão. Aquele que já sabe todas as conclusões, não pensa. Ele não pode ter esperança nem medo. Quando o conhecimento é perfeito não pode haver paixão, nem emoção. Se Deus é infinito ele não quer. Ele já tem tudo. E aquele que não quer, não faz. O infinito deve viver na calma eterna. É tão impossível conceber tal ser como imaginar um triângulo quadrado, ou um círculo sem diâmetro. E no entanto nós somos ensinados a amar esse Deus. Podemos amar o desconhecido, o inconcebível? Poderá ser nossa obrigação amar alguém? É nossa obrigação agir com justiça, honestidade, mas não pode ser nossa obrigação amar. Não podemos ser obrigados a admirar uma pintura -- a apreciar um poema -- ou amar uma música. Admiração não pode ser controlada. Gosto e amor não são dependentes da vontade. Amor é, e deve ser livre. Ele surge do coração como o perfume de uma flor. Por milhares de anos homens têm tentado amar os deuses -- tentando amaciar seus corações, tentando obter sua ajuda. Vejo todos eles. O panorama passa na minha frente. Vejo-os com as mãos estendidas -- com olhos respeitosamente fechados -- adorando o sol. Vejo-os curvando-se, no seu medo e necessidade, diante de pedras -- implorando a serpentes, bestas e árvores sagradas -- rezando para ídolos de pedra e madeira. Vejo-os construindo altares para forças invisíveis, manchando-os com o sangue de crianças e de animais. Vejo os sacerdotes e ouço seus cânticos solenes. Vejo as vítimas moribundas, os altares esfumaçados, os incensadores balançando, a fumaça subindo. Vejo homens semi-deuses -- os cristãos penitentes, em muitos países. Vejo notícias de coisas comuns da vida transformando-se em milagres, à medida que se espalham de boca em boca. Vejo profetas loucos lendo livros secretos do destino através de sinais e sonhos. Vejo todos eles -- os assírios recitando as orações de Ashnur e Ishtar -- os hindus adorando Brahma, Vishnu e Draupadi, os braços brancos -- os caldeus oferecendo sacrifícios a Bel e Hea -- os egípcios curvando-se para Ptah e Ftah, Osíris e Ísis -- os medas aplacando a tempestade -- adorando o fogo -- os babilônios suplicando a Bel e Murodach -- vejo todos eles à beira do Eufrates, do Nilo, do Tigre, o Ganges. Vejo os gregos construindo templos a Zeus, Netuno e Vênus. Vejo os romanos ajoelhando-se para centenas de deuses. Vejo outros construindo ídolos e depositando neles todas as suas esperanças e medo, Vejo as multidões boquiabertas recebendo como verdades os mitos e fábulas de tempos passados. Vejo-os dando suas ferramentas, suas fortunas para vestir o sacerdote, para construir os telhados abobadados, as naves espaçosas, as cúpulas elevadas. Vejo-os esfarrapados, amontoados em cabanas, devorando migalhas e restos, porque tinham dado o melhor para fantasmas e deuses. Vejo-os construindo suas crenças horríveis e enchendo o mundo de ódio, guerras e morte. Vejo-os com suas faces empoeiradas nos anos negros da peste e da morte súbita, quando bochechas eram murchas e lábios eram pálidos por falta de pão. Ouço suas rezas, seus suspiros, suas lamentações. Vejo-os beijar lábios inconscientes enquanto suas lágrimas mornas molham a face pálida do morto. Vejo as nações crescerem e decaírem. Vejo-as serem capturadas e escravizadas. Vejo seus altares desmoronarem como a terra comum, seus templos se desmanchando até virar pó. Vejo seus deuses envelhecerem, enfraquecerem, adoecerem e desaparecerem. Vejo-os caindo de tronos nevoentos desamparados e mortos. Os adoradores não recebiam qualquer ajuda. A injustiça triunfava. Trabalhadores eram pagos com chicote -- bebês, vendidos, -- inocentes colocados no patíbulo, os heróis queimando em chamas. Vejo os terremotos destruindo, os vulcões transbordando, os ciclones devastando, as enchentes destruindo, os raios matando. As nações pereceram. Os deuses morreram. As ferramentas e as riquezas, perdidas. Os templos haviam sido construído em vão, e as preces não respondidas morreram no ar. Então perguntei a mim: há uma força sobrenatural -- uma mente arbitrária, um Deus entronizado -- um ente supremo que faz oscilar as marés e ventos, do qual tudo depende? Não nego. Eu não sei -- mas não acredito. Acho que o natural é o supremo -- que da cadeia infinita nenhum elo pode ser quebrado -- que não há qualquer ser sobrenatural que responda às preces. Nenhuma força que se adore pode modificar as coisas -- nenhuma força que cuide do homem. Acredito que com braços infinitos a natureza abrace o tudo -- que não há qualquer interferência -- qualquer possibilidade -- que atrás de qualquer fato estão as necessárias e incontáveis causas e além de qualquer fato, os necessários e incontáveis efeitos. O homem deve proteger a si próprio. Ele não pode depender do sobrenatural -- do imaginário pai do céu. Ele pode se proteger compreendendo os fatos da natureza, desenvolvendo sua mente, até o ponto em que ele poderá suplantar as dificuldades e tirar benefícios das forças da natureza. Há um Deus? Não sei. O homem é imortal? Não sei. Uma coisa eu sei, e é que nem a esperança, nem o medo, crença, negação, podem mudar os fatos. As coisas são como são, e serão como deverão ser. Nós esperamos e temos esperanças. XI Quando me tornei convencido de que o Universo é natural -- que todos os deuses e fantasmas eram mitos, entraram na minha mente, na minha alma, em cada gota do meu sangue, o senso, o sentimento e a alegria da liberdade. Os muros da prisão racharam e caíram. As masmorras foram invadidas pela luz, e todas as travas, as algemas, as barreiras, viraram pó. Eu não era mais um servo, um servente ou um escravo. Não havia mais para mim nenhum mestre em todo este gigantesco mundo -- nem mesmo no espaço infinito. Eu estava livre -- livre para pensar, para expressar meus pensamentos, livre para viver meu próprio ideal, livre para viver para mim e para aqueles que amo. Livre para rejeitar toda e qualquer crença cruel e ignorante, todos os "livros sagrados" que selvagens ignorantes produziram, e todas as bárbaras lendas do passado, livre de papas e padres, livre de todos os "chamados" e dos "excluídos", livre dos erros santificados e das mentiras santas, livre do medo de sofrimento eterno, livre dos monstros alados da noite -- livre de diabos, fantasmas e deuses. Pela primeira vez eu era livre. Não havia lugares proibidos em qualquer recanto da mente -- não havia ar ou espaço que a imaginação não pudesse atingir com suas asas coloridas -- nenhuma algema me prendendo -- nenhum chicote nas minhas costas -- nenhum fogo na minha carne, nenhum mestre me encarando nem ameaçando, nada mais de seguir os passos dos outros, nenhuma necessidade de me curvar, ajoelhar ou rastejar, ou expressar palavras mentirosas. Eu estava livre. Coloquei-me de pé e sem medo e alegremente, encarei o mundo. E então, meu coração foi preenchido de gratidão, com a paixão por todos aqueles heróis, os pensadores, que deram suas vidas pela liberdade de mãos e cérebros, pela liberdade de trabalho e pensamento, por aqueles que tombaram nos campos cruéis da guerra, por aqueles que morreram nas masmorras, acorrentados, por aqueles que subiram orgulhosamente os degraus do patíbulo, aqueles cujos ossos foram esmagados, cujas carnes foram feridas e rasgadas, por aqueles consumidos pelo fogo, por todos os bravos, sábios e bons de todos os países, cujo saber e ações resultaram em liberdade para os filhos dos homens. Quando me dispus a segurar a tocha que eles acenderam e a ergui no alto, aquela chama pôde ainda iluminar a escuridão. Vamos ser verdadeiros para nós mesmos. Verdadeiros para os fatos que conhecemos e, acima de tudo, preservar a veracidade de nossas almas. Se há deuses, não podemos ajudá-los. Mas podemos ajudar nossos semelhantes. Não podemos amar o inconcebível, mas podemos amar nossas esposas, filhos e amigos. Podemos ser tão honestos quanto ignorantes. Se formos perguntados sobre o que há além do horizonte do desconhecido, nós devemos responder que não sabemos. Nós podemos dizer a verdade e podemos gozar da liberdade abençoada que os bravos conquistaram. Podemos destruir os monstros da superstição, a serpente silvante da ignorância e do medo. Podemos afastar nossas mentes das coisas assustadoras que dilaceram e ferem com bicos e garras. Podemos civilizar nosso semelhante. Podemos preencher nossas vidas com ações generosas, com palavras carinhosas, com arte e música e todo o êxtase do amor. Podemos inundar nossos anos com o brilho do sol -- com o clima divino da candura, e podemos beber até a última gota do cálice dourado da felicidade.